Em seu discurso na sessão solene de aniversário de 175 anos do Instituto dos Advogados Brasileiros, o orador oficial da entidade, José Roberto Batochio, criticou o fortalecimento exagerado do Judiciário no Brasil.
Segundo o Batochio — que já foi presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil —, o desequilíbrio entre os Poderes está impulsionando práticas autoritárias de magistrados.
“Juízes de primeiro grau, em espúrio contubérnio com a polícia judiciária — de quem deveriam guardar prudente distância funcional para preservar a imparcialidade — e açulados pelo onipotente Ministério Público, tomam decisões que afrontam o devido processo legal, desafiam o estado de direito, desrespeitam a Constituição, violam as leis ordinárias, como pudemos testemunhar, bem pouco tempo faz, na aberração teratológica das conduções coercitivas, em boa hora conjuradas pelo ministro Gilmar Mendes no STF — embora imediatamente substituídas pelo incremento das prisões temporárias cujo principal objetivo é surpreender, intimidar, quebrantar a dignidade e a resistência defensiva de quem nem se sabe investigado e muito menos réu”, declarou o criminalista.
Nesse cenário, o IAB continuará a lutar contra a injustiça e o arbítrio e pelo respeito ao direito de defesa, afirmou.
A seguir a íntegra do discurso:
IAB, 175 ANOS
A sombria quadra do estado democrático de direito na
atual conjuntura brasileira nos inspira para descrevê-lo
ninguém menos que um luminoso estilista da tragédia
grega. Mais que os jurisconsultos da atualidade, o imortal
Ésquilo nos serve de referência para bem compreender o
elenco de iniquidades que se acha em curso, encenado a
céu aberto no proscênio da realidade nacional.
Para julgar os mortais, concebeu ele o tribunal com a
eternizada formação de causa, réu, acusador, defesa,
testemunhas e juízes, além do coro que hoje podemos
identificar como representação da opinião pública e
também da publicada. Situando a ação por volta de 1.200
antes de Cristo, na sua obra As Eumênides, da trilogia A
Orésteia, Apolo, segundo o genial autor grego, delegou à
deusa Atena a tarefa de instituir
“um tribunal incorruptível, venerável, inflexível, para
guardar, eternamente vigilante, esta cidade, dando-lhe um
sono tranquilo.”
O réu era Orestes, acusado do crime de matar a própria
mãe, Clitemnestra, e o amante dela, Egisto, por haverem
ambos tramado e executado o assassinato de seu pai, o
herói da Guerra de Troia, Agamenon. Segundo a tradição,
aos filhos incumbia o justiçamento dos assassinos de seu
genitor.
Havendo ocorrido, no aludido julgamento, empate no
voto dos oito jurados, Atena arbitraria o impasse e o fez
imediatamente, proclamando:
– “Os votos dividiram-se em somas iguais. Ele foi
absolvido de um crime de morte!”
Como sabido, a decisão de desempate, prerrogativa do
presidente do conselho de sentença, veio a se tornar
conhecida entre nós como Voto de Minerva, o nome
latino da deusa grega que encarnava a sabedoria, o
conhecimento e também a justiça.
A ficção de Ésquilo legou, por volta de 500 antes de
Cristo, um dos institutos mais sábios e, desde então,
sólidos e imutáveis da Justiça Punitiva.
O empate nos colegiados indica dúvida, e a dúvida
beneficia, necessariamente e sempre, o réu. Cabe então ao
presidente do tribunal fazer a justiça da absolvição com o
voto de Minerva.
Ó, nobre Ésquilo, tua sabedoria civilizou os séculos, mas,
entre nós, hoje, parece haver sucumbido em face do coro
das Fúrias.
Em nossos tribunais superiores, especialmente no STF,
parece já não haver lugar para a sabedoria de AtenaMinerva.
A dúvida tangível que reforça o princípio da
presunção de inocência, tem cedido passo à convicção
líquida da punição. Parelha a votação dos ministros em
cada um dos dois sentidos, já não prevalece o favor rei,
senão a decisão presidencial sempre proferida contra
libertatis... É o que se tem verificado na Suprema Corte.
As Eríniasa banirem a serena sapiência de Atena.
Nós operadores do direito sabemos que os tribunais não
gestam ajustiça. São apenas a tribuna da razão onde o
Direito vence o arbítrio.
Boa é a lei quando executada com retidão, disse São
Paulo, lembrado por Rui Barbosa na Oração aos Moços.
O rol de iniquidades que se inscreve no cotidiano de
nossos tempos tem numerosas fontes e variegadas
matrizes, a despertar profunda inquietação sobre o futuro.
A crise da democracia representativa, se ocorre em escala
global, minando o governo do povo, pelo povo e para o
povo, presentemente alcança entre nós elevado índice de
desapreço a esse sistema político, de vez que a maioria dos
cidadãos não se identifica em seus representantes.
O Congresso Nacional não só se ajoelha, em genuflexão
constrangedora, à invasão dos demais poderes em seu
reservado território discricionário, como chega, por
iniciativa própria, a abdicar de sua atribuição
constitucional de elaborar as leis da República,
substabelecendo tacitamente a legisladores ilegítimos a
missão que lhe foi delegada pelo povo por meio do
sufrágioque legitima o mandato.
Partidos e congressistas derrotados nos debates
democráticos de suas propostas, ou minimamente
contrariados no jogo parlamentar em que a maioria supera
(e deveria respeitar) a minoria, não hesitam em recorrer
aos tribunais superiores para obter, por meio da concreta
tutela jurisdicional, o que não lograram alcançar
dialeticamente na democrática disputa no parlamento.
É como certa ocasião deixou assentado o ex-ministro do
Supremo Tribunal Federal Francisco Rezek,
“só falta o camarada atravessar a praça para reclamar
que lhe negaram um aparte.”
E assim matérias constitucionalmente reservadas ao
Legislativo, sobretudo as que dizem respeito às essenciais
opções axiológicas, aos direitos fundamentais e aos usos e
costumes da nacionalidade, são delegadas à indevida
normatização judiciária, como estamos a assistir
presentemente no trâmite de temas polêmicos, de que são
exemplos a eliminação progressiva da presunção de não
culpabilidade, a chamada descriminalização do aborto,
simples revogação de indulto presidencial - não pelo
critério da inconstitucionalidade formal ou material, mas
de conveniência e oportunidade - e até mesmo a
elaboração de normas sobre prescrição em matéria de
improbidade administrativa... “The possible change
discussed in the wrong place”(a mudança possível
discutida no lugar errado), diriam os doutrinadores da
“common law”, de referência tão frequente nos nossos
pretórios nestes tempos que correm...
Não bastasse o questionável poder normativo da Justiça
Eleitoral, a gestar normas como se legislador fora,
arrogando-se o poder de legislar paralelamente, até
vaquejada, caros confrades, virou assunto regrado nos
tribunais.
Constitui um truísmo assinalar que poder se nutre de
poder, forjando em suas entranhas e valendo-se da
debilidade dos contrapesos e salvaguardas, um movimento
de autofortalecimento, de acromegalia incessante – a
ponto de erigir-se em suprapoder unipolar que elide a
independência, a autonomia relativa e a equilibrada
harmonia preconizada por Montesquieu há 270 anos.
Com poderes assimetricamente desestruturados, a
República claudica capenga nas pernas de pau do arbítrio
e da vaidosa idiossincrasia de seus orgânicos estamentos.
Juízes de 1.º grau, em espúrio contubérnio com a polícia
judiciária - de quem deveriam guardar prudente distância
funcional para preservar a imparcialidade - e açulados pelo
onipotente Ministério Público, tomam decisões que
afrontam o devido processo legal, desafiam o estado de
direito, desrespeitam a Constituição, violam as leis
ordinárias, como pudemos testemunhar, bem pouco tempo
faz, na aberração teratológica das conduções coercitivas,
em boa hora conjuradas pelo ministro Gilmar Mendes no
STF – embora imediatamente substituídas pelo incremento
das prisões temporárias cujo principal objetivo é
surpreender, intimidar, quebrantar a dignidade e a
resistência defensiva de quem nem se sabe investigado e
muito menos réu.
No rol das anomalias não menos maliciosas, decorrentes
do poder que se agiganta como um neoplasmaa se
expandir incontrolavelmente por todo tecido institucional,
continua a pleno vaporo uso da malsinada e exótica
colaboração premiada, importada de um sistema que
definitivamente não se compatibiliza com o plexo de
franquias elencadas no corpo permanente da nossa Lei
Maior: melhor denominada estaria ela se chamada fora de
“alcaguetagem induzida” (e obtida mediante extrusão) –
uma aberração no processo penal, que desde o areópago de
Ésquilo tem de se fundamentaremsólidas provas materiais,
jamais em invencionices gratificadas e remuneradas, em
construções cerebrinas e utilitárias que, trazem na
contraface a inaceitável impunidade daqueles que as
industriam.
Como a expressão está na moda, apesar de sua
introdução espúria no idioma nacional, pode-se dizer que
as tais delações recompensadas têm sido, nos últimos
tempos, uma febril e produtiva usina de “fakenews”.
A partir da exclusividade dessas malignidades, réus sem
culpa provada têm sido arrastados às enxovias. Reputações
são enlameadas com base em leviano “ouvir dizer”, ou
“diz-que-diz” sussurrados pela sempre disponível legião
de Calabares e Joaquins Silvérios dos Reis que o sistema
penal produz e encaixa em uma fieira de vilanias.
Como nada nunca é suficientemente ruim que não possa
piorar, a própria Constituição da República foi ignorada
para a prevalência de um entendimento esdrúxulo,
elaborado à revelia de seu artigo 5º, inciso LVII, que nada
mais faz que reassegurar o princípio da presunção do
estado de inocência até a consideração da culpa em
sentença passada em julgado, postulado claro, necessário,
civilizado e racional
Paradoxalmente, a própria Suprema Corte renunciou, por
estreita maioria é certo, a seu papel histórico de garantir
tal instituto, que remonta à sabedoria milenar, para admitir
a prisão sumária de condenados em segundo grau de
jurisdição, presumindo o permanente acerto do crivo
revisional de pretórios que, francamente, hoje não são
mais compostos como outrora...
Já não prevalece a Lei Maior, já não importa a presunção
de inocência, já não contam os recursos pendentes: o
destino de um condenado em segunda instância é o cárcere
puro e simples, duro e incabível, ainda que mais tarde, a
seguir-se o devido e até então ignorado processo legal, o
infeliz sacrificado seja absolvido...
Se o desditoso for político, daqueles que vão ao prélio
eleitoral disputar lícita e democraticamente a
representação dos cidadãos, espera-o outra armadilha
legal, qual seja, a intitulada Lei da Ficha-Limpa – esta em
si um poço de contradições, pois se a princípio impõe o
ostracismo eleitoral aos condenados por órgão colegiado,
admite a suspensão da punição até o julgamento de
recursos, ou seja, admite contraditoriamente o princípio da
Constituição que está a violentar.
Ora, temos o caso-bumerangue de uma lei que contraria a
si mesma, porque já nasceu malformada e teve sua
iniquidade ampliada por um “poder legislativo” de onze
membros...
Nessa opaca conjuntura, podemos imaginar, em boutade
tão a seu gosto, que Rui Barbosa escreveria aos nossos
tempos uma “Oração aos Velhos”, para assim advertir os
justiceiros destes maus tempos:
“Não sigais os que argumentam com o grave das
acusações, para se armarem de suspeita e execração
contra os acusados; como se, pelo contrário, quanto mais
odiosa a acusação, não houvesse o juiz de se precaver
mais contra os acusadores, e menos perder de vista a
presunção de inocência, comum a todos os réus enquanto
não liquidada a prova e reconhecido o delito.
Não acompanheis os que, no pretório, ou no júri, se
convertem de julgadores em verdugos, torturando o réu
com severidades inoportunas, descabidas, ou indecentes;
como se todos os acusados não tivessem direito à
proteção dos seus juízes, e a lei processual, em todo o
mundo civilizado, não houvesse por sagrado o homem,
sobre quem recai acusação ainda inverificada.”
Caros confrades, chegamos a um ponto da deformidade
institucional derivada do desejo de punir e do denominado
populismo judiciário em que não só os acusados em juízo
precisam de defesa e proteção legal.
Nós mesmos, os que exercemos a defesa técnica, estamos
nos vendo obrigados a invocar, cada vez mais, as garantias
individuais e as prerrogativas da advocacia para o
desimpedido exercício do secular e sagrado ofício.
A guerra santa contra supostos ilícitos na vida pública,
ultrajada, como é praxe nesses movimentos, de desvios
autoritários pelos Savonarolas e Torquemadas redivivos,
não tem poupado o exercício da defesa técnica de
tentativas de criminalização e ataques à dignidade
profissional dos que, em nome de outrem, a exercem.
Bancas têm sido violadas, telefones, censurados,
audiências, truncadas pelo arbítrio de juízes. Como
manobras de prestidigitação, florescem instrumentos
processuais ilegítimos promanados de fontes legislativas
espúrias, certo que ao Congresso Nacional, e somente a
ele, está atribuída acompetência de legislar sobre tema
instrumental penal. O acesso aos autos nem sempre é
garantido, e até o conhecimento das acusações assestadas
a seus patrocinados é vedado aos patronos, embora, a bem
da verdade, sempre sobra, é claro, a possibilidade de se
informarem a respeito pelas páginas dos jornais, que de
tudo são informados e noticiam em primeira mão...
Em certos tribunais, a defesa é havida como um estorvo a
atrapalhara tramitação dos feitos, lavratura de sentenças
pré-redigidas com a tinta acre da convicção dos
investigadores, acusadores e julgadores que, por vezes,
retratam a simbiose de todos. A invocação da lei, a
exigência dos recursos e das garantias que ela prescreve,
soam como notas desafinadas do coro uníssono da
condenação e da pública execração.
Em nome da democracia, da civilização, do ordenamento
jurídico democrático arduamente construído ao longo de
séculos, quem sabe teremos de idealizar um movimento
para assegurar a sobrevivência do direito de defesa, que se
mostra claramente um direito em extinção!
Nesta hora e pela causa, este egrégio e vetusto Sodalício,
agora pela voz firme e intimorata da presidente Rita
Cortez, tem se pronunciado contra os constrangimentos
que só os movimentos autoritários impõem às liberdades,
às garantias democráticas e mesmo à advocacia – e nessa
manifestação da Presidente relembro o pioneirismo do
Instituto dos Advogados Brasileiros ao receber, em 1906,
a primeira mulher a exercer a Advocacia no Brasil,
Myrthes Gomes de Campos, filiando-a em seus quadros
em época na qual as mulheres eram olvidadas por
associações dessa nobre estirpe.
Precursora da luta feminina, a Casa de Montezuma
sempre se distinguiu e ainda se destaca por membros
notáveis que não só dignificaram e engrandeceram o
Direito e a Justiça como se distinguiram nas lutas mais
amplas pela defesa do interesse nacional. Três deles estão
especialmente reconhecidos pela cunhagem de medalhas
honoríficas com que a instituição homenageia a outros
integrantes ilustres, de idêntica linhagem, como um
movimento de verso e reverso de tributo dado e
correspondido, porque altamente merecido.
Levi Carneiro, Luís Gama e Francisco Jê Acaiaba de
Montezuma, se foram gigantes na Advocacia, não menos
extraordinários se constituíram como paladinos do
interesse coletivo. Estadistas, Carneiro e Montezuma
cumpriram o antigo roteiro de quadros forjados como
bacharéis em Direito, assim preparados desde o Primeiro
Reinado. Para servirem ao progresso e a grandeza do
Brasil.
De Levi Carneiro se pode rememorar, em destaque, seus
esforços para fundar e dela ser o primeiro presidente a
Ordem dos Advogados do Brasil, além de presidir ao
nosso Instituto. Consultor da Repúblicano governo ainda
democrático de Getúlio Vargas, de 1930 a 1932, deputado
constituinte em 1934, também representou o Brasil como
juiz no Tribunal Internacional de Justiça, na Haia, de 1951
a 1954.
Montezuma foi uma daquelas figuras históricas que, se
não tivessem sido concebidas num momento de inspiração
e de excelência da natureza biológica, teriam de ser
inventadas. Nas lutas da Independência, adotou, como
muitos brasileiros nativistas, nomes indígenas,
vernaculizando a autoridade com que exerceu cargos da
mais alta importância como os de Ministro da Justiça e dos
Estrangeiros, na Regência do Padre Feijó, e "ministro
plenipotenciário" junto ao Império Britânico, além de ser
Conselheiro de Estado. Usou o prestígio dos cargos para uma aberração no processo penal, que desde o areópago de
Ésquilo tem de se fundamentaremsólidas provas materiais,
jamais em invencionices gratificadas e remuneradas, em
construções cerebrinas e utilitárias que, trazem na
contraface a inaceitável impunidade daqueles que as
industriam.
Como a expressão está na moda, apesar de sua
introdução espúria no idioma nacional, pode-se dizer que
as tais delações recompensadas têm sido, nos últimos
tempos, uma febril e produtiva usina de “fakenews”.
A partir da exclusividade dessas malignidades, réus sem
culpa provada têm sido arrastados às enxovias. Reputações
são enlameadas com base em leviano “ouvir dizer”, ou
“diz-que-diz” sussurrados pela sempre disponível legião
de Calabares e Joaquins Silvérios dos Reis que o sistema
penal produz e encaixa em uma fieira de vilanias.
Como nada nunca é suficientemente ruim que não possa
piorar, a própria Constituição da República foi ignorada
para a prevalência de um entendimento esdrúxulo,
elaborado à revelia de seu artigo 5º, inciso LVII, que nada
mais faz que reassegurar o princípio da presunção do
estado de inocência até a consideração da culpa em
sentença passada em julgado, postulado claro, necessário,
civilizado e racional
Paradoxalmente, a própria Suprema Corte renunciou, por
estreita maioria é certo, a seu papel histórico de garantir
tal instituto, que remonta à sabedoria milenar, para admitir
a prisão sumária de condenados em segundo grau de
jurisdição, presumindo o permanente acerto do crivo
revisional de pretórios que, francamente, hoje não são
mais compostos como outrora...
Já não prevalece a Lei Maior, já não importa a presunção
de inocência, já não contam os recursos pendentes: o
destino de um condenado em segunda instância é o cárcere
puro e simples, duro e incabível, ainda que mais tarde, a
seguir-se o devido e até então ignorado processo legal, o
infeliz sacrificado seja absolvido...
Se o desditoso for político, daqueles que vão ao prélio
eleitoral disputar lícita e democraticamente a
representação dos cidadãos, espera-o outra armadilha
legal, qual seja, a intitulada Lei da Ficha-Limpa – esta em
si um poço de contradições, pois se a princípio impõe o
ostracismo eleitoral aos condenados por órgão colegiado,
admite a suspensão da punição até o julgamento de
recursos, ou seja, admite contraditoriamente o princípio da
Constituição que está a violentar.
Ora, temos o caso-bumerangue de uma lei que contraria a
si mesma, porque já nasceu malformada e teve sua
iniquidade ampliada por um “poder legislativo” de onze
membros...
Nessa opaca conjuntura, podemos imaginar, em boutade
tão a seu gosto, que Rui Barbosa escreveria aos nossos
tempos uma “Oração aos Velhos”, para assim advertir os
justiceiros destes maus tempos:
“Não sigais os que argumentam com o grave das
acusações, para se armarem de suspeita e execração
contra os acusados; como se, pelo contrário, quanto mais
odiosa a acusação, não houvesse o juiz de se precaver
mais contra os acusadores, e menos perder de vista a
presunção de inocência, comum a todos os réus enquanto
não liquidada a prova e reconhecido o delito.
Não acompanheis os que, no pretório, ou no júri, se
convertem de julgadores em verdugos, torturando o réu
com severidades inoportunas, descabidas, ou indecentes;
como se todos os acusados não tivessem direito à
proteção dos seus juízes, e a lei processual, em todo o
mundo civilizado, não houvesse por sagrado o homem,
sobre quem recai acusação ainda inverificada.”
Caros confrades, chegamos a um ponto da deformidade
institucional derivada do desejo de punir e do denominado
populismo judiciário em que não só os acusados em juízo
precisam de defesa e proteção legal.
Nós mesmos, os que exercemos a defesa técnica, estamos
nos vendo obrigados a invocar, cada vez mais, as garantias
individuais e as prerrogativas da advocacia para o
desimpedido exercício do secular e sagrado ofício.
A guerra santa contra supostos ilícitos na vida pública,
ultrajada, como é praxe nesses movimentos, de desvios
autoritários pelos Savonarolas e Torquemadas redivivos,
não tem poupado o exercício da defesa técnica de
tentativas de criminalização e ataques à dignidade
profissional dos que, em nome de outrem, a exercem.
Bancas têm sido violadas, telefones, censurados,
audiências, truncadas pelo arbítrio de juízes. Como
manobras de prestidigitação, florescem instrumentos
processuais ilegítimos promanados de fontes legislativas
espúrias, certo que ao Congresso Nacional, e somente a
ele, está atribuída acompetência de legislar sobre tema
instrumental penal. O acesso aos autos nem sempre é
garantido, e até o conhecimento das acusações assestadas
a seus patrocinados é vedado aos patronos, embora, a bem
da verdade, sempre sobra, é claro, a possibilidade de se
informarem a respeito pelas páginas dos jornais, que de
tudo são informados e noticiam em primeira mão...
Em certos tribunais, a defesa é havida como um estorvo a
atrapalhara tramitação dos feitos, lavratura de sentenças
pré-redigidas com a tinta acre da convicção dos
investigadores, acusadores e julgadores que, por vezes,
retratam a simbiose de todos. A invocação da lei, a
exigência dos recursos e das garantias que ela prescreve,
soam como notas desafinadas do coro uníssono da
condenação e da pública execração.
Em nome da democracia, da civilização, do ordenamento
jurídico democrático arduamente construído ao longo de
séculos, quem sabe teremos de idealizar um movimento
para assegurar a sobrevivência do direito de defesa, que se
mostra claramente um direito em extinção!
Nesta hora e pela causa, este egrégio e vetusto Sodalício,
agora pela voz firme e intimorata da presidente Rita
Cortez, tem se pronunciado contra os constrangimentos
que só os movimentos autoritários impõem às liberdades,
às garantias democráticas e mesmo à advocacia – e nessa
manifestação da Presidente relembro o pioneirismo do
Instituto dos Advogados Brasileiros ao receber, em 1906,
a primeira mulher a exercer a Advocacia no Brasil,
Myrthes Gomes de Campos, filiando-a em seus quadros
em época na qual as mulheres eram olvidadas por
associações dessa nobre estirpe.
Precursora da luta feminina, a Casa de Montezuma
sempre se distinguiu e ainda se destaca por membros
notáveis que não só dignificaram e engrandeceram o
Direito e a Justiça como se distinguiram nas lutas mais
amplas pela defesa do interesse nacional. Três deles estão
especialmente reconhecidos pela cunhagem de medalhas
honoríficas com que a instituição homenageia a outros
integrantes ilustres, de idêntica linhagem, como um
movimento de verso e reverso de tributo dado e
correspondido, porque altamente merecido.
Levi Carneiro, Luís Gama e Francisco Jê Acaiaba de
Montezuma, se foram gigantes na Advocacia, não menos
extraordinários se constituíram como paladinos do
interesse coletivo. Estadistas, Carneiro e Montezuma
cumpriram o antigo roteiro de quadros forjados como
bacharéis em Direito, assim preparados desde o Primeiro
Reinado. Para servirem ao progresso e a grandeza do
Brasil.
De Levi Carneiro se pode rememorar, em destaque, seus
esforços para fundar e dela ser o primeiro presidente a
Ordem dos Advogados do Brasil, além de presidir ao
nosso Instituto. Consultor da Repúblicano governo ainda
democrático de Getúlio Vargas, de 1930 a 1932, deputado
constituinte em 1934, também representou o Brasil como
juiz no Tribunal Internacional de Justiça, na Haia, de 1951
a 1954.
Montezuma foi uma daquelas figuras históricas que, se
não tivessem sido concebidas num momento de inspiração
e de excelência da natureza biológica, teriam de ser
inventadas. Nas lutas da Independência, adotou, como
muitos brasileiros nativistas, nomes indígenas,
vernaculizando a autoridade com que exerceu cargos da
mais alta importância como os de Ministro da Justiça e dos
Estrangeiros, na Regência do Padre Feijó, e "ministro
plenipotenciário" junto ao Império Britânico, além de ser
Conselheiro de Estado. Usou o prestígio dos cargos para fundar nosso Instituto e também ser dele o primeiro
presidente.
Para completar essa trindade de figuras maiúsculas da
nacionalidade, Luís Gama é a imagem comovente de
nossa terceira medalha. Todo humanista medianamente
informado da História do Brasil reverencia esse apóstolo
da liberdade, ex-escravo que somente aos 17 anos superou
as trevas do analfabetismo, tornou-se autodidata do vademécum
jurídico, conquistou judicialmente a própria
liberdade e dedicou o resto de sua abençoada existência a
libertar irmãos cativos, merecendo o título de Patrono da
Abolição da Escravidão do Brasil.
Republicano exaltado, pregou, em um dos mais belos
sonhos que se podia acalentar na época,
“um país sem reis e sem súditos”.
Uma plêiade de confrades, alguns já não entre nós, é
merecidamente homenageada nesta cerimônia com
medalhas que trazem na face a efígie de homens
grandiosos, cuja obra os homenageados igualmente
honraram e expandiram à frente deste heroico IAB.
Poucas instituições no Brasil podem ter o imensurável
orgulho de exibir em seus anais quadros de tal magnitude.
Sabemos, contudo, que essa tem sido a missão
civilizatória cumprida nesses 175 anos de história, em que
atuamos com a crença inabalável de que, enquanto houver
injustiça e iniquidade, enquanto a lei democrática for
desrespeitada, enquanto se violarem direitos fundamentais
da pessoa humana e se negarem os postulados do direito
de defesa, enquanto se tiver de defender o fraco contra o
forte, o desvalido contra o favorecido, o vulnerável contra
o afluente, o inocente contra o arbitrário, enquanto, enfim,
tal quadro de deformidades persistir, ainda que sob forma
um só episódio como um grão de areia no deserto,
continuaremos a serpresentes como avalistas das
liberdades e fieis da legalidade.
A ocasião é de luta pela reafirmação do estado
democrático de direito, do respeito ao devido processo
legal e ao exercício livre da defesa do perseguido. Não
trilhamos o caminho do abatimento, do desalento. Nosso
desânimo só serviria à causa dos que tentam nos abater.
Nossa resignação seria a deserção da trincheira que o
grande Ésquilo nos reservou há mais de trinta séculos para
defender simples mortais num tribunal de deuses.
À sombra desse venerável Instituto, 175 anos de
dedicação e zelo ao direito nos contemplam e nos
inspiram: nada mais sejamos além daquilo que devemos
ser – apenas e tão somente, guardiões das liberdades, da
legalidade democrática, do respeito ao ser humano, da
democracia e do Direito, valores que não esqueceremos, jamais!
Revista Consultor Jurídico, 13 de agosto de 2018.
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