terça-feira, 28 de novembro de 2017

Acesso à Justiça e vulneráveis

As instituições brasileiras têm se tornado vulneráveis em meio à crise política e econômica, mas não há ferramentas adequadas de defesa para esse cenário. É o que declarou nesta segunda-feira (27/11) o ministro Herman Benjamin, do Superior Tribunal de Justiça, durante a XXIII Conferência da Nacional da Advocacia Brasileira.
“O próprio curso da República brasileira está ameaçado”, declarou Herman Benjamin em Conferência da Advocacia.
“Infelizmente não temos, no nosso modelo constitucional, mecanismos de defesa para, por exemplo, [resolver] a compra de medida provisória. O que eu vou fazer com uma lei comprada?”, questionou durante o evento, que será promovido em São Paulo até a próxima quinta-feira (30/11).
“O que acontece nos obriga a aprofundar o que entendemos por vulneráveis. Hoje, além das pessoas, os indivíduos e os grupos – consumidores, idosos, deficientes – passam a ser também as próprias instituições. Isso é uma concepção que há dois, três anos, se falássemos aqui, ninguém ia entender”, analisou o ministro, que foi convidado a abordar o tema “Acesso à Justiça e vulneráveis: premissas constitucionais”.
“O que vivemos não é mais o excepcional, e não nos bastam os mecanismos de proteção para quando o rio sai do curso. O próprio curso da República brasileira está ameaçado pela vulnerabilidade institucional”, complementou Benjamin.
Segundo o ministro, essa situação diz respeito também aos atores institucionais, como partidos políticos. O problema, avalia, é que as siglas funcionam como capitanias hereditárias. “Basta olhar a composição, quem é o presidente e o tesoureiro.”
Acesso à Justiça
O ministro do STJ defendeu, ainda, que grupos considerados vulneráveis ajam de forma mais efetiva no enfrentamento jurídico. Ele afirmou que é papel da sociedade provocar o Judiciário, embora quase 100% das ações civis públicas seja hoje movidas pelo Ministério Público. 
“É bom que [o MP] mova essas ações, mas a ACP não foi desenhada para criar um sistema de acesso à justiça estatizado ou estatizante. Foi para valorizar a cidadania, para criar mecanismos de acesso a sujeitos intermediários privados — associações, fundações —, mas esses não aparecem”, disse. 
O ministro afirmou que ainda é preciso confiar no Estado, mas o considera “quando os titulares sabem que, se os agentes públicos não exercerem seu múnus do acesso à Justiça, o cidadão estará organizado para ele mesmo, por meio das suas instituições, baterem às portas dos tribunais”.
Revista Consultor Jurídico, 27 de novembro de 2017

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Modificações da CLT podem fazer com que teletrabalho seja análogo à escravidão

Por Nicola Manna Piraino
I) O TRABALHO À DISTÂNCIA – Antecedentes e tipificação no ordenamento legal brasileiro
A modalidade do teletrabalho cresce a cada dia, em inúmeras atividades econômicas, no Brasil.
No início, o trabalho à distância se dava fora das instalações da empresa ou do estabelecimento patronal, mas era exclusivamente exercido no domicílio do empregado, e não ocorria com muita frequência, face as características bastante específicas, pois nem todos os trabalhadores e nem todos os empregos eram adequados à realização desta característica de prestação de serviços.
A CLT, no seu art 6º, disciplinava a matéria, com a seguinte redação: “Não se distingue entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego.”
Portanto, já se tinha uma base legal e jurídica, para a atividade laboral externa, vedando a distinção entre o trabalho executado na empresa e aquele praticado no domicílio do empregado, desde que, é claro, restasse caracterizada a existência dos requisitos estampados no art. 3º da CLT, como já dito, para a caracterização de uma relação de emprego, em setores bem específicos e reduzidos, ou seja, típico de costureiras, bordadeiras, sapateiros, modistas e desenhistas, por exemplo.
Inexistia, no entanto, uma regulamentação legal, para uma crescente atividade laboral, que era o trabalho à distância, impulsionado enormemente pelas novas tecnologias da informação e pelo avanço impressionante da informática e da computação.
Com a evolução da prestação de serviços, surgiram atividades típicas de teletrabalho, como por exemplo: a) INFORMÁTICA (Programação, Webdesign, Telereparação, etc.); b) JORNALISMO; c) ENSINO E FORMAÇÃO À DISTÂNCIA; d) PLANEJAMENTO E CONTROLE; e) CONSULTORIA (Fiscal, financeira, jurídica, gestão, corretagem, etc).; f) MARKETING (Telemarketing, publicidade, vendas por catálogo eletrônico, etc.); g) SEGURANÇA (Televigilância de instalações ou de pessoas); h) TRADUÇÃO (Teletradução remota ou online); i) ARQUITETURA E DESIGN; APOIO ADMINISTRATIVO (Tratamento de texto, edição eletrônica, marquetagem, etc.); j) MEDICINA (Telemedicina, Telediagnósticos, Teleradiologia e Telecirurgias, etc.)
II - VIGÊNCIA DA LEI 12.551, de 15 de dezembro de 2011, QUE DEU NOVA REDAÇÃO AO ART. 6º DA CLT -
A Lei do Teletrabalho (Lei 12.551/11), veio preencher uma lacuna importante em inúmeras atividades, ao reconhecer, expressamente, a modalidade de trabalho à distância, que antes era exclusivamente efetivada, repita-se, no domicílio do empregado.
É certo que o legislador, no particular, não realizou uma regulamentação específica para os teletrabalhadores, com a nova redação do artigo celetista mencionado, mas, de modo relevante, promoveu uma equiparação dos mesmos aos trabalhadores presenciais, que realizam suas atividades laborais nos estabelecimentos do empregador.
Com isto, restou reconhecido, expressamente, o trabalho à distância e os meios telemáticos e informatizados aplicáveis nessa modalidade de trabalho, face a velocidade na qual a tecnologia avança e muito, nos dias atuais, permitindo a prestação de serviços fora da sede da empresa, diferentemente dos moldes tradicionais, repita-se, efetuada no estabelecimento patronal.
III – CARACTERISTICAS DAS ATIVIDADES DOS TELETRABALHADORES
Uma das várias peculiaridades do teletrabalho é em relação à jornada de trabalho, e a possibilidade real e concreta de flexibilização do horário.
Como o trabalho é executado à distância e não sob os olhos do empregador, é certo que a subordinação está intimamente ligada ao resultado da atividade do prestador de serviços, com o seu controle, sendo irrelevante a tão necessária vigilância da atividade, tão presente na atividade do trabalhador, que execute seu trabalho, sob os olhos do patrão.
A lei brasileira não admitia, até a vigência das recentes alterações da CLT, e que estarão em vigor, a partir de 13 de novembro de 2017, a terceirização na atividade fim, nas relações de trabalho, restando tão somente a possibilidade de contratação dos serviços de vigilância e limpeza, e na atividade meio da empresa, desde que não estivessem presentes a pessoalidade e a subordinação direta, como já pacificado pelo TST, pela Súmula 331.
Portanto, no passado, era mais difícil o controle do horário de trabalho de um teletrabalhador, mas, com a evolução tecnológica, nos dias atuais, face os inúmeros meios de comunicações existentes, na crescente TI (tecnologia da informação), tais como intranet, web câmera, GPS, e-mails, WhatsApp, câmera de FaceTime de telefones celulares etc., este obstáculo restou superado, como se vê das decisões judiciais, em todas as instâncias trabalhistas.
O TST, através da sua Resolução 18/12 de 27.09.2012, alterou a Súmula 428 do TST, passando a admitir, expressamente, o controle de jornada de trabalho, para os empregados, que exercem trabalho à distância, controlados via instrumentos telemáticos ou informatizados, estabelecendo a jurisprudência dominante na matéria, desde então, permitindo-se, consequentemente, a existência ou não de labor extraordinário.
Até o advento da reforma trabalhista, portanto, que alterou profundamente a CLT, todos os teletrabalhadores estavam equiparados, em seus direitos, igualmente aos demais empregados, que trabalhavam em outros ambientes externos, e até mesmo nas instalações internas das empresas, inclusive aqueles relacionados no art. 7º da Constituição Federal.
IV – A REFORMA TRABALHISTA E O RETROCESSO DE DIREITOS PARA OS TELETRABALHADORES
Com a vigência da reforma trabalhista, com as modificações da CLT, através da Lei 13.467, de 13 de Julho de 2017, a partir de 13 de Novembro, a modalidade de prestação de serviços, através do teletrabalho é radicalmente alterada e as condições de trabalho, nesta modalidade, são rebaixadas, ou seja, é legalizada uma flagrante discriminação em relação a todos os demais os trabalhadores que exercem a suas atividades laborais à distância.
Alguns “especialistas” do mundo jurídico, avalistas da reforma trabalhista, sustentam, no particular, que que o teletrabalho é uma atividade da modernidade, e que se traduz na própria liberdade do empregado à distância, e que a jornada de trabalho, fora da empresa, não pode ser controlada.
Ao contrário de tal fantasiosa assertiva, o que ocorrerá, concretamente, é o rebaixamento do teletrabalhador, como se fosse um sub empregado ou um sub cidadão.
Portanto, como lógica cartesiana, se existente uma comunicação entre o empregador e o empregado, inclusive por equipamentos ou objetos de transmissão, é perfeitamente viável e crível o controle da jornada de trabalho, incluindo-se os intervalos diários, assim como o conteúdo da sua atividade produtiva, como fixado, quando da celebração do contrato de trabalho e, por consequência, no curso da sua vigência.
A alteração trazida, com isto, é negativa, pois até mesmo foi acrescentado um capítulo específico na CLT, com a expressão “Do Teletrabalho”, assim como foi introduzido o inciso III no artigo 62 do mesmo diploma legal, excluindo o empregado, nesta modalidade, do controle da sua jornada de trabalho.
Estamos, por conseguinte, diante da possibilidade factível da ocorrência de um enorme prejuízo monetário, para os empregados, que exercem ou exercerão suas atividades, sob a especificidade do teletrabalho, porque deixarão de perceber horas extras diurnas e noturnas, mesmo que possam trabalhar fora da jornada normal de trabalho, assim como deixarão também de receber adicional noturno e até mesmo gozar de intervalo intrajornada e entre uma jornada e outra.
Também deve ser destacada a fixação da responsabilidade do empregado, pela aquisição, manutenção ou fornecimento dos equipamentos tecnológicos e da infraestrutura necessários e adequados, à prestação do trabalho remoto, face a nova legislação de regência.
Mais, com esta mudança legislativa, o teletrabalhador deixa a sua condição de empregado, como antes estipulados na lei, na jurisprudência e na uníssona doutrina trabalhista, passando a assumir, na prática, o risco do negócio, encargo que sempre foi do empregador (vide art. 2º da CLT), gerando uma situação inusitada, ou seja, terá que desembolsar, sem ressarcimento, as despesas de seus instrumentos de trabalho, nivelando-se com o próprio empregador, na relação capital e trabalho.
Além disso, o empregado passará ser cobrado, pelo seu patrão, tão somente por metas estabelecidas, independentemente da carga horária diária e semanal, que tenha que realizar para atingi-las.
Não se deve esquecer, que tal alteração é prejudicial, para a saúde física e psicológica do trabalhador, pois passa a atribuir, ao mesmo, a responsabilidade pela prevenção e auto fiscalização de sua saúde e segurança, a fim de evitar lesões, doenças e acidentes no ambiente de trabalho, eximindo, em tese, o empregador de fiscalizá-lo, além de obstaculizar a própria fiscalização tanto do Ministério do Trabalho, como do Ministério Público do Trabalho, e, nesse aspecto, desrespeitando, inclusive, normas de proteção de índole constitucional (art. 7º, inc. XXII, da CF/1988).
Portanto, como concebido na reforma da CLT, poderá acarretar, por outro lado, no conjunto dos “prêmios”, enorme probabilidade do aumento da terceirização no teletrabalho, além de precarização da prestação de serviços, até porque o empregador buscará sempre o resultado das metas estabelecidas, repita-se à exaustão, independentemente das condições mínimas de trabalho e, como já destacado, do tempo diário e semanal dispendido, para a execução da atividade laboral.
V – CONCLUSÃO
  1. O teletrabalho, que faz parte de um cenário enormemente influenciado, enormemente, pelo fenômeno das inovações da tecnologia, como já destacado, por um retrocesso, a partir de 13 de novembro de 2017, nas relações trabalhistas.
Traduz como uma verdadeira capitis diminutio, o tratamento dispensado ao teletrabalhador, em comparação com os demais trabalhadores formais regidos pela CLT, sob a modalidade de atividade externa, com controle de jornada (vide art. 62, I, da CLT), ou seja, poderá, aquele empregado, trabalhar 10, 12, 14 horas ou mais, por dia, sem remuneração das extraordinárias, o que inclusive viola o princípio constitucional da isonomia de tratamento.
Ademais, horas extras, adicional noturno, intervalos intrajornada e entrejornada não usufruídos, na forma como preconizados, para o teletrabalho, sem a obrigatória contraprestação monetária, é como voltar à época da exploração do trabalhador, no curso da Revolução Industrial, na Europa, situação fortemente combatida, com a celebre edição da Encíclica Rerum Novarum, pelo Papa Leão XIII, em 1891.
Por relevante, cabe destacar o firme posicionamento, acerca das alterações da CLT sobre o teletrabalho, da jurista e magistrada, a Desembargadora do Trabalho Vólia Bomfim Cassar, do TRT da 1ª Região, na sua recente obra “Comentários à Reforma Trabalhista”, escrita em conjunto com o Desembargador do Trabalho, também do TRT da 1ª Região, Leonardo Dias Borges, Forense, São Paulo : Metodo, 2017, precisamente à folha 35, cuja transcrição é relevante, verbis: “.....Absurdo, por isto, o comando legal que exclui os teletrabalhadores de tantos benefícios pela mera presunção de que não são controlados. Estes deveriam ter os mesmos direitos de todos os demais trabalhadores externos. ....”
Em suma, a tendência de parte da magistratura trabalhista é aplicar as alterações da CLT, desde que não violem princípios e dispositivos constitucionais, assim como normas e princípios do direito e processo do trabalho, já assentados de há muito, além das Convenções Internacionais do Trabalho da OIT, como muito bem colocado na 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, realizada em Outubro passado em Brasília, com a edição de 125 Enunciados.
Não restam dúvidas, que as modificações da CLT, em relação ao teletrabalho, ao consentir a atividade laboral, sem qualquer limite de horário, mesmo sendo possível controlá-lo, como já destacado, pela moderna tecnologia da informação e de meios telemáticos, validará um trabalho análogo à escravidão, vulnerando, com isto, outro consagrado princípio da Constituição Federal, que é o da dignidade da pessoa humana.
Finalmente, a despeito desta profunda modificação, o contrato de trabalho, nos moldes celetistas, continuará pautado pela primazia da realidade, como brilhantemente professou o saudoso jurista Américo Pla Rodrigues, podendo, pois, ser objeto de questionamento judicial, se violado, mesmo em se tratando de teletrabalho, como lhe é assegurado, pelo princípio constitucional do acesso à Justiça, a todo cidadão que se sentir lesado ou ameaçado, em seus direitos, nos precisos termos do art. 5º XXV da Constituição Federal.
Revista Consultor Jurídico, 19 de novembro de 2017.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Tribunais fazem mutirão de conciliação com plano de saúde

Na busca pela implantação da Política Judiciária Nacional de Tratamento Adequado dos Conflitos, prevista pela Resolução CNJ nº 125, muitos tribunais brasileiros passaram a fazer mutirões para promover acordos entre usuários e empresas.
Com mais de 30 mil processos em tramitação no País, a operadora de planos de saúde Amil decidiu procurar as unidades judiciárias e propor mutirões para colocar em pauta ações em que figura como ré. 
Desde maio, ao menos três tribunais estaduais fizeram audiências com objetivo de solucionar demandas relacionadas à cobertura, cancelamentos, reajustes de mensalidade de clientes da operadora.
O Tribunal de Justiça do Maranhão (TJMA) foi um dos primeiros a realizar ação com pauta específica da empresa. Em julho, houve a realização de 152 audiências, o que movimentou mais de R$ 230 mil em negociações. 
Coordenador do Núcleo Permanente de Solução de Conflitos (Nupemec) do TJMA, o juiz Alexandre Abreu, destaca que iniciativas como esta ajudam a consolidar uma mudança cultural. “O volume das demandas envolviam a Amil era grande e, com o mutirão, foi possível oferecer uma solução satisfatória para as partes”, afirma.
O magistrado explica que o trabalho é feito também com o objetivo de incentivar que as empresas abram cada vez mais canais de diálogo com o consumidor e assim minimizem os conflitos. “Buscamos conscientizar as empresas para que percebam como a decisão negociada é vantajosa e boa para todos”, afirma. De acordo com o Alexandre Abreu, o Nupemec mantém contato permanente com empresas de diversos segmentos com o objetivo de promover audiências de conciliação, entre elas construtoras, companhias públicas de serviços essenciais (como energia e água) e faculdades.  

Programa 

Com ideia semelhante, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) criou, em 2015, o programa Empresa e Municípios Amigos da Justiça, que estabelece compromissos de redução das ações judiciais. Cadastrada no projeto, em julho, a Amil participou de uma ação com pauta específica da empresa. Em julho, foram realizadas 46 audiências com processos nas varas cíveis do Fórum João Mendes Júnior e fechados 27 acordos. 
Coordenador do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc) do TJSP, o juiz Ricardo Pereira Júnior destaca a importância da iniciativa. “Ao trazer prepostos bem preparados e com amplos poderes para negociar, o mutirão alcança bons resultados“, afirma. A Amil é uma das empresas cadastradas no programa Empresa e Municípios Amigos da Justiça, criado pelo tribunal em 2015 que estabelece compromissos de redução das ações judiciais. 
Atualmente, mais de 25 organizações são parceiras da iniciativa, como entidades bancárias, seguradoras, laboratórios farmacêuticos, empresas aéreas, entre outras. O acervo processual do tribunal paulista supera as 20 milhões de ações.

files/conteudo/imagem/2017/11/d77d421df1fc1ac1ad3aa7c1683ebd5f.png

Parcerias

O Nupemec e os Cejuscs do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) também mantém contato permanente com empresas para propor mutirões de conciliação. Desde 2010, o tribunal adotou um projeto de pauta concentrada nas conciliações, que reúne instituições interessadas em avaliar propostas de acordo com consumidores. Mas, em alguns casos, são as próprias empresas que procuram o TJDFT, como aconteceu com a Amil. 
Em outubro, o Cejusc de Brasília agendou 130 audiências, na primeira inciativa realizada com planos de saúde, e garantiu taxa de sucesso superior a 80%. Foram feitos acordos em ações nas mais variadas fases, de varas cíveis e juizados especiais e também da 2ª instância, independentemente de decisões anteriores favoráveis ou contrárias à empresa. “Conseguimos excelentes resultados em processos que estavam parados há anos”, diz a juíza Camille Gonçalves Javarine Ferreira, coordenadora do Cejusc de Brasília.
A magistrada destaca a importância da mudança de cultura de empresas e de consumidores na busca pela solução de conflitos por meio de acordo. “As pessoas percebem que conseguem resultados de maneira mais rápida. Como política pública, a conciliação é muito pedagógica”. 

Mudança

Foi justamente essa nova perspectiva que motivou a Amil a mudar a forma de dialogar com os seus associados. Responsável pelo projeto, o advogado do Jurídico Interno da empresa Gilson Matta explica que, diante do desafio de melhorar a comunicação com os clientes, a operadora institucionalizou a conciliação. “Começamos por mapear onde estavam as ações e, em seguida, estabelecemos contato com os tribunais para propor a possibilidade dos mutirões. ”
Iniciado em maio, o projeto apresenta resultados expressivos, com redução do estoque de 32.618 processos para 25.536. “Os índices de acordos mostram que estamos no caminho certo. Trata-se de um meio mais econômico e em que ninguém perde”, afirma Gilson Matta. Além da busca da solução por meio da conciliação, a empresa oferece cursos de capacitação para os funcionários que tratam diretamente com o público.
O reconhecimento da efetividade da prática gerou convites de tribunais de cinco unidades da Federação – Minas Gerais, Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Distrito Federal – para participação na XII Semana Nacional da Conciliação. Serão realizadas audiências com clientes da Amil nas capitais de 27 de novembro a 1º de dezembro.   
  
Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Judiciário exerce poder autoritário na sociedade sem promover pacificação

No Fórum Regional da Leopoldina, na zona norte do Rio de Janeiro, o juiz André Tredinnick aplica uma técnica alternativa para resolver conflitos como partilha de bens em um divórcio e disputa pela guarda de filho: a constelação familiar.
Nessa técnica, as partes recriam suas relações por meio de representações, que podem ser feitas por bonecos ou por outras pessoas. A ideia é que os litigantes compreendam a origem de seus desentendimentos e busquem encontrar uma saída amigável para a questão. A prática vem se mostrando eficaz: dados preliminares apontam que 86% dos processos submetidos a ela acabam em acordo.
Criada pelo alemão Bert Hellinger, sob inspiração da cultura zulu, a constelação familiar foi trazida para o Judiciário brasileiro em 2012 pelo juiz Sami Storch, que atua no interior da Bahia. Após assistir a uma palestra do magistrado, Tredinnick — que é titular da 1ª Vara de Família de Leopoldina — decidiu aplicá-la no Rio. Para isso, montou uma equipe de especialistas no assunto, que conduzem as sessões.
Agora, ele, em parceria com o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, vem sistematizando os resultados da técnica, de forma a aprimorá-la e torná-la política pública. No momento, o método é empregado em 15 estados do país.
O juiz do Rio acredita que o Judiciário não promove pacificação social, pois é uma força autoritária, imposta de cima para baixo. Para melhorar o sistema, ele defende métodos que promovem autocomposição, a democratização da Justiça (com eleições diretas para presidentes de tribunais) e uma maior participação da sociedade na definição de políticas públicas.
Leia a entrevista:
ConJur — Como funciona o método da constelação familiar?
André Tredinnick
  O método funciona como uma dinâmica vivencial. As pessoas trazem uma questão e o constelador organiza essa dinâmica, fazer a vivência ocorrer. Por exemplo, se ele trabalhar com o método de pessoas, vai colocar indivíduos representado a questão que o “cliente” trouxe, a partir da vivência dele. Outro método representa a situação com bonecos. O criador da técnica, o alemão Bert Hellinger, criou as duas fórmulas, uma com pessoas e outra com bonecos. Temos usado as duas técnicas no fórum. Particularmente, prefiro a com pessoas, pois penso que, nela, a vivência é mais intensa. Já os bonecos nós usamos mais em sessões individuais ou com crianças. Às vezes, é mais fácil a criança falar alguma coisa por meio dos bonecos.
ConJur — Em que tipo de situação a constelação familiar pode ser aplicada?
André Tredinnick
  Um exemplo extremo: em um conflito familiar, quando as partes não sentam uma de frente para a outra, se sentam de lado. Não há comunicação eficaz. Mas aí mandamos as partes para a constelação familiar. Após esse processo, quando elas voltam, conseguem se olhar nos olhos, sentar frente a frente. É impressionante. Estamos analisando o impacto da constelação familiar, mas a impressão é que a falta de comunicação começa a se alterar já de primeira. É estranhíssimo, porque parece que dá uma maturidade às pessoas ou abre seus corações. Em um caso, o pai de uma criança morreu, e a mãe e a avó paterna disputavam a guarda do neto. A avó associava a criança ao pai. Quando fizemos a constelação familiar com bonecos, a criança conseguiu mostrar para a avó algo que ela nunca tinha falado: que adorava a avó, mas queria morar com a mãe. A avó, então, chorou muito, não entendeu nada, sua defensora alegou que a técnica não prestava. Mas ela sentiu. Depois de um tempo, em nova audiência, a avó disse que conseguiu ver que a criança queria ficar com a mãe. É muito impressionante. Nós temos uma serie de argumentações jurídicas, mas a parte raciocinou, percebeu que a criança tem uma vontade, uma opinião, conseguiu ter a empatia de olhar para ela e entender o que seria melhor para sua vida, superando o buraco emocional da morte de seu filho.
ConJur — Isso é mais eficaz do que a dinâmica regular do processo?
André Tredinnick
  É incrível e emblemático poder sair um pouco partir para uma nova dinâmica independente do curso do processo. Um casal, ele músico, ela produtora musical, se separou quando ele começava a fazer sucesso. Ela se sentia muito prejudicada na partilha de bens, porque ele, mesmo não se divorciando, já se separa de fato. Eles estavam disputando patrimônio. Então nós propusemos a constelação. Após fazerem duas dinâmicas ao longo de um mês, eles já conseguem se sentar frente a frente, já conseguem conversar sobre as relações de filhos, excluíram o tom de voz mais alto, os socos na mesa, aquela violência da discussão. Eles conseguiram desvincular a emoção do processo, criaram uma dinâmica comunicativa.
ConJur — Uma constelação familiar bem-sucedida é a que termina em acordo?
André Tredinnick
  Não necessariamente. No tribunal, nós temos essa ótica: o sucesso é medido pelo fato de ter havido acordo ou não. Mas nem sempre isso quer dizer que a técnica foi bem-sucedida, porque às vezes as pessoas descolam o litigio da relação e passam a aceitar melhor as consequências de uma decisão judicial.
ConJur — O senhor poderia explicar o passo a passo da constelação familiar em uma disputa de guarda de menor, por exemplo?
André Tredinnick
  A petição inicial é apresentada e começa o processo. A primeira coisa que fazemos é marcar uma oficina de parentalidade. O Conselho Nacional de Justiça recomenda essa prática em varas de Família, baseado no novo Código de Processo Civil, que tem um procedimento processual de próprio para casos de família. É reconhecida a particularidade do conflito de família. Na minha opinião, é um dos conflitos mais difíceis que existem, por conta da relação continuada e das emoções envolvidas. Assim, ao iniciar o processo, o juiz deve tentar a autocomposição das partes, intervindo de forma mínima. Deriva daí o convite que é feito as partes para aderir ou não à oficina de parentalidade.
Nisso, o juiz explica sumariamente para as partes como funciona o processo, que é uma dinâmica vivencial, na qual se pode vislumbrar o conflito, que não tem nada a ver com religião, psicoterapia, reencarnação. É feita uma limpeza das ideias equivocadas que podem existir sobre isso. Se a pessoa adere, é marcada imediatamente uma sessão próxima — temos a preocupação de que essas práticas não ultrapassem 60 dias. É feita uma dinâmica, então, em que se juntam varias partes, com vários processos diferentes. Aí, sim, há uma explicação mais detalhada de como vai ser a técnica para quem quiser permanecer, ou seja, quem já aderiu voluntariamente. Tem pessoas que não querem, querem o julgamento e saem da sala. Nesses casos, marcamos então a audiência de mediação ou de conciliação, e, se não houver acordo, procedemos ao julgamento.
Quem fica recebe uma explicação mais detalhada. Aí começam os convites de quem quer fazer a sua interpretação. A primeira dinâmica é das pessoas com os pais. Assim, a pessoa deve escolher duas pessoas que vão representar o seu pai e a sua mãe. Não é dito nada - ela deve sentir sua relação com o pai e com a mãe. Não é propriamente constelação, é uma técnica de entrada para a pessoa começa a abrir suas emoções, começa a deixar vazar a percepção, a autopercepção. Terminada essa dinâmica em que todos participam, as pessoas voltam aos seus lugares em círculo. Em seguida, pergunta-se se alguém quer representar um caso. Por exemplo, o sujeito está disputando a guarda do filho com sua ex-mulher. Daí perguntam-lhe quem ele quer colocar na cena. Sua ex-mulher? Seu pai? O filho? Um amigo? Aí vão colocando esses “personagens” e fica possível visualizar a cena.
ConJur — Quem coloca esses “personagens”?
André Tredinnick
  É o constelador, a equipe que trabalha voluntariamente no fórum. O pioneiro da constelação no Brasil, Sami Storch, um juiz do interior da Bahia, estudou com o Bert Helinger na Alemanha e organiza a técnica em seus processos. Quando ele veio ao Rio fazer um seminário sobre o assunto, fui procurar uma equipe que se chama Praxis. São consteladores que estudaram com a Virginia Satir, outra referência nos EUA sobre constelação, com o próprio Bert. Conversando com eles, eu sugeri aplicarmos a constelação no tribunal. Mas como não sou constelador e o Rio de Janeiro é uma comarca com mais recursos, preferi deixar o método na mão de técnicos. A princípio, imitamos a técnica do Sami Storch. Mas nós entendemos que o processo tinha que ser documentado todos os sentidos — fotos, entrevistas, gravações, dados. Agora estamos na fase de acompanhamento, de ver como os processos submetidos à constelação ficaram após um tempo. E temos visto que as pessoas não voltam à Justiça.
ConJur — E o que ocorre após escolherem quem representará os “personagens”?
André Tredinnick
  Tem início a constelação. Aí as pessoas visualizam o conflito. Às vezes elas sentem vontade de representar, para experimentar as emoções dos outros. Aí experimentam representar o pai, a mãe, experimentam sensações que não são delas. E ficam muito impressionadas, se emocionam muito. Quando termina uma representação de um caso, elas retornam a seus lugares. Daí se faz uma segunda, às vezes uma terceira representação. Caso seja detectada uma dificuldade naquele momento, se marca uma sessão individual própria daquela família, daquele caso, daquela dinâmica, que nunca é o caso em si. Nunca é, por exemplo, quem bateu na criança foi fulano. Não é isso, a pergunta nunca é essa. Geralmente a própria família da pessoa entendeu a sua dinâmica anterior, que levou àquele conflito. Esse é o objetivo. Quando essa etapa acaba, as partes saem com a data da audiência de autocomposição. É o primeiro ato processual propriamente dito. Nela, se as partes chegam a um acordo, eu o homologo; se não, eu julgo.
ConJur — O juiz — o senhor — está presente em todos os atos da constelação familiar?
André Tredinnick
  Não. Geralmente, eu gosto que as partes fiquem independentes, autônomas. Desde o início, a minha preocupação era não personalizar essa prática. Já vi várias inciativas inteligentíssimas e superinteressantes virarem lixo porque personalizam a pessoa, o juiz que a inventou, e quando ele se aposenta muda de carreira, ela é interrompida. O caminho, para mim, é tornar a prática uma política pública. Nós pensamos em apresentar uma ideia de formação de técnicos ou psicólogos pelo próprio Tribunal de Justiça. Então, eu prefiro não participar. No máximo, eu faço uma abertura, uma explicação. As partes gostam porque se sentem seguras.
ConJur — Há conflitos familiares para os quais a constelação é mais eficaz? E há situações em que ela é menos eficaz?
André Tredinnick
  Não. O que posso dizer é que quando os dois aceitam fazer a constelação, a eficácia é maior; quando um não vem, a eficácia é menor.
ConJur — Quais são os limites da constelação?
André Tredinnick
  A constelação não pode violar direitos fundamentais, como a liberdade de crença e de não crença. O espaço público não pode contemplar nenhum tipo de manifestação religiosa. Laicismo é um princípio fundamental do Estado Democrático de Direito. Essa é a minha maior preocupação. Para o nosso público, às a pessoa querer abrir com uma música já implica uma rejeição da técnica. Em um caso, uma terapeuta colocou uma música xamânica. Mas para alguns evangélicos, por exemplo, a canção parecia profana, e eles saíram da sala. Então, não dá para usar música. Incenso é outra coisa que gera rejeição, então é proibido. É preciso ter sutileza para respeitar todas as visões.
ConJur — Qual é a formação dos profissionais que conduzem a constelação familiar no tribunal?
André Tredinnick
  As pessoas que a praticam deve ter uma formação extensa, cursos de, no mínimo, dois anos, com uma supervisão constante. Justamente porque não tem uma formulação, queremos que o indivíduo tenha um mínimo de bagagem para fazer isso. Essa é uma exigência minha, para trabalharmos com pessoas com formação conhecida e reconhecida. Não basta ser uma pessoa legal, que faz o trabalho direito. Também é importante que não haja nenhum tipo de julgamento, nenhuma relação com o processo. A prática não tem que induzir, recomendar ou sugerir nada relacionado ao processo. A relação é familiar, é dinâmica, é da vida, da experiência daquela pessoa, não tem nada a ver com o processo.
ConJur — Como advogados encaram a constelação familiar?
André Tredinnick
  Usa-se muito a técnica em escritórios de advocacia. Tem advogados consteladores que logo propõem ao cliente fazer uma dinâmica, para ele entrar na causa mais com mais autopercepção. Advogados que fazem isso dizem que muda completamente a relação. Às vezes a pessoa até desiste de entrar com o processo, o que parece uma coisa contraditória para o advogado, né? Mas acho que o advogado percebe que o seu trabalho não é só entrar com o processo — até porque o sistema está sobrecarregado.
É preciso que nós deixemos de nos apegar a soluções autoritárias: ao estabelecermos que um juiz sempre sabe o que é melhor para uma família, para um réu ou para as partes em uma disputa de bens, estamos destruindo a possibilidade de convívio social. Temos que ter autocritica e continuar garantindo o Estado Democrático de Direito, mas não negando às pessoas o direito de autocompreensão, de autocomposição, que democratiza o processo. O Judiciário tem que ser radialmente democratizado. E não só internamente, mas também assegurando que as pessoas sejam realmente ouvidas. As pessoas têm direito de se manifestar e não serem robôs de uma causa.
ConJur — Há dados que mostrem a eficácia do método?
André Tredinnick
  Fizemos uma contagem provisória e chegamos a um percentual de acordo em 86% dos casos. Mas veja: acordo não quer dizer nem sucesso nem fracasso, porque ele pode não ser cumprido, pode haver não acordos em que as pessoas mudaram a dinâmica de relação. Temos trabalhado com o parâmetro mais comum, que é do Conselho Nacional de Justiça, que considera acordo o que encerra o processo. Nós agora vamos confrontar esse dado com os depoimentos e com a evolução do caso — ou seja, se houve reincidência, se houve medida para cumprir o acordo, se houve uma alegação de alienação parental posterior ao acordo. Mas os dados preliminares indicam que o percentual de acordos subiu de 50%, 60%, para 86% após a constelação familiar começar a ser aplicada.
ConJur — O Novo Código de Processo Civil colocou uma grande ênfase na mediação e na conciliação. A seu ver, esse é o melhor caminho para desafogar o Judiciário e para melhorar a resolução de conflitos?
André Tredinnick
  Eu tenho um problema com a questão de desafogar o Judiciário. Penso que o Judiciário inunda a sociedade, e não o contrário. O Judiciário cria espaços de totalidade, ele quer abraçar tudo. Por exemplo, o Juizado Especial Cível era uma grande sacada para as causas de menos complexidade. Em razão da lentidão, do fracasso, do tecnicismo e do bizantismo do Judiciário, buscou-se simplificar o rito. Mas o JEC uma inundação na sociedade, ele abarcou conflitos que eram resolvidos de outra forma. É uma grande loucura que no novo código tenha havido uma grande disputa para abranger outras questões familiares, como por exemplo, escolha de escola do filho. Isso para mim é inundação do Judiciário. Ele se expande antidemocraticamente pelo tecido social. E não é o caminho, porque não há pacificação social no Judiciário. Isso é impossível. O Judiciário é força, ele exerce um poder vertical e autoritário na sociedade. Ele deve ser exceção, não regra. Não tem solução judicial em que a pessoa saia satisfeita. Não existe a ideia de que “a Justiça foi feita”. Fora que isso acaba elitizando a Justiça. Com essa super expansão do sistema, só quem tem poder econômico ou político consegue transitar rapidamente pelo sistema.
No mais, a massa vai enfrentar o sistema mecanizado da Justiça. E para consertar essa doença da expansão, usamos critérios de produtividade do toyotismo, do fordismo, iguais aos usados por empresas privadas. Isso é muito perigoso, porque aumenta a mecanização, aumenta terceirização, muda a pessoa que produz as decisões, e aumentam os erros. E não é isso o que pretendemos. Temos técnicos recrutados da sociedade, muito bem pagos, que devem fazer seu trabalho com qualidade e personalização, no momento de sua intervenção para a garantia do Estado Democrático de Direito, mas não abarcando a totalidade da realidade. Isso é muito grave e antidemocrático.
ConJur — E como melhorar esse sistema?
André Tredinnick
  Se eu for falar em sonho, seria pela radicalização democrática do Judiciário, com controle social da atividade judicial. Isso não significa tribunais de exceção, tribunais populares, significa participação social. Por exemplo, a aplicação da constelação familiar. A lei permite, nós apresentamos os dados que mostram sua eficácia. Mas qual é a opinião da sociedade sobre isso? Eu não sei, porque tenho que me dirigir a uma cúpula que está presa a uma ideia de produtividade pelo juiz. Então, a primeira questão é a democratização radical de dentro do Judiciário, com eleições diretas para eleger a cúpula, e ouvir a sociedade quanto a políticas públicas. E também criar canais para se drenar esse maremoto, para que o Judiciário não seja a única solução possível. Assim, poderíamos conferir mais poder para o Procon, mais alternativas de resolução de conflitos em câmaras coletivas, mais foco em justiça restaurativa.
ConJur — Os advogados entenderam essa guinada em prol da resolução consensual de conflitos ou continuam presos a uma mentalidade litigiosa?
André Tredinnick
  A mentalidade dos advogados é totalmente litigiosa. Nós somos formados pela faculdade para brigar, para entrar com uma ação e ganhar a ação. E a gente despeja por ano milhares de advogados no sistema. Para pagar suas contas, o advogado vai ser criativo, vai aumentar o litígio. Então quando você chama um advogado para uma mediação, ele acha que está perdendo dinheiro. Um dos maiores esforços nossos é convencer juízes de que eles não estão perdendo poder com as resoluções alternativas de conflitos, e advogados, de que eles podem ganhar dinheiro com isso, de que eles podem cobrar para fazer a mediação, a conciliação.
ConJur — A constelação familiar pode ser aplicada a conflitos de outras áreas do Direito?
André Tredinnick
  Sim. Eu gostaria de experimentar essa solução para Juizados Especiais Criminais, onde há ofensas de menor importância. Por exemplo, a experiência do juizado do Leblon (zona sul do Rio), que é um bairro rico, mostra muitas brigas em condomínios que acabam em crimes contra a honra, ameaça, lesão corporal. É uma questão puramente de ausência de contato com as emoções. Essa uma dinâmica que poderia ser experimentada lá com muita clareza. No outro extremo, o juizado criminal acaba criminalizando condutas banais de pessoas humildes. Sem recursos de defesa, eles começam a experimentar o sistema criminal, que é extremamente segregatório - uma mácula dessa o indivíduo está fora do sistema funcional, não trabalha em lugar nenhum. Brigas familiares também poderiam ser humanizadas com a aplicação da constelação familiar. O método poderia ser usado em disputa de empresa familiar, disputa possessória envolvendo vizinhos que são parentes. O Ministério Público ainda poderia fazer aplicar a técnica com questões de idosos, por exemplo, da administração de bens de idoso.
ConJur — A aplicação da constelação familiar na área criminal poderia ajudar a diminuir a reincidência?
André Tredinnick
  Tenho muita confiança que sim. A dinâmica que leva a não consegui falar com o ex-cônjuge, que leva a agredir um filho, que leva a brigar com um vizinho é a dinâmica que leva a cometer um crime. Basta ver o impacto dos projetos de justiça restaurativa.
ConJur — Qual é a diferença entre a Justiça restaurativa e a constelação familiar?
André Tredinnick
  A Justiça restaurativa é outro sistema. Nela, não existe a figura do juiz, não existe um processo com a dinâmica de parte, autor e réu. Existe a dinâmica de construção da solução. O indivíduo não é o indivíduo que vai ser punido pelo Estado, é o indivíduo que cometeu algo reprovável em razão de uma pessoa — a subtração de um bem, um ato de violência que ele tem — e que deve reconhecer seu ato. Um exemplo de um livro dos EUA: um moleque roubou o carro do vizinho. Em vez de levar o caso para a Justiça, a vítima levou para a igreja local, onde promoveram uma reunião.
Nela, o garoto ouviu a vítima falar que tinha ficado muito chateada com o episódio, pois encontrou o carro com o vidro quebrado e ainda nem tinha acabado de pagá-lo. Envergonhados, os pais do garoto arranjaram um emprego num parente. A partir daí, o garoto se comprometeu a pagar em um certo número de parcelas o dano que causou, e a vítima aceitou as desculpas. Tem uma coisa muito interessante nisso: as vítimas do crime não são ouvidas, não querem saber o que elas sentiram. Só querem saber se o suspeito praticou ou não o crime. E aí o trem vai andando inexoravelmente para um ponto — o ponto da condenação. A Justiça restaurativa é algo incrível. Nós, que fazemos Justiça restaurativa, gostamos muitas vezes de entrar com a constelação familiar nela antes de começar o círculo, para a pessoa ter essa autopercepção da sua dinâmica — o que a levou a isso e, sobretudo, a humanização de sentir o outro, olhar no olho do outro. Não no sentido bíblico de culpa, mas no sentido de humanização: “olha, foi legal fazer aquilo, eu me senti transgressor, mas tem uma consequência: alguém ficou chateado, alguém foi prejudicado”. Em casos mais graves, que geraram lesão permanente, o efeito é impressionante.
Colocar um agressor de mulheres diante de uma vítima que perdeu o olho pelos ferimentos tem uma totalidade poderosa. Não é uma coisa romântica de perdoar, de se culpar. Não, é a percepção do humano. É isso que falta no sistema tradicional. Nós supostamente tornamos tudo científico, mas não resolvemos nada, porque o índice de reincidência nosso é abissal, nossa população carcerária é uma das maiores do mundo.
Revista Consultor Jurídico, 12 de novembro de 2017.

sábado, 11 de novembro de 2017

"Bandeira do combate à corrupção serve para inviabilizar debates essenciais"

Há quase 25 anos, na mesma época em que policiais militares mataram 111 presos do complexo do Carandiru, um grupo de profissionais do Direito se organizou para estudar e criar iniciativas com enfoque nos direitos fundamentais. Enquanto processos criminais sobre o caso no presídio paulista continuam sem solução, o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais mantém seu entendimento de que “bandido bom é bandido vivo”, como define seu atual presidente, Cristiano Maronna.
Para o criminalista, o pensamento da sociedade brasileira regrediu nos últimos anos e, mais recentemente, permitiu que o discurso do combate à corrupção servisse para defender o mero punitivismo. Com troca proposital de palavras, ele afirma que “as dez propostas do Ministério Público Federal contra a Constituição, ops!, contra a corrupção” atingem todos os tipos de delitos — que são ignorados na propaganda feita pelos seus defensores.
O advogado avalia que essa bandeira prejudica discussões mais urgentes no Brasil. “São mais de 60 mil mortes violentas por ano. Nem zonas de guerra têm índices tão altos. (...) Esse é o debate que a sociedade brasileira precisa realizar.” Uma das prioridades defendidas pelo IBCCrim é diferenciar uso de drogas do tráfico e mudar as políticas de encarceramento.
Maronna diz que não teme ver a proposta relacionada pela opinião pública à maior impunidade. “O IBCCrim nasceu há 25 anos já adotando uma posição contra hegemônica.” O aniversário da entidade e o debate sobre o Direito Penal brasileiro são temas do 23º Seminário Internacional de Ciências Criminais, que terá início nesta terça-feira (29/8) em São Paulo.
Cristiano Maronna recebeu a ConJur durante os preparativos do evento, na sede do instituto, entre a catedral da Sé e o Tribunal de Justiça de São Paulo. Formado pela Faculdade de Direito da USP, é mestre e doutor pela mesma instituição e, aos 47 anos, compartilha o tempo com causas criminais no escritório Maronna, Stein & Mendes e a secretaria-executiva da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, rede de organizações não governamentais.
Leia a entrevista:
ConJur – O editorial do último boletim publicado pelo IBCCrim, em agosto, diz que o instituto trabalha com três pautas estratégicas: reversão do superencarceramento, combate à violência e à letalidade policial. O senhor considera esses problemas urgentes?
Cristiano Maronna –
 Todos esses assuntos são inter-relacionados e envolvem diretamente a democratização do sistema de Justiça. Nós temos uma política criminal que vem se retroalimentando e apresentando resultados desastrosos. Quanto mais prendemos e construímos presídios, mais o crime organizado se fortalece.
Qual é a prioridade número um que temos no Brasil? Para mim não é combate à corrupção, mas à violência. São mais de 60 mil mortes violentas por ano. Nem zonas de guerra têm índices tão altos. Nós temos um sistema de justiça criminal extremamente caro, com índice baixíssimo de esclarecimento dessas mortes e uma das maiores taxas de letalidade de óbito policial. Nós temos uma Polícia Civil corrupta e uma Polícia Militar que é uma máquina mortífera. Tanto o Judiciário quanto o Ministério Público têm responsabilidade nessa situação. Esse é o debate que a sociedade brasileira precisa realizar.
ConJur – O que a entidade tem feito sobre o tema?
Cristiano Maronna –
 Na área da atuação política, lançamos 16 medidas contra o encarceramento em massa ao lado da Pastoral Carcerária, da Associação de Juízes pela Democracia e do Centro de Estudos em Discriminação e Desigualdade da UnB, coordenado pela professora Beatriz Vargas. Já conseguimos apoio de 70 outras entidades e, das 16 propostas, temos 13 projetos de lei tramitando hoje no Congresso Nacional. Essa é uma iniciativa do nosso departamento de estudos e projetos legislativos, que é coordenado pelo Luiz Guilherme Paiva, lançada em material em formato de projeto de lei, com proposta de redação, justificativa e o dispositivo legal que precisa ser alterado. Basicamente, sugerimos alteração do Código Penal, do Código de Processo Penal, das leis de execução penal, da Lei de Drogas e da Lei dos Crimes Hediondos.
A proposta inclui ainda mudança no regimento interno da Câmara dos Deputados para que todo projeto de lei sobre aumento de pena, criação de crime ou qualquer forma de endurecimento da execução penal seja precedido de estudo a respeito do impacto econômico e financeiro, para que o legislador possa tomar uma decisão baseado na maior quantidade de informações possíveis. Precisamos levantar a discussão a respeito do impacto financeiro que o sistema de justiça criminal representa.
Outra proposta que apresentamos nas 16 medidas é a criação de ouvidorias externas, tanto no Judiciário, quanto no Ministério Público e também no sistema prisional. Nós entendemos que o controle externo da atividade do Estado é essencial.
ConJur – Propostas antiencarceramento não podem ser compreendidas pela população como institucionalizar a impunidade?
Cristiano Maronna –
 O IBCCrim nasceu há 25 anos já adotando uma posição contra hegemônica, a partir da ideia de que bandido bom é bandido vivo, com seus direitos respeitados e execução de pena de forma digna. Infelizmente a sociedade brasileira regrediu muito nesses 25 anos nessa questão: o discurso do ódio e a ideia de que direitos humanos atrapalham, são privilégios, tudo isso mostra o nosso baixo déficit civilizatório. Mostra que vivemos uma democracia de baixa intensidade também porque culturalmente nós temos muito a evoluir. O reflexo dessa necessidade de evolução se expressa também no senso comum a respeito do sistema de justiça criminal, que acaba contaminando os próprios operadores do Direito.
ConJur – O Judiciário hoje acompanha essa tendência?
Cristiano Maronna –
 O juiz Marcelo Semer tem uma frase que considero bastante sintética para resumir isso: quando o juiz deixa de seguir a Constituição para deixar se levar pela voz rouca das ruas, quem perde é o Estado de Direito. Quer dizer, o papel do Judiciário é justamente esse papel de garantidor dos direitos fundamentais ainda quando a maioria política se mostra favorável à sua violação. O Judiciário é aquela última fronteira que vai proteger o núcleo intangível que garante a democracia. Ou pelo menos deveria ser. Infelizmente no Brasil o Judiciário vem abrindo mão de exercer esse papel. A decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade de execução provisória da pena é um bom exemplo desse fenômeno.
ConJur – Ministros têm sinalizado que a corte pode alterar de novo a jurisprudência, retomando a espera pelo trânsito em julgado. O senhor acredita que isso seja possível?
Cristiano Maronna –
 Eu espero que sim, porque a manutenção desse posicionamento é trágica tanto do ponto de vista estritamente jurídico quanto do ponto de vista social.
ConJur – Quais processos no Supremo sobre política criminal têm sido acompanhados de perto pelo IBCCrim?
Cristiano Maronna –
 Se destacarmos apenas o que foi feito desde janeiro, quando iniciou a atual gestão, entramos com oito pedidos de habilitação no Supremo Tribunal Federal como amicus curiae em assuntos como a condução coercitiva (ADPF 395); a Proposta de Súmula Vinculante 125 sobre tráfico privilegiado; coleta de material genético de condenados (RE 973.837) e natureza da pena de multa (ADI 3.150). Fomos representados pelo Gustavo Mascarenhas em audiência pública sobre o direito ao esquecimento (RE 1.010.606) e também ingressamos na ADPF 442, sobre descriminalização do aborto; na ADPF 347, para reconhecimento de coisas inconstitucional; no Recurso Extraordinário 806.339, que discute a necessidade de aviso prévio para manifestações, e no ARE 905.149, a respeito do uso de máscaras em manifestações.
Além desses processos, temos quase duas dezenas de outros casos de amicus curie. Um deles é o Recurso Extraordinário 635.659, sobre a inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, numa articulação que o IBCCrim faz com a Plataforma Brasileira de Política de Drogas. Inclusive estamos agora apresentando um novo memorial pedindo a retomada do julgamento, suspenso desde outubro de 2015. O ministro Teori Zavascki pediu vista dos autos e, depois de falecer, foi substituído pelo ministro Alexandre de Moraes, que recentemente declarou que está estudando o assunto, mas não deu qualquer indicação a respeito da data em que o recurso deve retornar ao Plenário. Acreditamos que esse julgamento é fundamental para o país.
ConJur – Por quê?
Cristiano Maronna –
 A pauta das drogas avança no mundo todo: no Uruguai já há um modelo regulatório da cannabis e, no Canadá, salas de uso seguro têm apresentado resultados positivos em termos de saúde pública. Está em andamento a “revolução psicodélica” [como tem sido chamado o maior número de pesquisas sobre efeitos terapêuticos de substâncias psicoativas]: o uso do MDMA no tratamento do estresse pós-traumático, além do LSD, da cannabis medicinal, da ibogaína e da ayahuasca, de modo que essa questão das drogas avança no mundo todo, mas no Brasil infelizmente caminhamos a passos de cágado. Enquanto quase toda a América Latina deixou de criminalizar a posse para uso pessoal, nós somos um dos últimos países da região a fazer isso. E é esse o resultado que haveria com a declaração de inconstitucionalidade. Apenas a posse para uso pessoal deixaria de ser considerado crime e o tráfico de drogas continuaria a ser crime.
A Lei de Drogas é um dos principais vetores encarceradores no Brasil. A jurisprudência que se consolidou contraria a Constituição, porque admite a condenação por tráfico de drogas com base apenas na presunção, sem a prova concreta de tráfico, baseada na palavra do policial, que não é prova no sentido estrito, tendo em vista que o policial não é testemunha, não é um terceiro desinteressado que vai contribuir de forma neutra com o esclarecimento da verdade, mas um agente da lei diretamente interessado no reconhecimento da regularidade da própria ação. Até porque se essa regularidade da ação não for reconhecida, ele pode ser punido administrativamente. No entanto, a base das condenações por tráfico de drogas no Brasil tem como fundamento a palavra do policial e a quantidade da droga apreendida, que também é outra questão fonte de muita polêmica porque a mesma quantidade que para um juiz demonstra tráfico de drogas, para outro representa uso.
O desembargador Guilherme Nucci fala dos pontos cegos da Lei de Drogas a respeito dessa indistinção entre usuários e traficantes, mas eu, com todo respeito, penso que há uma cegueira hermenêutica deliberada. Como já declarou o ministro Gilmar Mendes no Recurso Extraordinário 635.659, a presunção não pode ser admitida à luz da Constituição Federal, que consagra a presunção da inocência. No entanto, no Brasil a regra da aplicação da lei de drogas é essa, a pessoa flagrada com drogas tem o ônus de provar que não é traficante. Se você é um homem branco, privilegiado, com holerite, carteira assinada, e condições de provar que subsiste de um trabalho honesto, então não é tão difícil ser considerado usuário. Mas se você é pobre, preto, periférico, a situação é diferente. No caso das mulheres é ainda pior: 70% das presas estão lá por causa da Lei de Drogas.
ConJur – O senhor avalia que também é inconstitucional jurisprudência admitindo que a polícia entre em domicílio sem mandado, quando há suspeita da ocorrência de tráfico?
Cristiano Maronna –
 Essa é uma questão de difícil resolução porque o fato de o crime de tráfico de drogas ser considerado permanente acaba funcionando com a carta branca para o abuso, para o arbítrio. O Supremo Tribunal Federal não deu balizas claras para limitar essa atuação, de modo que a prática é comum e acontece geralmente em localidades pobres, porque a polícia não costuma invadir domicílios em bairros nobres das grandes cidades. Isso reforça o papel seletivo do Direito Penal, que não incide da mesma forma sobre todos, ele tem uma clientela preferencial. Basta ver o perfil dos nossos presos: a grande maioria é jovem de 18 a 29 anos, negra ou parda, com baixa escolaridade. Nós temos um perfil prisional que reforça a ideia de que o Direito Penal exerce um papel de controle social muito perverso, que é o de gestão penal da miséria.
Por isso o IBCCrim existe, para fazer essa crítica e para propor soluções alternativas. O instituto nasceu em outubro de 1992, logo após o massacre do Carandiru, e 25 anos depois continua atual e necessário, porque a questão prisional e a violência não foram resolvidas.
ConJur – O impasse sobre a responsabilização de policiais militares justamente no caso Carandiru, 25 anos depois, sinaliza isso? [O julgamento de 74 PMs foi anulado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, devendo recomeçar do zero.]
Cristiano Maronna –
 Exatamente, o Carandiru é uma memória atual, a impunidade gerada pela morte de 111 presos é a realidade que vivemos hoje. Aliás, vivemos nesses últimos anos uma espécie de apoteose cívica no que diz respeito ao combate da corrupção. A corrupção se tornou o tema do momento, a grande prioridade nacional. Eu não discordo de que esse é um tema importante de fato, embora a meu ver tenha sido muito mal tratado, tanto pelos operadores do Direito quanto pela mídia e pelo senso comum em geral. A gente ouve muito discurso contra a classe política, quando na verdade os políticos representam a sociedade em que nós vivemos. Eles não vieram de outro planeta, eles vieram de dentro da sociedade, portanto representam exatamente aquilo que a sociedade é. O segundo aspecto é o papel do poder econômico na corrupção do poder político. Não é uma coisa eventual, não é um setor específico da economia como se queria fazer crer o setor da construção civil. A corrupção do poder político pelo poder econômico é o tema que precisa ser debatido. É preciso adotar controles, mecanismos de fiscalização capazes de democratizar o funcionamento do mercado.
Interessante apontar a contradição entre o mito de que no Brasil a impunidade impera e a existência de mais de 700 mil presos – se considerarmos que no último censo do Depen, em 2014, eram 622 mil pessoas. Se já temos hoje a quarta maior população prisional do planeta, o que será do nosso sistema prisional se cumprirmos a promessa de combater a impunidade? Mas o mito da impunidade foi apropriado por certos setores para promover uma campanha de recrudescimento da punição em geral. Se tomarmos como exemplo as dez propostas do Ministério Público Federal contra a Constituição, ops!, contra a corrupção... O pacote contém um programa de alteração profunda tanto do Código Penal quanto do Código de Processo Penal em geral. Isso vai ter impacto em todos os delitos e não só nos crimes de corrupção.
ConJur – É apenas uma embalagem, na sua opinião?
Cristiano Maronna –
 O combate à corrupção se tornou uma bandeira política também para mudar a política criminal. E o que é pior, para inviabilizar outros debates essenciais, como as 60 mil mortes violentas por ano no Brasil.
ConJur – As 10 medidas contra a corrupção foram tema de debate no último Seminário Internacional de Ciências Criminais. Quais assuntos serão tratados na edição deste ano?
Cristiano Maronna –
 Nosso seminário está especialmente interessante neste ano. Vamos comemorar os 25 anos de IBCCrim, com a presença de ex-presidentes e grandes nomes que passaram pelo instituto nesse período. Teremos um ganhador do prêmio Pulitzer, Douglas Blackmon, que vai falar sobre o sistema de justiça nos Estados Unidos como extensão da escravidão para além da guerra civil.
Teremos um painel sobre o papel do juiz criminal, com o desembargador Amilton Bueno de Carvalho e o juiz Luís Carlos Valois, responsável pela execução penal no Amazonas. A pergunta é: o juiz é agente de segurança pública? Pelo figurino constitucional, entendo que não, pois o juiz tem compromisso com a Constituição, com a garantia dos direitos. Também teremos discussão sobre cautelares reais, com a Carolina Yumi de Souza e o Rubens Casara, e uma discussão sobre reforma processual penal com os professores Eduardo Gallardo Frías, do Chile, e Geraldo Prado.
No dia 30 vamos ter debate sobre drogas, gênero e raça com a Luciana Boiteux e Nathália Oliveira, e sobre corrupção e processo de exceção, com a subprocuradora-geral da República Ela Wiecko de Carvalho, uma das figuras mais proeminentes do Ministério Público Federal, e o professor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, da Universidade Federal do Paraná.
No dia 31 teremos palestra sobre desigualdade social e Direito Penal com o professor espanhol Jesús Maria Silva Sánchez, hoje um dos principais nomes da dogmática penal no mundo todo. A professora Susana Aires de Sousa, de Portugal, vai falar sobre autoria e concurso de pessoas na criminalidade empresarial.
Também de Portugal, o professor Rui Cunha Martins vai tratar da admissão e exclusão de provas junto com Fabricio Guariglia, da Argentina. E o réquiem para a presunção de inocência? É uma pergunta que estamos fazendo, e o professor Maurício Zanoide de Moraes e o ministro Rogério Schietti, do STJ, tentarão respondê-la. Teremos ainda uma discussão sobre aspectos controvertidos da colaboração premiada com a Fernanda Tórtima e o Gustavo Badaró.
ConJur – Quais aspectos o senhor considera mais controvertidos da colaboração premiada?
Cristiano Maronna –
 A questão da colaboração processual alterou profundamente o panorama do sistema de justiça criminal no Brasil. Faz parte de um movimento sincronizado, cuja origem, a meu ver, está nos Estados Unidos com a internacionalização do combate à corrupção a partir da OCDE [Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico], a partir do tratado de Mérida [firmado em 2003, contra a corrupção] e especialmente a partir do FCPA [lei anticorrupção norte-americana, de 1977], que num primeiro momento representava uma desvantagem competitiva para as empresas americanas e hoje se transformou numa arma geopolítica do governo. Hoje, nos Estados Unidos, a grande maioria dos casos criminais é resolvida por acordos, são raríssimos os casos que chegam no trial. O sistema permite que o órgão acusatório disponha da iniciativa da ação penal com 100% de liberdade. No Brasil é diferente, temos como regra constitucional a obrigatoriedade da ação penal, o que ajudou a gerar aspectos controvertidos na teoria e na prática, que serão discutidos no seminário.
No dia 1º de setembro [no Seminário Internacional], teremos também uma palestra sobre acordos de livre comércio e o sistema internacional de direitos humanos, com a professora Ana Isabel Pérez Cepeda, da Espanha. E o professor espanhol Juan Luis Gómez Colomer vai falar sobre investigação e prova dos delitos de corrupção: um tema muito atual, em especial a questão da ação controlada.
A programação inclui um painel sobre encarceramento em massa, com a professora Camila Nunes Dias, uma das principais estudiosas do tema penitenciário e das facções criminosas, e com o Pedro Vieira Abramovay, da Fundação Getulio Vargas. Desafios do sistema de justiça é o tema do painel de encerramento, com três mulheres especialistas em ciências criminais: a professora Beatriz Vargas Ramos, da UnB; a subprocuradora-geral da República Deborah Duprat e a professora da GV Maíra Rocha Machado. Acho que uma das formas de a gente combater esse déficit civilizatório no Brasil é qualificar o debate.
ConJur – Quais outras atividades do IBCCrim o senhor destaca?
Cristiano Maronna –
 Realizamos neste ano cinco mesas de estudos e debates, organizados por nosso coordenador Maurides Ribeiro; promovemos em 20 cidades diferentes o Laboratório de Ciências Criminais, uma iniciação científica destinada a estudantes de Direito, dirigida pela Natalia Sanzovo, e consolidamos o posicionamento do IBCCrim sobre a reforma do Código de Processo Penal, com a grande colaboração do diretor Renato Vieira.
Recebemos uma notícia muito positiva: a Revista Brasileira de Ciências Criminais, que é uma das nossas principais publicações, teve seu conceito ampliado de B1 para A1, o mais alto definido pela Capes/Qualis. A promoção é resultado de um grande trabalho da antiga coordenadora da revista, Marina Pinhão Coelho, e da atual responsável, Mariângela Magalhães. Também atualizamos as regras para o concurso de monografias, com base em proposta do nosso diretor, professor Frederico de Almeida.
A gente tem também nossa biblioteca, a mais completa da área de ciências criminais na América Latina. Desde a fundação do IBCCrim, completamos a digitalização de todos os periódicos científicos. O mesmo ocorreu com a nossa midiateca: todos os eventos promovidos pelo IBCCrim estão agora disponíveis para consulta online. Realizamos ainda dois cursos em parceria com a Universidade de Coimbra, presencialmente e a distância, e promovemos neste ano, em São Paulo, a décima edição do curso “Maria, Marias”, para formar defensoras populares a respeito dos direitos das mulheres e direitos humanos em geral, com foco na Lei Maria da Penha, em parceria com a União de Mulheres. No Brasil a morte de mulheres por companheiros é uma constante, não é algo esporádico, faz parte da nossa cultura machista.
ConJur – O senhor então considera adequada a tipificação específica para esse tipo de crime, o feminicídio?
Cristiano Maronna –
 Sim, sem dúvida. Mas só a lei não basta. A mudança da cultura exige o envolvimento da sociedade. Por isso o IBCCrim realiza há mais de dez anos essa capacitação e criou outro curso voltado apenas para advogadas e advogados sobre violência de gênero, com enfoque jurídico.
Aliás, temos adotado o princípio de que todo evento do IBCCrim deve contar com homens e mulheres em mesmo número. A época do painel composto apenas por homens acabou, não é mais aceitável. Hoje em dia há homens e mulheres igualmente qualificados para falar sobre qualquer assunto.
ConJur – Sobre a reforma do Código de Processo Penal, que o senhor comentou, o tema se arrasta pelo menos desde 2010. O assunto pode entrar na pauta próxima do Legislativo, no atual cenário turbulento? O que precisa ser modificado logo?
Cristiano Maronna –
 No momento em que a gente está vivendo é sempre difícil fazer qualquer prognóstico... E a gente está vivendo também uma crise de representatividade, com mais de um terço do Congresso envolvido em denúncias de corrupção. Mesmo assim, vamos apresentar um trabalho aos congressistas antes da votação do Projeto de Lei 8.045/2010.
Nossas 16 medidas contra o encarceramento em massa já tratam da importância de que se reconheça a figura do juiz de garantias. É inacreditável que o juiz responsável por conduzir a investigação seja o mesmo juiz que julgará a ação penal. Ora, se o advogado questiona a legalidade de uma busca e apreensão ou uma interceptação telefônica na fase pré-processual, quem vai julgar é o autor da suposta ilegalidade? É evidente que ele vai dizer que o ato que ele praticou é legal. O juiz de garantias é uma decorrência natural da ideia de juiz imparcial.
ConJur – Outro objetivo das medidas é mudar o Código Penal e impedir a prisão de quem praticou roubo insignificante, correto?
Cristiano Maronna –
 Não, a gente propõe que seja positivado o princípio da insignificância, hoje inexistente na lei, porque algumas decisões judiciais ainda deixam de aplicar a bagatela sob a justificativa de que é apenas uma construção interpretativa, hermenêutica. Para que esse argumento não seja mais utilizado, nós estamos propondo que em casos de ínfima lesão do bem jurídico, em que há uma mínima ofensividade, não haja punição no campo do Direito Penal. Estamos defendendo a ideia de que o Direito Penal não é nem a prima ratio, nem a única ratio, mas a ultima et extrema ratio.
ConJur – Ainda sobre as soluções contra o encarceramento, o senhor avalia como avanço as audiências de custódia [iniciativa que garante ao preso em flagrante o direito de ser ouvido por um juiz em até 24 horas]?
Cristiano Maronna –
 A minha avaliação é que a audiência de custódia é mais uma tentativa de obrigar os juízes a cumprir a Constituição, como ocorreu com algumas mudanças legislativas nos últimos anos. Falta ainda lei, pois o modelo atual é baseado em norma administrativa do Conselho Nacional de Justiça, sujeita a alteração a qualquer tempo.Acredito que a audiência de custódia pode ter um resultado positivo se ela for levada a sério. Por exemplo, a única função é avaliar a legalidade da prisão e a ocorrência ou não de tortura. Qualquer outro objetivo, como colher prova ou mesmo já permitir algum tipo de solução, é absolutamente inadequado. Se ela for considerada facultativa, e em especial se a ausência da audiência de custódia não implicar o relaxamento da prisão cautelar, então é melhor nem aplicar. É preciso acabar, por exemplo, com decretos de prisão cautelar em casos de tráfico de drogas que têm como fundamento discursos moralizantes: juízes dizem que a droga está na base dos crimes patrimoniais e causa desassossego à parcela ordeira da sociedade. O sujeito está sendo acusado de um fato concreto, ele não pode se defender de um discurso moralizante. Se a sociedade está desassossegada, a prisão cautelar não vai resolver essa situação.
A gente ouve alguns argumentos contrários à audiência de custódia que são espantosos, um diz que vai aumentar o volume de trabalho, outro diz que isso vai criar um custo adicional de transporte de preso. Nós estamos falando de uma regra que existe na Convenção Americana sobre Direitos Humanos há muitos anos. O Brasil era o último país na América Latina a aplicar isso.
ConJur – Em São Paulo, o senhor avalia que as audiências de custódia têm funcionado?
Cristiano Maronna –
 Até onde nós sabemos em São Paulo as audiências de custódia têm sido implementadas a contento, embora não tenham ocorrido em plantões de final de ano. Nessa época, o tribunal criou uma espécie de estado de sítio informando que os direitos seriam colocados numa espécie de coma induzido. Plantão não pode implicar suspensão de direitos.
ConJur – A opinião pública tem questionado as penas da Loman [Lei Orgânica da Magistratura], cuja maior punição é a aposentadoria compulsória. O senhor avalia que as sanções são adequadas?
Cristiano Maronna –
 O Poder Judiciário como um todo precisa de uma profunda reestruturação. Eu acho que a questão das punições disciplinares precisam ser revistas sim, mas acho que não só. A questão da remuneração é central hoje em dia. Me parece inadmissível que magistrados e membros do Ministério Público recebam salários acima do teto quando o país vive uma grave crise orçamentária que compromete o funcionamento de serviços básicos.
Revista Consultor Jurídico, 27 de agosto de 2017.

Justiça Restaurativa deve ser usada em caso de violência doméstica

Os tribunais de Justiça devem adotar práticas da Justiça Restaurativa nos casos que envolverem violência contra a mulher. A recomendação foi aprovada na XI Jornada Maria da Penha, que reúne magistrados e outros atores do sistema de Justiça para avaliar e definir diretrizes para o cumprimento da Lei Maria da Penha (11.340/06) no Judiciário brasileiro.
Jornada sobre a Lei Maria da Penha aprovou recomendação para que a Justiça Restaurativa seja usada em caso de violência doméstica.
A aplicação das técnicas de Justiça Restaurativa não tem o objetivo de substituir a prestação jurisdicional, mas contribuir para a responsabilização dos atos de maneira permanente, visando à pacificação do conflito. De acordo com o texto aprovado, a técnica deve ser usada com anuência da vítima e por uma equipe técnica capacitada para esse fim.
Para garantir a boa aplicação da técnica, foi sugerida a capacitação permanente dos magistrados, das equipes multidisciplinares e dos facilitadores em Justiça Restaurativa e nas temáticas de gênero. Caberá ao Conselho Nacional de Justiça, em parceria com a Escola Nacional de Formação de Magistrados (Enfam), desenvolver cursos com enfoque nas técnicas e práticas restaurativas.
Outra medida importante, focada na melhoria do atendimento às vítimas e estabelecida como recomendação ao sistema de Justiça, é a adoção de um sistema virtual que agilize a concessão das medidas protetivas, se possível, desde a delegacia de polícia. Para isso, os tribunais poderão buscar acordos de cooperação técnica com os órgãos responsáveis. 
Também foi aprovada na jornada uma proposta para que o CNJ faça um evento nos moldes de audiência pública para ouvir opiniões e avaliações não só dos operadores do Direito, mas também da sociedade civil e dos movimentos sociais sobre a aplicação da Lei Maria da Penha. 
Com informações da Assessoria de Imprensa do CNJ.