sábado, 16 de dezembro de 2017

STF deve mudar forma de funcionamento

Por Dalmo Dallari
vox populi, a vontade popular ou o entendimento da população a respeito de assuntos referentes a interesses públicos é manifestada, atualmente, por meio das redes sociais. Com enorme frequência, nelas se encontram críticas ao Poder Judiciário e, muito especialmente, ao Supremo Tribunal Federal. Algumas, poucas, são análises sérias sobre as deficiências do aparelhamento judicial; outras, as mais numerosas, são feitas por meio de charges ou piadas ridicularizando todo esse universo. Isso é um sintoma muito expressivo, que merece atenção.
Essas críticas mais contundentes, embora, pelo humor, possam trazer alguma descontração, são muito contristadoras para todos os profissionais do Direito, seja qual for sua área de atuação. Porém, elas são bem mais deploráveis para os cientistas do Direito, aqueles que, dentro ou fora dos ambientes universitários, se preocupam com os meios e modos de realização dos ideais de democracia e Justiça, na medida em que atingem a cúpula da estrutura judicial e um dos alicerces do Estado Democrático de Direito.
O foco deste artigo não está na descrição do funcionamento, altamente deficiente, do Supremo Tribunal Federal. Não se cuidará de examinar o comportamento deste ou daquele ministro, muito embora haja uma sensível diferença na maneira de ser e de agir de cada um deles, sendo absolutamente inegável a motivação política, e até pessoal, em inúmeras decisões monocráticas. Também não haverá aqui considerações sobre o comportamento do conjunto, muito embora, possa parecer, para o cidadão comum, que o STF funciona nas horas vagas, tal o número de ausências de ministros em decorrência de viagens de todo tipo. O comparecimento às sessões de julgamento deveria ser um compromisso prioritário para cada ministro. A preocupação central, neste artigo, estará na produtividade do órgão no tocante à sua razão de ser: a prestação jurisdicional.
Como a análise será baseada na Constituição Federal, ou, mais exatamente, em princípios da CF, é mais do que oportuna a transcrição da noção de princípio constitucional, e de sua elevada positividade, feita pela ministra presidente do STF, Cármem Lúcia: “Os princípios constitucionais são os conteúdos primários diretores do sistema jurídico normativo fundamental de um Estado. Dotados de originalidade e superioridade material sobre todos os conteúdos que formam o ordenamento constitucional, os valores firmados pela sociedade são transformados pelo Direito em princípios”. “Princípios jurídicos constitucionais não se propõem; proclamam-se. Não se cuida de propostas. São opções constituintes projetadas no sistema constitucional expressa ou implicitamente. E são eles as opções identificadoras das raízes do sistema constitucional” (CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA, Princípios Constitucionais da Administração Pública, Editora Del Rey, Belo Horizonte, 1994, p. 25). Em síntese, princípios não são declarações românticas; são mandamentos de excepcional hierarquia e, consequentemente, de especial observância.
Para os fins deste estudo, merecem destaques três princípios contemplados no artigo 5º da CF: a afirmação de que “todos são iguais perante a lei”; a garantia do “devido processo legal”, e, no inciso LXXVIII, uma espécie de síntese de ambos — “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Quanto ao primeiro, desde os filósofos gregos já se sabe que a verdadeira igualdade consiste em tratar diferentemente os desiguais, na medida de sua desigualdade. O segundo qualifica o processo legal como “devido”, ou seja, adequado, apto a produzir resultados. E o terceiro afirma que os processos devem ter duração razoável, para que possam dar efetividade à prestação jurisdicional, com as nuances necessárias a que se promova a verdadeira igualdade.
O desencanto popular generalizado em relação ao STF tem muitos motivos, mas há um tema no qual a indignação do povo chega ao extremo, qual seja, o da suprema inoperância com relação aos crimes cometidos pelos detentores de foro especial por prerrogativa de função, que, na prática, acabou se tornando em verdadeiro foro privilegiado, com uma implícita garantia de impunidade. Já tivemos oportunidade de discorrer sobre esse tema em artigo publicado nesta coluna, com o significativo título de Foro por prerrogativa de função — na prática a teoria é outra. Deixamos claro que os agentes públicos, no exercício de sua funções, devem tomar decisões que, muitas vezes, são incompreendidas e ensejam que contra elas sejam intentadas ações judiciais. “Assim, diante da maior vulnerabilidade de quem exerce, legitimamente, o poder/dever de decidir, é compreensível a existência de uma proteção especial no tocante a decisões ou atitudes tomadas no exercício da função pública, ou, mais exatamente, à prática de atos de ofício. Portanto, não haveria violação ao princípio constitucional da igualdade se um número restrito de autoridades, da mais alta hierarquia, fosse contemplada com o foro especial por prerrogativa de função.” Aplicado, nos seus devidos limites, o foro especial seria uma forma de compensar as diferenças entre autoridades públicas e cidadão, restaurando a igualdade.
No presente momento, já decidiu a maioria dos ministros do STF que esse tratamento diferenciado não é uma prerrogativa pessoal da autoridade, mas, sim, uma decorrência de sua atuação nessa qualidade, na prática, exclusivamente, de atos de ofício, sem abranger atuações e comportamentos pessoais, totalmente desvinculados do munus público. A votação foi interrompida exatamente por um pedido de vista clamorosamente político. Não é possível imaginar que, em questão de tamanha relevância, o ministro que pediu vista tenha tomado essa atitude para estudar o assunto. É gritantemente óbvio que tal assunto já vinha sendo objeto de preocupação desde muito tempo, sendo impossível acreditar que o ministro teve sua atenção despertada apenas na sessão de julgamento, que foi por ele interrompida. Esse é só um exemplo dentre muitos outros que poderiam ser lembrados. O pedido de vista, que pode ser muito importante, na prática tem servido, principalmente, para desviar o curso do processo.
Neste passo, seja permitido lembrar mais um princípio constitucional, que tem pertinência com a prática da protelação. A CF, em seu artigo 37, entre os vários princípios da administração pública, menciona, expressamente, o princípio da eficiência, que foi acrescentado ao texto original como um marco da substituição do modelo burocrático pelo modelo gerencial, no qual o foco principal está na produção de resultados, conforme este pequeno escolho doutrinário: “Podemos dizer, então, que o princípio da eficiência alia preocupação com correto emprego de recursos públicos, em busca de efetividade e celeridade, devendo o administrador público focar sua atenção nos resultados” (CRISTIANA FORTINI, Consórcios públicos, contratos de programa e a Lei de Saneamento, in Saneamento Básico – Estudos e pareceres à luz da Lei nº 11.445/2007. Organizadoras: Juliana Picinin e Cristiana Fortini, Editora Fórum, Belo Horizonte, 2009, p. 139)
Embora a CF se refira à máquina administrativa, à eficiência do aparelho do estado, é certo que a abrangência é muito maior. Toda atividade tipicamente administrativa é instrumental, movida para produzir resultados. O que se deseja com o princípio da eficiência é que o aparelhamento seja mais ágil, para que os fins sejam atingidos com maior celeridade. Isso, sem dúvida alguma, se aplica ao STF: esse tribunal tem que melhorar seu funcionamento, para que possa cumprir os princípios inicialmente invocados, produzindo a decisão que dele se espera. Isso é perfeitamente possível, desde que haja vontade dos ministros.
No caso das decisões monocráticas heterodoxas ou conflitantes, nada impede e tudo recomenda que cada um procure seguir a orientação predominante no tribunal, ou que, no mínimo, faça consultas informais a seus pares, em busca de uma solução pelo menos aceitável para todos. Em qualquer caso, especialmente nas sessões transmitidas pela TV, não custaria nada a cada ministro fazer uso de sua capacidade de síntese, com menos erudição e mais objetividade. Os pedidos de vista podem e devem voltar a cumprir sua função primordial e, muito especialmente, devem observar os prazos previstos nas normas processuais. Mas o que nos parece mais relevante é uma hierarquização dos feitos, conforme a matéria e conforme as possíveis repercussões.
Existem matérias de interesse pessoal do interessado, com pouca repercussão externa. Existem outras matérias que afetam interesses da coletividade, com acentuada repercussão social. Mas existem assuntos, e aqui se coloca a questão dos julgamentos dos detentores de foro privilegiado, que afetam o funcionamento das instituições, a probidade na conduta das autoridades públicas, o sistema representativo e o equilíbrio entre poderes. Todos os casos são importantes, e a prestação deve ser assegurada a todos, mas dar igual tratamento a situações completamente diferentes é prestigiar a desigualdade.
No caso específico dos acusados detentores de foro especial, cabe ao Supremo, para recuperar um pouco de seu perdido prestígio e diminuir as terríveis críticas que desmoralizam a corte, fazer um esforço para dar uma resposta à sociedade ou, pelo menos, para evidenciar que não é cúmplice dos acusados. É fato que o STF está assoberbado, em decorrência do texto constitucional analítico, mas, exatamente por essa razão, deve mudar sua forma tradicional de funcionamento. Não basta publicar estatísticas mostrando o volume de trabalho como justificativa para a paquidérmica lentidão. É preciso, sim, buscar formas mais ágeis de funcionamento para compensar a sobrecarga. Pedindo desculpas pelo lugar comum: não é possível atingir melhores resultados fazendo sempre as mesmas coisas.
Revista Consultor Jurídico, 14 de dezembro de 2017.

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Innovare premia ações de juízes e tribunais para sistema prisional

O Prêmio Innovare da luz as ações desenvolvidas por integrantes do sistema de Justiça e da sociedade civil para melhorar o sistema prisional ao agraciar os vencedores da edição 2017,  em premiação realizada terça-feira (5/12) no Supremo Tribunal Federal (STF). 
Das sete categorias inscritas no prêmio, que valoriza soluções de gestão administrativa para o funcionamento do Poder Judiciário, os vencedores de cinco delas inscreveram projetos de melhorias do sistema prisional. 

A presidente do STF e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministra Cármen Lúcia, entregou o prêmio da Categoria Tribunais aos magistrados do Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO), o desembargador Gilberto Marques Filho e o juiz Fernando Augusto Chacha de Rezende, pelo projeto “Amparando Filhos - transformando realidades”, que desde 2015 evita a reincidência criminal de mulheres presas ao estender aos filhos delas os serviços de proteção social oferecidos pelo estado. 

Outro projeto que mereceu o reconhecimento da comissão julgadora do prêmio foi o Sistema de Apreciação Antecipada de Benefícios (SAAB). Na prática, a iniciativa de nome complicado é uma rotina de trabalho adotada pelos servidores e magistrados da Vara de Execuções Penais (VEP) de Teresina para calcular com precisão as datas de soltura dos presos que concluíram o tempo que deveriam passar em uma prisão de regime fechado. Desde junho de 2016, com a ajuda de um software cedido pelo CNJ – o Sistema Eletrônico de Execução Unificado (SEEU) –, nenhum preso é mantido atrás das grades após cumprir o tempo estipulado em sua sentença. 

Sistema prisional

A comissão julgadora do Prêmio Innovare é composta por 31 personalidades dos meios jurídico, acadêmico e empresarial, entre elas a ministra Cármen Lúcia. O grupo decidiu premiar, na categoria Advocacia, o projeto da procuradora do estado do Rio Grande do Sul Roberta Arabiani Siqueira “Responsabilidade compartilhada: uma via para a humanização do sistema prisional e para proteção social”.
A iniciativa, ao fazer cumprir a Lei de Execução Penal, previne o domínio da Penitenciária de Canoas 1 por facções criminosas. 
O vencedor na categoria Justiça e Cidadania foi Antônio Tadeu Rodrigues, pelo projeto Visão de liberdade, que desde 2004 emprega presos da Penitenciária Estadual de Maringá na gravação de livros falados e outros materiais produzidos em braille para cegos da região. Uma categoria especial foi criada especialmente para premiar ações desenvolvidas no sistema carcerário. Os vencedores foram o agente penitenciário Marcus Karbage e a dentista Aline Cabral, que combatem com o projeto “Meninas que encantam” a discriminação contra homossexuais e transgêneros dentro de uma prisão dos arredores de Fortaleza.  

Demais vencedores

Na categoria Ministério Público, venceu o projeto das promotoras de justiça de Santa Catarina Barbara Elisa Heise e Karin Maria Sohnlein “GesPro – Projeto de gestão administrativa das promotorias”. Entre os projetos inscritos por defensores públicos, foi premiado o “Defesa dos direitos indígenas”, dos defensores públicos do Pará Johny Fernandes Giffoni e Juliana Andrea Oliveira.
O prêmio Innovare foi criado em 2004 com o objetivo de identificar, divulgar e difundir práticas que contribuam para o aprimoramento da Justiça no Brasil. Desde então,  já passaram pela comissão julgadora do Innovare mais de cinco mil práticas, vindas de todos os estados do país. Pouco a pouco, essas iniciativas vão mudando a cara da Justiça e estimulando novas iniciativas, num ciclo virtuoso. Participam da Comissão Julgadora do Innovare ministros do STF e STJ, desembargadores, promotores, juízes, defensores, advogados e outros profissionais de destaque interessados em contribuir para o desenvolvimento do nosso Poder Judiciário.
Manuel Carlos Montenegro 
Agência CNJ de Notícias 

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Profissionais do Direito precisam se adaptar às peculiaridades da conciliação

A explosão de processos que abarrotou o Poder Judiciário brasileiro, da primeira à última instância, fez com que as tentativas de conciliação adquirissem maior importância, fossem estimuladas e até mesmo impostas pelo legislador. Elas foram ocupando espaços em todos os ramos do Direito.
Na verdade, nisto não há novidade alguma. A Constituição de 1824, no artigo 161, já dispunha que não se iniciaria o processo civil sem tentar-se a reconciliação entre as partes. No âmbito trabalhista, a CLT de 1943, determinava, no artigo 764, que se tentasse a conciliação.
No entanto, o avanço se deu a passos lentos. No âmbito penal, Magalhães Noronha, em 1964, ao comentar a ação penal, era enfático ao dizer que o Ministério Público “não pode declinar do exercício, transigir, aguardar oportunidade, etc.”[i]
Mas os fatos sempre se sobrepõem às normas, legais ou principiológicas, adaptando-se o Direito à realidade. Foi por isso que, em 1995, a Lei 9.099, que trata dos Juizados Especiais, rompeu com a secular obrigatoriedade da ação penal pública. Nos arts. 72 e 89 permitiu a transação e a suspensão do processo na área criminal, curvando-se ao pragmatismo norte-americano.
Na verdade, os Cartórios e Secretarias de Varas Criminais não suportavam mais os milhares de processos que se avolumavam, alguns tratando de infrações tão pitorescas como simulação de autoridade para celebrar casamento (art. 238 do Cód. Penal) ou vadiagem (art. 59 da Lei das Contravenções Penais).
E assim, pouco a pouco, foram surgindo diferentes possibilidades de conciliação, fosse qual fosse o nome dado a este ato, como transação ou reajustamento de conduta. E já vieram tarde. Só para que se tenha uma ideia, o “Federal Judicial Center”, dos Estados Unidos, em 1997 já preparava juízes federais para mediar os conflitos que lhes eram submetidos.[ii]
Na área ambiental, no âmbito do Ministério Público ou nos órgãos ambientais, acordos são celebrados diariamente, com base no art. 5º, § 6º da Lei 7.347/85, que trata da Ação Civil Pública.
O CNJ transformou a ideia em projeto. Ao comemorar um ano da sua criação, a ministra Ellen Gracie afirmou: “Ao implantar o Movimento pela Conciliação em agosto de 2006, o Conselho Nacional de Justiça teve por objetivo alterar a cultura da litigiosidade e promover a busca de soluções para os conflitos mediante a construção de acordos”.[iii]
O CPC de 2015 transformou a tentativa de conciliação em dever (art. 334) e Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs) foram implantados em todo o país.
A possibilidade de mediação de conflitos foi adotada, também, na área da administração pública, através da Lei 13.140/2017, inclusive sendo implantada no âmbito interno de órgãos do Poder Judiciário, como é o caso da Justiça Federal do Rio Grande do Norte, onde a portaria 239/2017 da direção do foro ordenou a sua aplicação no âmbito de questões administrativas.
Para eliminar, de vez, qualquer discussão sobre o assunto, a colaboração premiada entrou no universo jurídico brasileiro através da Lei 12.850/2013, fixando os acordos como algo definitivo, mesmo em crimes de alta gravidade.
Pois bem, se isto é inquestionável e definitivo, não há muito o que discutir a respeito. Há séculos o brocardo jurídico dizia: é melhor um mau acordo do que uma boa demanda. Superada esta fase, o que há de se estudar agora é como conduzir-se nas audiências ou reuniões de conciliação, sejam feitas no Poder Judiciário, em Tribunais Arbitrais ou em escritórios de advocacia.
Qual o papel de cada um? Como se comportar, sentar, olhar, falar, concordar ou negar? Todos estes verbos exigem postura, posição adequada, pois disto depende o sucesso da tentativa.
Contudo, há um detalhe, ninguém foi preparado para tanto nos cursos de graduação em Direito. E, em dado momento, lá está o jovem advogado diante de um representante da Caixa Econômica Federal, que faz ao seu cliente uma proposta para pôr fim a uma antiga ação em que se discute a quitação de prestações atrasadas na compra de imóvel. Que fazer?
Não há uma receita completa, perfeita. A negociação passa por perspicácia, inteligência emocional, experiência de vida e uma boa dose de psicologia no trato. E neste caudal de sentimentos, impõe-se ter em conta a busca de uma solução que leve à satisfação pessoal dos envolvidos. O desembargador Roberto Portugal Bacellar observa que:
Para satisfazer integralmente os interesses dos jurisdicionados e realizar justiça, é preciso investir na adoção de um modelo consensual que amplie o foco, busque visão sistêmica com raciocínio exlético. No modelo adversarial, no qual se pautou a estrutura processual brasileira, efetivamente o raciocínio é só jurídico e puramente dialético.[iv]
Se assim é, vejamos algumas regras de conduta.
Ninguém vai para uma audiência ou reunião sem ter examinado, previamente, todos os aspectos do conflito. Não só fatos e provas, mas também a jurisprudência. Este é o ponto de partida para saber até onde se recomenda ceder.
A proposta inicial, geralmente, é feita por quem provocou a reunião. Ou, em Juízo por indagação do juiz ou do conciliador. À parte contrária cabe avaliar de que provas dispõe o proponente, qual a sua situação econômica (pessoas mal financeiramente tendem a aceitar propostas menores) se for pessoa física, a idade (idosos têm pressa em acabar com o litígio), origem (alguns povos são menos propensos a conciliar), sexo e religião.
Neste primeiro momento não se deve mostrar fraqueza econômica nem emocional. Ambas levam o opositor a um fortalecimento, que se traduzirá em concessões menores. Por exemplo, se o conflito for de elevado valor econômico, uma jovem advogada não irá à reunião vestindo jeans com um buraco no joelho, mas sim um traje convencional, que passe a ideia de alguém estabilizada profissionalmente e habituada a tal tipo de embate.
É importante identificar, do lado oposto, quem manda. Às vezes estão sócios e funcionários. Em outras, familiares. Mas, em todo grupo humano, há os que lideram, encaminham as posições. É importante saber quem é quem e, a partir daí, dedicar-lhe especial atenção.
Durante a audiência ou reunião, há que se cuidar para a linguagem corporal. Colocar as mãos para trás mostra ou morder a caneta revelam falta de confiança, cruzar os braços significa estar na defensiva, pescoço caído aparenta fraqueza, pernas mexendo indicam nervosismo, corpo curvado na mesa e pernas dobradas apontam para submissão.[v]
Mesmo que a proposta inicial seja indecente, jamais deve ser recusada com uma frase radical como “esta oferta é absurda, jamais aceitaremos”.
Expor a própria posição com segurança, sem arrogância, tem alto poder de persuasão. Quando o oponente se contrapõe, é oportuno ceder no detalhe, dando-lhe a oportunidade de, aparentemente, vencer a discussão, usando esta concessão para conquistar uma vantagem maior logo em seguida.
O tempo deve ser bem calculado. Se o oponente dispõe de pouco tempo, porque tem uma audiência logo em seguida, talvez aceite logo fazer um acordo. Contudo, se a tendência dele é não conciliar porque não dispõe de tempo para avaliar a proposta, o melhor a fazer é propor que as tratativas prossigam em outro dia.
O acordo pode ser fatiado, não precisa ser um tudo ou nada. Pode ser que se avance mais discutindo e encerrando por aspectos diversos do que querendo resolver tudo de uma vez só.
Por exemplo, um ajuste de conduta a ser discutido em inquérito civil com um promotor de Justiça, talvez não permita discussão sobre a existência do dano ambiental, por ser inequívoco. No entanto, mesmo reconhecendo-o, o infrator pode negociar o prazo da recuperação da área, a forma de indenizar o prejuízo, juros, etc. Afinal, o acordo interessa a ambos: ao MP, porque evita uma ação judicial, ao causador do dano, porque define sua situação jurídica.
Acordos costumam ser feitos por equipes. É comum que uma equipe tenha um interlocutor mais agressivo e outro que ameniza a situação. Esta é uma técnica para enfraquecer o adversário, sentir sua posição, constatar se ele se intimida com as ameaças. A reação deve ser sempre de calma, ponderação. Se necessário, pede-se a suspensão para falar reservadamente com seu grupo.
Por vezes a parte contrária quer, acima de tudo, um pedido de desculpas, um reconhecimento. Isto pode ser feito, dentro dos limites do caso concreto. Pode-se incluir no termo, se for o caso, o dever de sigilo, ou seja, um reconhece o erro mas o outro fica proibido de divulgar aquele reconhecimento.
Por vezes o encontro está se encaminhando para o fracasso. Em tais casos, ensina Ken Langdon, “você pode solicitar um adiamento da negociação a qualquer hora. Isso permite a ambos os lados uma oportunidade para reavaliar suas estratégias à luz dos novos desdobramentos”.[vi]
Outras tantas observações merecem ser acrescentadas. Porém, o mais importante é saber que este é um novo mundo que se abre diante do profissional do Direito e que é imprescindível conhecê-lo.
 
[i] MAGALHÃES NORONHA, Edgar Curso de Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 1964, p. 33.
[ii] NIEMIC J. Robert. Mediation & Conference Programs in the Federal Courts of Appeals. Washington D.C., Federal Judicial Center, 1997.
[iv] BACELLA, Roberto Portugal. Administração Judiciária com Justiça. Curitiba: InterSABERES, 2016.p.248.
[v] Vide “8 erros fatais de linguagem corporal que você deve evitar”. In:https://www.agendor.com.br/blog/linguagem-corporal-maos/ . Acesso em 2/12/2-17.
[vi] LANGDON, Ken. Você sabe conduzir uma negociação? São Paulo: SENAC,\ 2009, P. 85.
Revista Consultor Jurídico, 03 de dezembro de 2017.

domingo, 3 de dezembro de 2017

Fortalecimento da conciliação

Já tradicional no calendário jurídico brasileiro, a Semana Nacional da Conciliação ocorre até esta sexta-feira (1º/12) em todo o país. A campanha é organizada anualmente pelo Conselho Nacional de Justiça desde 2006 e envolve os tribunais de Justiça, tribunais do Trabalho e tribunais federais. No ano passado, foram 130 mil acordos e R$ 1,2 bilhão homologados.
Desde a promulgação do novo Código de Processo Civil, a conciliação ganhou força no cenário dos litígios. O advogado Rodrigo Mutti, sócio de Silveiro Advogados e especialista no assunto, conversou com a ConJur sobre como essa ferramenta jurídica está sendo utilizada. 
Segundo ele, como ainda é barato litigar no Brasil, uma alternativa legislativa para fomentar os acordos seria tornar o prosseguimento da causa mais oneroso financeiramente aos envolvidos.
Leia a entrevista:
ConJur — O que o novo Código de Processo Civil trouxe para a conciliação?
Rodrigo Mutti — O novo CPC alterou significativamente o rito processual com o intuito de fomentar a conciliação entre as partes demandantes. Como regra geral, a audiência de conciliação passou a ser ato fundamental e obrigatório em qualquer ação judicial. No rito ordinário, agora, o réu não é mais citado para apresentar contestação, mas para comparecer à audiência de conciliação. Somente na hipótese da realização da audiência que o réu deverá apresentar sua defesa. A audiência não é presidida pelo juiz, mas por um conciliador ou mediador treinado e desvinculado da causa. Sua missão é criar o ambiente mais favorável possível para que as partes resolvam o impasse de forma amistosa.
ConJur — O que falta em termos de legislação para a conciliação ser mais forte no Brasil?
Rodrigo Mutti — 
Talvez com exceção dos conflitos trabalhistas, a legislação atual disponibiliza todas as ferramentas necessárias para que o acordo celebrado de forma amistosa extrajudicialmente tenha validade e eficácia, conferindo ampla segurança jurídica às partes. Nos casos de acordos celebrados no âmbito do Poder Judiciário, essa segurança é ainda maior. Uma alternativa legislativa para fomentar mais os acordos seria tornar o prosseguimento da causa mais oneroso financeiramente aos envolvidos. Ainda é barato litigar no Brasil, tanto pelo custo com escritórios de advocacia (cada vez mais reduzidos e automatizados), como pelas custas processuais, que não costumam representar mais do que 4% do total discutido. Isso sem adentrar ao temerário uso inadequado da gratuidade judiciária por autores que não preenchem os requisitos legais, o que é muito pouco fiscalizado pelo Judiciário.
ConJur — E em termos de estrutura do Judiciário?
Rodrigo Mutti — 
A informatização dos sistemas do Poder Judiciário vem revolucionando a condução das ações judiciais no Brasil. Hoje em dia é muito mais rápido para uma empresa se inteirar do conteúdo de uma ação judicial, estabelecer tratativas amistosas com a outra parte e promover a assinatura conjunta de um acordo, tudo sem a necessidade de qualquer deslocamento. Infelizmente, por motivos não bem esclarecidos, alguns tribunais atuam com sistemas eletrônicos totalmente distintos um dos outros. Há estados no Brasil que possuem três sistemas ativos de gestão de processos. Certamente a padronização traria mais celeridade, facilitaria o acesso às informações (inclusive estatísticas) e daria ainda mais dinamismo aos fluxos de negociações de acordos. Questões pontuais do Judiciário como a adoção de alvarás eletrônicos e transferências diretas de valores depositados em juízo, assim como a priorização de casos onde há pendência de homologação de acordos, também colaborariam para a missão de pacificação.
Revista Consultor Jurídico, 30 de novembro de 2017.

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Acesso à Justiça e vulneráveis

As instituições brasileiras têm se tornado vulneráveis em meio à crise política e econômica, mas não há ferramentas adequadas de defesa para esse cenário. É o que declarou nesta segunda-feira (27/11) o ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça, durante a XXIII Conferência da Nacional da Advocacia Brasileira.
“O próprio curso da República brasileira está ameaçado”, declarou Herman Benjamin em Conferência da Advocacia.
“Infelizmente não temos, no nosso modelo constitucional, mecanismos de defesa para, por exemplo, [resolver] a compra de medida provisória. O que eu vou fazer com uma lei comprada?”, questionou durante o evento, que será promovido em São Paulo até a próxima quinta-feira (30/11).
“O que acontece nos obriga a aprofundar o que entendemos por vulneráveis. Hoje, além das pessoas, os indivíduos e os grupos – consumidores, idosos, deficientes – passam a ser também as próprias instituições. Isso é uma concepção que há dois, três anos, se falássemos aqui, ninguém ia entender”, analisou o ministro, que foi convidado a abordar o tema “Acesso à Justiça e vulneráveis: premissas constitucionais”.
“O que vivemos não é mais o excepcional, e não nos bastam os mecanismos de proteção para quando o rio sai do curso. O próprio curso da República brasileira está ameaçado pela vulnerabilidade institucional”, complementou Benjamin.
Segundo o ministro, essa situação diz respeito também aos atores institucionais, como partidos políticos. O problema, avalia, é que as siglas funcionam como capitanias hereditárias. “Basta olhar a composição, quem é o presidente e o tesoureiro.”
Acesso à Justiça
O ministro do STJ defendeu, ainda, que grupos considerados vulneráveis ajam de forma mais efetiva no enfrentamento jurídico. Ele afirmou que é papel da sociedade provocar o Judiciário, embora quase 100% das ações civis públicas seja hoje movidas pelo Ministério Público. 
“É bom que [o MP] mova essas ações, mas a ACP não foi desenhada para criar um sistema de acesso à justiça estatizado ou estatizante. Foi para valorizar a cidadania, para criar mecanismos de acesso a sujeitos intermediários privados — associações, fundações —, mas esses não aparecem”, disse. 
O ministro afirmou que ainda é preciso confiar no Estado, mas o considera “quando os titulares sabem que, se os agentes públicos não exercerem seu múnus do acesso à Justiça, o cidadão estará organizado para ele mesmo, por meio das suas instituições, baterem às portas dos tribunais”.
Revista Consultor Jurídico, 27 de novembro de 2017

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Modificações da CLT podem fazer com que teletrabalho seja análogo à escravidão

Por Nicola Manna Piraino
I) O TRABALHO À DISTÂNCIA – Antecedentes e tipificação no ordenamento legal brasileiro
A modalidade do teletrabalho cresce a cada dia, em inúmeras atividades econômicas, no Brasil.
No início, o trabalho à distância se dava fora das instalações da empresa ou do estabelecimento patronal, mas era exclusivamente exercido no domicílio do empregado, e não ocorria com muita frequência, face as características bastante específicas, pois nem todos os trabalhadores e nem todos os empregos eram adequados à realização desta característica de prestação de serviços.
A CLT, no seu art 6º, disciplinava a matéria, com a seguinte redação: “Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego.”
Portanto, já se tinha uma base legal e jurídica, para a atividade laboral externa, vedando a distinção entre o trabalho executado na empresa e aquele praticado no domicílio do empregado, desde que, é claro, restasse caracterizada a existência dos requisitos estampados no art. 3º da CLT, como já dito, para a caracterização de uma relação de emprego, em setores bem específicos e reduzidos, ou seja, típico de costureiras, bordadeiras, sapateiros, modistas e desenhistas, por exemplo.
Inexistia, no entanto, uma regulamentação legal, para uma crescente atividade laboral, que era o trabalho à distância, impulsionado enormemente pelas novas tecnologias da informação e pelo avanço impressionante da informática e da computação.
Com a evolução da prestação de serviços, surgiram atividades típicas de teletrabalho, como por exemplo: a) INFORMÁTICA (Programação, Webdesign, Telereparação, etc.); b) JORNALISMO; c) ENSINO E FORMAÇÃO À DISTÂNCIA; d) PLANEJAMENTO E CONTROLE; e) CONSULTORIA (Fiscal, financeira, jurídica, gestão, corretagem, etc).; f) MARKETING (Telemarketing, publicidade, vendas por catálogo eletrônico, etc.); g) SEGURANÇA (Televigilância de instalações ou de pessoas); h) TRADUÇÃO (Teletradução remota ou online); i) ARQUITETURA E DESIGN; APOIO ADMINISTRATIVO (Tratamento de texto, edição eletrônica, marquetagem, etc.); j) MEDICINA (Telemedicina, Telediagnósticos, Teleradiologia e Telecirurgias, etc.)
II - VIGÊNCIA DA LEI 12.551, de 15 de dezembro de 2011, QUE DEU NOVA REDAÇÃO AO ART. 6º DA CLT -
A Lei do Teletrabalho (Lei 12.551/11), veio preencher uma lacuna importante em inúmeras atividades, ao reconhecer, expressamente, a modalidade de trabalho à distância, que antes era exclusivamente efetivada, repita-se, no domicílio do empregado.
É certo que o legislador, no particular, não realizou uma regulamentação específica para os teletrabalhadores, com a nova redação do artigo celetista mencionado, mas, de modo relevante, promoveu uma equiparação dos mesmos aos trabalhadores presenciais, que realizam suas atividades laborais nos estabelecimentos do empregador.
Com isto, restou reconhecido, expressamente, o trabalho à distância e os meios telemáticos e informatizados aplicáveis nessa modalidade de trabalho, face a velocidade na qual a tecnologia avança e muito, nos dias atuais, permitindo a prestação de serviços fora da sede da empresa, diferentemente dos moldes tradicionais, repita-se, efetuada no estabelecimento patronal.
III – CARACTERISTICAS DAS ATIVIDADES DOS TELETRABALHADORES
Uma das várias peculiaridades do teletrabalho é em relação à jornada de trabalho, e a possibilidade real e concreta de flexibilização do horário.
Como o trabalho é executado à distância e não sob os olhos do empregador, é certo que a subordinação está intimamente ligada ao resultado da atividade do prestador de serviços, com o seu controle, sendo irrelevante a tão necessária vigilância da atividade, tão presente na atividade do trabalhador, que execute seu trabalho, sob os olhos do patrão.
A lei brasileira não admitia, até a vigência das recentes alterações da CLT, e que estarão em vigor, a partir de 13 de novembro de 2017, a terceirização na atividade fim, nas relações de trabalho, restando tão somente a possibilidade de contratação dos serviços de vigilância e limpeza, e na atividade meio da empresa, desde que não estivessem presentes a pessoalidade e a subordinação direta, como já pacificado pelo TST, pela Súmula 331.
Portanto, no passado, era mais difícil o controle do horário de trabalho de um teletrabalhador, mas, com a evolução tecnológica, nos dias atuais, face os inúmeros meios de comunicações existentes, na crescente TI (tecnologia da informação), tais como intranet, web câmera, GPS, e-mails, WhatsApp, câmera de FaceTime de telefones celulares etc., este obstáculo restou superado, como se vê das decisões judiciais, em todas as instâncias trabalhistas.
O TST, através da sua Resolução 18/12 de 27.09.2012, alterou a Súmula 428 do TST, passando a admitir, expressamente, o controle de jornada de trabalho, para os empregados, que exercem trabalho à distância, controlados via instrumentos telemáticos ou informatizados, estabelecendo a jurisprudência dominante na matéria, desde então, permitindo-se, consequentemente, a existência ou não de labor extraordinário.
Até o advento da reforma trabalhista, portanto, que alterou profundamente a CLT, todos os teletrabalhadores estavam equiparados, em seus direitos, igualmente aos demais empregados, que trabalhavam em outros ambientes externos, e até mesmo nas instalações internas das empresas, inclusive aqueles relacionados no art. 7º da Constituição Federal.
IV – A REFORMA TRABALHISTA E O RETROCESSO DE DIREITOS PARA OS TELETRABALHADORES
Com a vigência da reforma trabalhista, com as modificações da CLT, através da Lei 13.467, de 13 de Julho de 2017, a partir de 13 de Novembro, a modalidade de prestação de serviços, através do teletrabalho é radicalmente alterada e as condições de trabalho, nesta modalidade, são rebaixadas, ou seja, é legalizada uma flagrante discriminação em relação a todos os demais os trabalhadores que exercem a suas atividades laborais à distância.
Alguns “especialistas” do mundo jurídico, avalistas da reforma trabalhista, sustentam, no particular, que que o teletrabalho é uma atividade da modernidade, e que se traduz na própria liberdade do empregado à distância, e que a jornada de trabalho, fora da empresa, não pode ser controlada.
Ao contrário de tal fantasiosa assertiva, o que ocorrerá, concretamente, é o rebaixamento do teletrabalhador, como se fosse um sub empregado ou um sub cidadão.
Portanto, como lógica cartesiana, se existente uma comunicação entre o empregador e o empregado, inclusive por equipamentos ou objetos de transmissão, é perfeitamente viável e crível o controle da jornada de trabalho, incluindo-se os intervalos diários, assim como o conteúdo da sua atividade produtiva, como fixado, quando da celebração do contrato de trabalho e, por consequência, no curso da sua vigência.
A alteração trazida, com isto, é negativa, pois até mesmo foi acrescentado um capítulo específico na CLT, com a expressão “Do Teletrabalho”, assim como foi introduzido o inciso III no artigo 62 do mesmo diploma legal, excluindo o empregado, nesta modalidade, do controle da sua jornada de trabalho.
Estamos, por conseguinte, diante da possibilidade factível da ocorrência de um enorme prejuízo monetário, para os empregados, que exercem ou exercerão suas atividades, sob a especificidade do teletrabalho, porque deixarão de perceber horas extras diurnas e noturnas, mesmo que possam trabalhar fora da jornada normal de trabalho, assim como deixarão também de receber adicional noturno e até mesmo gozar de intervalo intrajornada e entre uma jornada e outra.
Também deve ser destacada a fixação da responsabilidade do empregado, pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessários e adequados, à prestação do trabalho remoto, face a nova legislação de regência.
Mais, com esta mudança legislativa, o teletrabalhador deixa a sua condição de empregado, como antes estipulados na lei, na jurisprudência e na uníssona doutrina trabalhista, passando a assumir, na prática, o risco do negócio, encargo que sempre foi do empregador (vide art. 2º da CLT), gerando uma situação inusitada, ou seja, terá que desembolsar, sem ressarcimento, as despesas de seus instrumentos de trabalho, nivelando-se com o próprio empregador, na relação capital e trabalho.
Além disso, o empregado passará ser cobrado, pelo seu patrão, tão somente por metas estabelecidas, independentemente da carga horária diária e semanal, que tenha que realizar para atingi-las.
Não se deve esquecer, que tal alteração é prejudicial, para a saúde física e psicológica do trabalhador, pois passa a atribuir, ao mesmo, a responsabilidade pela prevenção e auto fiscalização de sua saúde e segurança, a fim de evitar lesões, doenças e acidentes no ambiente de trabalho, eximindo, em tese, o empregador de fiscalizá-lo, além de obstaculizar a própria fiscalização tanto do Ministério do Trabalho, como do Ministério Público do Trabalho, e, nesse aspecto, desrespeitando, inclusive, normas de proteção de índole constitucional (art. 7º, inc. XXII, da CF/1988).
Portanto, como concebido na reforma da CLT, poderá acarretar, por outro lado, no conjunto dos “prêmios”, enorme probabilidade do aumento da terceirização no teletrabalho, além de precarização da prestação de serviços, até porque o empregador buscará sempre o resultado das metas estabelecidas, repita-se à exaustão, independentemente das condições mínimas de trabalho e, como já destacado, do tempo diário e semanal dispendido, para a execução da atividade laboral.
V – CONCLUSÃO
  1. O teletrabalho, que faz parte de um cenário enormemente influenciado, enormemente, pelo fenômeno das inovações da tecnologia, como já destacado, por um retrocesso, a partir de 13 de novembro de 2017, nas relações trabalhistas.
Traduz como uma verdadeira capitis diminutio, o tratamento dispensado ao teletrabalhador, em comparação com os demais trabalhadores formais regidos pela CLT, sob a modalidade de atividade externa, com controle de jornada (vide art. 62, I, da CLT), ou seja, poderá, aquele empregado, trabalhar 10, 12, 14 horas ou mais, por dia, sem remuneração das extraordinárias, o que inclusive viola o princípio constitucional da isonomia de tratamento.
Ademais, horas extras, adicional noturno, intervalos intrajornada e entrejornada não usufruídos, na forma como preconizados, para o teletrabalho, sem a obrigatória contraprestação monetária, é como voltar à época da exploração do trabalhador, no curso da Revolução Industrial, na Europa, situação fortemente combatida, com a celebre edição da Encíclica Rerum Novarum, pelo Papa Leão XIII, em 1891.
Por relevante, cabe destacar o firme posicionamento, acerca das alterações da CLT sobre o teletrabalho, da jurista e magistrada, a Desembargadora do Trabalho Vólia Bomfim Cassar, do TRT da 1ª Região, na sua recente obra “Comentários à Reforma Trabalhista”, escrita em conjunto com o Desembargador do Trabalho, também do TRT da 1ª Região, Leonardo Dias Borges, Forense, São Paulo : Metodo, 2017, precisamente à folha 35, cuja transcrição é relevante, verbis: “.....Absurdo, por isto, o comando legal que exclui os teletrabalhadores de tantos benefícios pela mera presunção de que não são controlados. Estes deveriam ter os mesmos direitos de todos os demais trabalhadores externos. ....”
Em suma, a tendência de parte da magistratura trabalhista é aplicar as alterações da CLT, desde que não violem princípios e dispositivos constitucionais, assim como normas e princípios do direito e processo do trabalho, já assentados de há muito, além das Convenções Internacionais do Trabalho da OIT, como muito bem colocado na 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, realizada em Outubro passado em Brasília, com a edição de 125 Enunciados.
Não restam dúvidas, que as modificações da CLT, em relação ao teletrabalho, ao consentir a atividade laboral, sem qualquer limite de horário, mesmo sendo possível controlá-lo, como já destacado, pela moderna tecnologia da informação e de meios telemáticos, validará um trabalho análogo à escravidão, vulnerando, com isto, outro consagrado princípio da Constituição Federal, que é o da dignidade da pessoa humana.
Finalmente, a despeito desta profunda modificação, o contrato de trabalho, nos moldes celetistas, continuará pautado pela primazia da realidade, como brilhantemente professou o saudoso jurista Américo Pla Rodrigues, podendo, pois, ser objeto de questionamento judicial, se violado, mesmo em se tratando de teletrabalho, como lhe é assegurado, pelo princípio constitucional do acesso à Justiça, a todo cidadão que se sentir lesado ou ameaçado, em seus direitos, nos precisos termos do art. 5º XXV da Constituição Federal.
Revista Consultor Jurídico, 19 de novembro de 2017.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Tribunais fazem mutirão de conciliação com plano de saúde

Na busca pela implantação da Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos, prevista pela Resolução CNJ nº 125, muitos tribunais brasileiros passaram a fazer mutirões para promover acordos entre usuários e empresas.
Com mais de 30 mil processos em tramitação no País, a operadora de planos de saúde Amil decidiu procurar as unidades judiciárias e propor mutirões para colocar em pauta ações em que figura como ré. 
Desde maio, ao menos três tribunais estaduais fizeram audiências com objetivo de solucionar demandas relacionadas à cobertura, cancelamentos, reajustes de mensalidade de clientes da operadora.
O Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA) foi um dos primeiros a realizar ação com pauta específica da empresa. Em julho, houve a realização de 152 audiências, o que movimentou mais de R$ 230 mil em negociações. 
Coordenador do Núcleo Permanente de Solução de Conflitos (Nupemec) do TJMA, o juiz Alexandre Abreu, destaca que iniciativas como esta ajudam a consolidar uma mudança cultural. “O volume das demandas envolviam a Amil era grande e, com o mutirão, foi possível oferecer uma solução satisfatória para as partes”, afirma.
O magistrado explica que o trabalho é feito também com o objetivo de incentivar que as empresas abram cada vez mais canais de diálogo com o consumidor e assim minimizem os conflitos. “Buscamos conscientizar as empresas para que percebam como a decisão negociada é vantajosa e boa para todos”, afirma. De acordo com o Alexandre Abreu, o Nupemec mantém contato permanente com empresas de diversos segmentos com o objetivo de promover audiências de conciliação, entre elas construtoras, companhias públicas de serviços essenciais (como energia e água) e faculdades.  

Programa 

Com ideia semelhante, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) criou, em 2015, o programa Empresa e Municípios Amigos da Justiça, que estabelece compromissos de redução das ações judiciais. Cadastrada no projeto, em julho, a Amil participou de uma ação com pauta específica da empresa. Em julho, foram realizadas 46 audiências com processos nas varas cíveis do Fórum João Mendes Júnior e fechados 27 acordos. 
Coordenador do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) do TJSP, o juiz Ricardo Pereira Júnior destaca a importância da iniciativa. “Ao trazer prepostos bem preparados e com amplos poderes para negociar, o mutirão alcança bons resultados“, afirma. A Amil é uma das empresas cadastradas no programa Empresa e Municípios Amigos da Justiça, criado pelo tribunal em 2015 que estabelece compromissos de redução das ações judiciais. 
Atualmente, mais de 25 organizações são parceiras da iniciativa, como entidades bancárias, seguradoras, laboratórios farmacêuticos, empresas aéreas, entre outras. O acervo processual do tribunal paulista supera as 20 milhões de ações.

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Parcerias

O Nupemec e os Cejuscs do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) também mantém contato permanente com empresas para propor mutirões de conciliação. Desde 2010, o tribunal adotou um projeto de pauta concentrada nas conciliações, que reúne instituições interessadas em avaliar propostas de acordo com consumidores. Mas, em alguns casos, são as próprias empresas que procuram o TJDFT, como aconteceu com a Amil. 
Em outubro, o Cejusc de Brasília agendou 130 audiências, na primeira inciativa realizada com planos de saúde, e garantiu taxa de sucesso superior a 80%. Foram feitos acordos em ações nas mais variadas fases, de varas cíveis e juizados especiais e também da 2ª instância, independentemente de decisões anteriores favoráveis ou contrárias à empresa. “Conseguimos excelentes resultados em processos que estavam parados há anos”, diz a juíza Camille Gonçalves Javarine Ferreira, coordenadora do Cejusc de Brasília.
A magistrada destaca a importância da mudança de cultura de empresas e de consumidores na busca pela solução de conflitos por meio de acordo. “As pessoas percebem que conseguem resultados de maneira mais rápida. Como política pública, a conciliação é muito pedagógica”. 

Mudança

Foi justamente essa nova perspectiva que motivou a Amil a mudar a forma de dialogar com os seus associados. Responsável pelo projeto, o advogado do Jurídico Interno da empresa Gilson Matta explica que, diante do desafio de melhorar a comunicação com os clientes, a operadora institucionalizou a conciliação. “Começamos por mapear onde estavam as ações e, em seguida, estabelecemos contato com os tribunais para propor a possibilidade dos mutirões. ”
Iniciado em maio, o projeto apresenta resultados expressivos, com redução do estoque de 32.618 processos para 25.536. “Os índices de acordos mostram que estamos no caminho certo. Trata-se de um meio mais econômico e em que ninguém perde”, afirma Gilson Matta. Além da busca da solução por meio da conciliação, a empresa oferece cursos de capacitação para os funcionários que tratam diretamente com o público.
O reconhecimento da efetividade da prática gerou convites de tribunais de cinco unidades da Federação – Minas Gerais, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Distrito Federal – para participação na XII Semana Nacional da Conciliação. Serão realizadas audiências com clientes da Amil nas capitais de 27 de novembro a 1º de dezembro.   
  
Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Judiciário exerce poder autoritário na sociedade sem promover pacificação

No Fórum Regional da Leopoldina, na zona norte do Rio de Janeiro, o juiz André Tredinnick aplica uma técnica alternativa para resolver conflitos como partilha de bens em um divórcio e disputa pela guarda de filho: a constelação familiar.
Nessa técnica, as partes recriam suas relações por meio de representações, que podem ser feitas por bonecos ou por outras pessoas. A ideia é que os litigantes compreendam a origem de seus desentendimentos e busquem encontrar uma saída amigável para a questão. A prática vem se mostrando eficaz: dados preliminares apontam que 86% dos processos submetidos a ela acabam em acordo.
Criada pelo alemão Bert Hellinger, sob inspiração da cultura zulu, a constelação familiar foi trazida para o Judiciário brasileiro em 2012 pelo juiz Sami Storch, que atua no interior da Bahia. Após assistir a uma palestra do magistrado, Tredinnick — que é titular da 1ª Vara de Família de Leopoldina — decidiu aplicá-la no Rio. Para isso, montou uma equipe de especialistas no assunto, que conduzem as sessões.
Agora, ele, em parceria com o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, vem sistematizando os resultados da técnica, de forma a aprimorá-la e torná-la política pública. No momento, o método é empregado em 15 estados do país.
O juiz do Rio acredita que o Judiciário não promove pacificação social, pois é uma força autoritária, imposta de cima para baixo. Para melhorar o sistema, ele defende métodos que promovem autocomposição, a democratização da Justiça (com eleições diretas para presidentes de tribunais) e uma maior participação da sociedade na definição de políticas públicas.
Leia a entrevista:
ConJur — Como funciona o método da constelação familiar?
André Tredinnick
  O método funciona como uma dinâmica vivencial. As pessoas trazem uma questão e o constelador organiza essa dinâmica, fazer a vivência ocorrer. Por exemplo, se ele trabalhar com o método de pessoas, vai colocar indivíduos representado a questão que o “cliente” trouxe, a partir da vivência dele. Outro método representa a situação com bonecos. O criador da técnica, o alemão Bert Hellinger, criou as duas fórmulas, uma com pessoas e outra com bonecos. Temos usado as duas técnicas no fórum. Particularmente, prefiro a com pessoas, pois penso que, nela, a vivência é mais intensa. Já os bonecos nós usamos mais em sessões individuais ou com crianças. Às vezes, é mais fácil a criança falar alguma coisa por meio dos bonecos.
ConJur — Em que tipo de situação a constelação familiar pode ser aplicada?
André Tredinnick
  Um exemplo extremo: em um conflito familiar, quando as partes não sentam uma de frente para a outra, se sentam de lado. Não há comunicação eficaz. Mas aí mandamos as partes para a constelação familiar. Após esse processo, quando elas voltam, conseguem se olhar nos olhos, sentar frente a frente. É impressionante. Estamos analisando o impacto da constelação familiar, mas a impressão é que a falta de comunicação começa a se alterar já de primeira. É estranhíssimo, porque parece que dá uma maturidade às pessoas ou abre seus corações. Em um caso, o pai de uma criança morreu, e a mãe e a avó paterna disputavam a guarda do neto. A avó associava a criança ao pai. Quando fizemos a constelação familiar com bonecos, a criança conseguiu mostrar para a avó algo que ela nunca tinha falado: que adorava a avó, mas queria morar com a mãe. A avó, então, chorou muito, não entendeu nada, sua defensora alegou que a técnica não prestava. Mas ela sentiu. Depois de um tempo, em nova audiência, a avó disse que conseguiu ver que a criança queria ficar com a mãe. É muito impressionante. Nós temos uma serie de argumentações jurídicas, mas a parte raciocinou, percebeu que a criança tem uma vontade, uma opinião, conseguiu ter a empatia de olhar para ela e entender o que seria melhor para sua vida, superando o buraco emocional da morte de seu filho.
ConJur — Isso é mais eficaz do que a dinâmica regular do processo?
André Tredinnick
  É incrível e emblemático poder sair um pouco partir para uma nova dinâmica independente do curso do processo. Um casal, ele músico, ela produtora musical, se separou quando ele começava a fazer sucesso. Ela se sentia muito prejudicada na partilha de bens, porque ele, mesmo não se divorciando, já se separa de fato. Eles estavam disputando patrimônio. Então nós propusemos a constelação. Após fazerem duas dinâmicas ao longo de um mês, eles já conseguem se sentar frente a frente, já conseguem conversar sobre as relações de filhos, excluíram o tom de voz mais alto, os socos na mesa, aquela violência da discussão. Eles conseguiram desvincular a emoção do processo, criaram uma dinâmica comunicativa.
ConJur — Uma constelação familiar bem-sucedida é a que termina em acordo?
André Tredinnick
  Não necessariamente. No tribunal, nós temos essa ótica: o sucesso é medido pelo fato de ter havido acordo ou não. Mas nem sempre isso quer dizer que a técnica foi bem-sucedida, porque às vezes as pessoas descolam o litigio da relação e passam a aceitar melhor as consequências de uma decisão judicial.
ConJur — O senhor poderia explicar o passo a passo da constelação familiar em uma disputa de guarda de menor, por exemplo?
André Tredinnick
  A petição inicial é apresentada e começa o processo. A primeira coisa que fazemos é marcar uma oficina de parentalidade. O Conselho Nacional de Justiça recomenda essa prática em varas de Família, baseado no novo Código de Processo Civil, que tem um procedimento processual de próprio para casos de família. É reconhecida a particularidade do conflito de família. Na minha opinião, é um dos conflitos mais difíceis que existem, por conta da relação continuada e das emoções envolvidas. Assim, ao iniciar o processo, o juiz deve tentar a autocomposição das partes, intervindo de forma mínima. Deriva daí o convite que é feito as partes para aderir ou não à oficina de parentalidade.
Nisso, o juiz explica sumariamente para as partes como funciona o processo, que é uma dinâmica vivencial, na qual se pode vislumbrar o conflito, que não tem nada a ver com religião, psicoterapia, reencarnação. É feita uma limpeza das ideias equivocadas que podem existir sobre isso. Se a pessoa adere, é marcada imediatamente uma sessão próxima — temos a preocupação de que essas práticas não ultrapassem 60 dias. É feita uma dinâmica, então, em que se juntam varias partes, com vários processos diferentes. Aí, sim, há uma explicação mais detalhada de como vai ser a técnica para quem quiser permanecer, ou seja, quem já aderiu voluntariamente. Tem pessoas que não querem, querem o julgamento e saem da sala. Nesses casos, marcamos então a audiência de mediação ou de conciliação, e, se não houver acordo, procedemos ao julgamento.
Quem fica recebe uma explicação mais detalhada. Aí começam os convites de quem quer fazer a sua interpretação. A primeira dinâmica é das pessoas com os pais. Assim, a pessoa deve escolher duas pessoas que vão representar o seu pai e a sua mãe. Não é dito nada - ela deve sentir sua relação com o pai e com a mãe. Não é propriamente constelação, é uma técnica de entrada para a pessoa começa a abrir suas emoções, começa a deixar vazar a percepção, a autopercepção. Terminada essa dinâmica em que todos participam, as pessoas voltam aos seus lugares em círculo. Em seguida, pergunta-se se alguém quer representar um caso. Por exemplo, o sujeito está disputando a guarda do filho com sua ex-mulher. Daí perguntam-lhe quem ele quer colocar na cena. Sua ex-mulher? Seu pai? O filho? Um amigo? Aí vão colocando esses “personagens” e fica possível visualizar a cena.
ConJur — Quem coloca esses “personagens”?
André Tredinnick
  É o constelador, a equipe que trabalha voluntariamente no fórum. O pioneiro da constelação no Brasil, Sami Storch, um juiz do interior da Bahia, estudou com o Bert Helinger na Alemanha e organiza a técnica em seus processos. Quando ele veio ao Rio fazer um seminário sobre o assunto, fui procurar uma equipe que se chama Praxis. São consteladores que estudaram com a Virginia Satir, outra referência nos EUA sobre constelação, com o próprio Bert. Conversando com eles, eu sugeri aplicarmos a constelação no tribunal. Mas como não sou constelador e o Rio de Janeiro é uma comarca com mais recursos, preferi deixar o método na mão de técnicos. A princípio, imitamos a técnica do Sami Storch. Mas nós entendemos que o processo tinha que ser documentado todos os sentidos — fotos, entrevistas, gravações, dados. Agora estamos na fase de acompanhamento, de ver como os processos submetidos à constelação ficaram após um tempo. E temos visto que as pessoas não voltam à Justiça.
ConJur — E o que ocorre após escolherem quem representará os “personagens”?
André Tredinnick
  Tem início a constelação. Aí as pessoas visualizam o conflito. Às vezes elas sentem vontade de representar, para experimentar as emoções dos outros. Aí experimentam representar o pai, a mãe, experimentam sensações que não são delas. E ficam muito impressionadas, se emocionam muito. Quando termina uma representação de um caso, elas retornam a seus lugares. Daí se faz uma segunda, às vezes uma terceira representação. Caso seja detectada uma dificuldade naquele momento, se marca uma sessão individual própria daquela família, daquele caso, daquela dinâmica, que nunca é o caso em si. Nunca é, por exemplo, quem bateu na criança foi fulano. Não é isso, a pergunta nunca é essa. Geralmente a própria família da pessoa entendeu a sua dinâmica anterior, que levou àquele conflito. Esse é o objetivo. Quando essa etapa acaba, as partes saem com a data da audiência de autocomposição. É o primeiro ato processual propriamente dito. Nela, se as partes chegam a um acordo, eu o homologo; se não, eu julgo.
ConJur — O juiz — o senhor — está presente em todos os atos da constelação familiar?
André Tredinnick
  Não. Geralmente, eu gosto que as partes fiquem independentes, autônomas. Desde o início, a minha preocupação era não personalizar essa prática. Já vi várias inciativas inteligentíssimas e superinteressantes virarem lixo porque personalizam a pessoa, o juiz que a inventou, e quando ele se aposenta muda de carreira, ela é interrompida. O caminho, para mim, é tornar a prática uma política pública. Nós pensamos em apresentar uma ideia de formação de técnicos ou psicólogos pelo próprio Tribunal de Justiça. Então, eu prefiro não participar. No máximo, eu faço uma abertura, uma explicação. As partes gostam porque se sentem seguras.
ConJur — Há conflitos familiares para os quais a constelação é mais eficaz? E há situações em que ela é menos eficaz?
André Tredinnick
  Não. O que posso dizer é que quando os dois aceitam fazer a constelação, a eficácia é maior; quando um não vem, a eficácia é menor.
ConJur — Quais são os limites da constelação?
André Tredinnick
  A constelação não pode violar direitos fundamentais, como a liberdade de crença e de não crença. O espaço público não pode contemplar nenhum tipo de manifestação religiosa. Laicismo é um princípio fundamental do Estado Democrático de Direito. Essa é a minha maior preocupação. Para o nosso público, às a pessoa querer abrir com uma música já implica uma rejeição da técnica. Em um caso, uma terapeuta colocou uma música xamânica. Mas para alguns evangélicos, por exemplo, a canção parecia profana, e eles saíram da sala. Então, não dá para usar música. Incenso é outra coisa que gera rejeição, então é proibido. É preciso ter sutileza para respeitar todas as visões.
ConJur — Qual é a formação dos profissionais que conduzem a constelação familiar no tribunal?
André Tredinnick
  As pessoas que a praticam deve ter uma formação extensa, cursos de, no mínimo, dois anos, com uma supervisão constante. Justamente porque não tem uma formulação, queremos que o indivíduo tenha um mínimo de bagagem para fazer isso. Essa é uma exigência minha, para trabalharmos com pessoas com formação conhecida e reconhecida. Não basta ser uma pessoa legal, que faz o trabalho direito. Também é importante que não haja nenhum tipo de julgamento, nenhuma relação com o processo. A prática não tem que induzir, recomendar ou sugerir nada relacionado ao processo. A relação é familiar, é dinâmica, é da vida, da experiência daquela pessoa, não tem nada a ver com o processo.
ConJur — Como advogados encaram a constelação familiar?
André Tredinnick
  Usa-se muito a técnica em escritórios de advocacia. Tem advogados consteladores que logo propõem ao cliente fazer uma dinâmica, para ele entrar na causa mais com mais autopercepção. Advogados que fazem isso dizem que muda completamente a relação. Às vezes a pessoa até desiste de entrar com o processo, o que parece uma coisa contraditória para o advogado, né? Mas acho que o advogado percebe que o seu trabalho não é só entrar com o processo — até porque o sistema está sobrecarregado.
É preciso que nós deixemos de nos apegar a soluções autoritárias: ao estabelecermos que um juiz sempre sabe o que é melhor para uma família, para um réu ou para as partes em uma disputa de bens, estamos destruindo a possibilidade de convívio social. Temos que ter autocritica e continuar garantindo o Estado Democrático de Direito, mas não negando às pessoas o direito de autocompreensão, de autocomposição, que democratiza o processo. O Judiciário tem que ser radialmente democratizado. E não só internamente, mas também assegurando que as pessoas sejam realmente ouvidas. As pessoas têm direito de se manifestar e não serem robôs de uma causa.
ConJur — Há dados que mostrem a eficácia do método?
André Tredinnick
  Fizemos uma contagem provisória e chegamos a um percentual de acordo em 86% dos casos. Mas veja: acordo não quer dizer nem sucesso nem fracasso, porque ele pode não ser cumprido, pode haver não acordos em que as pessoas mudaram a dinâmica de relação. Temos trabalhado com o parâmetro mais comum, que é do Conselho Nacional de Justiça, que considera acordo o que encerra o processo. Nós agora vamos confrontar esse dado com os depoimentos e com a evolução do caso — ou seja, se houve reincidência, se houve medida para cumprir o acordo, se houve uma alegação de alienação parental posterior ao acordo. Mas os dados preliminares indicam que o percentual de acordos subiu de 50%, 60%, para 86% após a constelação familiar começar a ser aplicada.
ConJur — O Novo Código de Processo Civil colocou uma grande ênfase na mediação e na conciliação. A seu ver, esse é o melhor caminho para desafogar o Judiciário e para melhorar a resolução de conflitos?
André Tredinnick
  Eu tenho um problema com a questão de desafogar o Judiciário. Penso que o Judiciário inunda a sociedade, e não o contrário. O Judiciário cria espaços de totalidade, ele quer abraçar tudo. Por exemplo, o Juizado Especial Cível era uma grande sacada para as causas de menos complexidade. Em razão da lentidão, do fracasso, do tecnicismo e do bizantismo do Judiciário, buscou-se simplificar o rito. Mas o JEC uma inundação na sociedade, ele abarcou conflitos que eram resolvidos de outra forma. É uma grande loucura que no novo código tenha havido uma grande disputa para abranger outras questões familiares, como por exemplo, escolha de escola do filho. Isso para mim é inundação do Judiciário. Ele se expande antidemocraticamente pelo tecido social. E não é o caminho, porque não há pacificação social no Judiciário. Isso é impossível. O Judiciário é força, ele exerce um poder vertical e autoritário na sociedade. Ele deve ser exceção, não regra. Não tem solução judicial em que a pessoa saia satisfeita. Não existe a ideia de que “a Justiça foi feita”. Fora que isso acaba elitizando a Justiça. Com essa super expansão do sistema, só quem tem poder econômico ou político consegue transitar rapidamente pelo sistema.
No mais, a massa vai enfrentar o sistema mecanizado da Justiça. E para consertar essa doença da expansão, usamos critérios de produtividade do toyotismo, do fordismo, iguais aos usados por empresas privadas. Isso é muito perigoso, porque aumenta a mecanização, aumenta terceirização, muda a pessoa que produz as decisões, e aumentam os erros. E não é isso o que pretendemos. Temos técnicos recrutados da sociedade, muito bem pagos, que devem fazer seu trabalho com qualidade e personalização, no momento de sua intervenção para a garantia do Estado Democrático de Direito, mas não abarcando a totalidade da realidade. Isso é muito grave e antidemocrático.
ConJur — E como melhorar esse sistema?
André Tredinnick
  Se eu for falar em sonho, seria pela radicalização democrática do Judiciário, com controle social da atividade judicial. Isso não significa tribunais de exceção, tribunais populares, significa participação social. Por exemplo, a aplicação da constelação familiar. A lei permite, nós apresentamos os dados que mostram sua eficácia. Mas qual é a opinião da sociedade sobre isso? Eu não sei, porque tenho que me dirigir a uma cúpula que está presa a uma ideia de produtividade pelo juiz. Então, a primeira questão é a democratização radical de dentro do Judiciário, com eleições diretas para eleger a cúpula, e ouvir a sociedade quanto a políticas públicas. E também criar canais para se drenar esse maremoto, para que o Judiciário não seja a única solução possível. Assim, poderíamos conferir mais poder para o Procon, mais alternativas de resolução de conflitos em câmaras coletivas, mais foco em justiça restaurativa.
ConJur — Os advogados entenderam essa guinada em prol da resolução consensual de conflitos ou continuam presos a uma mentalidade litigiosa?
André Tredinnick
  A mentalidade dos advogados é totalmente litigiosa. Nós somos formados pela faculdade para brigar, para entrar com uma ação e ganhar a ação. E a gente despeja por ano milhares de advogados no sistema. Para pagar suas contas, o advogado vai ser criativo, vai aumentar o litígio. Então quando você chama um advogado para uma mediação, ele acha que está perdendo dinheiro. Um dos maiores esforços nossos é convencer juízes de que eles não estão perdendo poder com as resoluções alternativas de conflitos, e advogados, de que eles podem ganhar dinheiro com isso, de que eles podem cobrar para fazer a mediação, a conciliação.
ConJur — A constelação familiar pode ser aplicada a conflitos de outras áreas do Direito?
André Tredinnick
  Sim. Eu gostaria de experimentar essa solução para Juizados Especiais Criminais, onde há ofensas de menor importância. Por exemplo, a experiência do juizado do Leblon (zona sul do Rio), que é um bairro rico, mostra muitas brigas em condomínios que acabam em crimes contra a honra, ameaça, lesão corporal. É uma questão puramente de ausência de contato com as emoções. Essa uma dinâmica que poderia ser experimentada lá com muita clareza. No outro extremo, o juizado criminal acaba criminalizando condutas banais de pessoas humildes. Sem recursos de defesa, eles começam a experimentar o sistema criminal, que é extremamente segregatório - uma mácula dessa o indivíduo está fora do sistema funcional, não trabalha em lugar nenhum. Brigas familiares também poderiam ser humanizadas com a aplicação da constelação familiar. O método poderia ser usado em disputa de empresa familiar, disputa possessória envolvendo vizinhos que são parentes. O Ministério Público ainda poderia fazer aplicar a técnica com questões de idosos, por exemplo, da administração de bens de idoso.
ConJur — A aplicação da constelação familiar na área criminal poderia ajudar a diminuir a reincidência?
André Tredinnick
  Tenho muita confiança que sim. A dinâmica que leva a não consegui falar com o ex-cônjuge, que leva a agredir um filho, que leva a brigar com um vizinho é a dinâmica que leva a cometer um crime. Basta ver o impacto dos projetos de justiça restaurativa.
ConJur — Qual é a diferença entre a Justiça restaurativa e a constelação familiar?
André Tredinnick
  A Justiça restaurativa é outro sistema. Nela, não existe a figura do juiz, não existe um processo com a dinâmica de parte, autor e réu. Existe a dinâmica de construção da solução. O indivíduo não é o indivíduo que vai ser punido pelo Estado, é o indivíduo que cometeu algo reprovável em razão de uma pessoa — a subtração de um bem, um ato de violência que ele tem — e que deve reconhecer seu ato. Um exemplo de um livro dos EUA: um moleque roubou o carro do vizinho. Em vez de levar o caso para a Justiça, a vítima levou para a igreja local, onde promoveram uma reunião.
Nela, o garoto ouviu a vítima falar que tinha ficado muito chateada com o episódio, pois encontrou o carro com o vidro quebrado e ainda nem tinha acabado de pagá-lo. Envergonhados, os pais do garoto arranjaram um emprego num parente. A partir daí, o garoto se comprometeu a pagar em um certo número de parcelas o dano que causou, e a vítima aceitou as desculpas. Tem uma coisa muito interessante nisso: as vítimas do crime não são ouvidas, não querem saber o que elas sentiram. Só querem saber se o suspeito praticou ou não o crime. E aí o trem vai andando inexoravelmente para um ponto — o ponto da condenação. A Justiça restaurativa é algo incrível. Nós, que fazemos Justiça restaurativa, gostamos muitas vezes de entrar com a constelação familiar nela antes de começar o círculo, para a pessoa ter essa autopercepção da sua dinâmica — o que a levou a isso e, sobretudo, a humanização de sentir o outro, olhar no olho do outro. Não no sentido bíblico de culpa, mas no sentido de humanização: “olha, foi legal fazer aquilo, eu me senti transgressor, mas tem uma consequência: alguém ficou chateado, alguém foi prejudicado”. Em casos mais graves, que geraram lesão permanente, o efeito é impressionante.
Colocar um agressor de mulheres diante de uma vítima que perdeu o olho pelos ferimentos tem uma totalidade poderosa. Não é uma coisa romântica de perdoar, de se culpar. Não, é a percepção do humano. É isso que falta no sistema tradicional. Nós supostamente tornamos tudo científico, mas não resolvemos nada, porque o índice de reincidência nosso é abissal, nossa população carcerária é uma das maiores do mundo.
Revista Consultor Jurídico, 12 de novembro de 2017.