segunda-feira, 18 de abril de 2016

Conheça rito do impeachment discutido no Senado; defesa tem pouco espaço

Por Pedro Canário
Caso a Câmara dos Deputados aprove o prosseguimento do impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT) e o processo siga para o Senado, sua defesa só vai se pronunciar dez dias depois de ser afastada pelos senadores. Pelo menos de acordo com o rito que vem sendo discutido pela consultoria técnica do Senado, que ainda não está finalizado e, por isso, ainda não foi aprovado.
Pelo rito definido pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 378 (clique aqui para ler a ata do julgamento), a Câmara dos deputados, neste domingo (17/4), decide se o pedido de impeachment de Dilma tem ou não condições de prosseguir. A decisão tem de ser tomada por maioria absoluta de dois terços dos deputados, ou 342 votos.
Depois disso, segue para o Senado, que é quem diz se o processo deve ou não ser instaurado. Antes disso, é montada uma comissão com 42 senadores, sendo 21 titulares e 21 suplentes, que terá dez dias para elaborar um parecer sobre a denúncia. Esse parecer é lido pelo presidente do Senado, e votado pelo Plenário.
Caso o Plenário decida que o processo deve ser instaurado, a presidente é intimada e afastada. E só dez dias depois disso é que sua defesa terá espaço para se manifestar sobre a admissibilidade do impeachment, que na prática já terá sido admitido. Portanto, a defesa da presidente terá poucos efeitos práticos e funcionará mais como argumento para as discussões posteriores que para garantir a lisura do processo.
Quem teve acesso à minuta do documento garante que é uma nulidade em potencial, o que pode levar o processo de impeachment ao Supremo mais uma vez. O STF já deu alguns sinais de como deve se posicionar em relação ao Senado.
No Mandado de Segurança impetrado pelo governo para alegar nulidade do parecer da comissão especial do impeachment da Câmara, a alegação era de cerceamento de defesa. E seguindo o voto do ministro Luiz Edson Fachin, o tribunal decidiu que a Câmara não é o espaço para a ampla defesa, já que apenas o Senado tomará as decisões com consequências para o mandato da presidente. Segundo o ministro Luís Roberto Barroso, a fase da Câmara é “pré-processual”, comparável ao inquérito policial. “É uma fase em que o contraditório é mitigado”, disse.
A ideia da comissão técnica do Senado, no entanto, é seguir a decisão do Supremo para o caso do impeachment do ex-presidente Fernando Collor, em 1992, junto com o Título X, Capítulo I do Regimento Interno do Senado, que define o funcionamento da Casa “como órgão judiciário”. Está nos artigos 380 a 382.
Foi em 1992 que o Supremo decidiu que, "em virtude das novas atribuições constitucionais do Senado e por competir-lhe o processo e o julgamento do presidente da República nos crimes de responsabilidade, torna-se possível invocar a analogia para adotar, nesse procedimento, e com as necessárias adequações, as normas que regem o processo de impeachment dos ministros do STF" — clique aqui e aqui para ler o rito aplicado pelo Senado no impeachment de Collor.
Pelo cronograma estipulado pela consultoria técnica, o processo todo vai demorar 126 dias. Mas como há 32 dias de recesso parlamentar no meio da discussão, a duração será de 158 a 160 dias.
Veja o rito proposto pela consultoria técnica do Senado, sem contar o recesso parlamentar:
Dia 1 – O Senado recebe o processo da Câmara dos Deputados.
Dia 2 – É lida a autorização da instauração do processo e eleita a comissão especial para analisar a autorização da Câmara. A comissão será formada por 42 senadores, 21 titulares e 21 suplentes, indicados pelos partidos ou blocos partidários.
A comissão tem dez dias para elaborar um parecer em que conclui pela instauração ou não do processo. Há dúvida sobre como será esse prazo, porque valem, teoricamente, os prazos do Código de Processo Civil. No caso de Collor, valia o CPC de 1973, que falava em dias corridos. Mas o novo CPC, que entrou em vigor há um mês, fala em dias úteis.
Dia 12 – O relator apresenta o parecer pela admissibilidade, e a comissão vota se concorda com ele ou não. Não há defesa da presidente na comissão. No parecer, os senadores não podem fazer qualquer juízo de culpa ou inocência. Devem se ater apenas às condições de admissibilidade.
Dia 13 – O parecer da comissão especial é lido e distribuído em Plenário.
Dia 14 – Votação da admissibilidade do processo. A decisão se dá por maioria simples. O Supremo chegou a discutir se essa decisão seria por maioria simples ou absoluta, mas optou pela simples. A lógica é que uma minoria de um terço de senadores não poderia cassar o que dois terços da Câmara, representante do povo no Legislativo, aprovou.
Se o Senado entender que o processo é admissível, a presidente é afastada e assume o vice-presidente Michel Temer. E abre-se o prazo de dez dias para que, ao final, a presidente apresente sua defesa.
Dia 24 – Esgota o prazo de dez dias, a presente deve apresentar uma defesa. É a primeira vez que a defesa tem algum espaço para se manifestar durante todo o processo no Senado. No entanto, ela pode não se manifestar e nem indicar ninguém. Nesse caso, abre-se novo prazo de dez dias e o presidente do Senado indica um defensor dativo, que no caso de Collor foi o líder do governo na Casa. Aí a bancada pode até nomear alguém da defesa da presidente como assessor.
Dia 34 – Esgota o novo prazo para apresentação da defesa. E aí o processo volta para a comissão especial, e tem início a instrução, o que não tem prazo certo para acontecer. É que tanto a defesa da presidente quanto os senadores podem pedir oitiva de testemunha, perícia diligência etc. Cada um desses pedidos tem prazo próprio, de acordo com o Código de Processo Penal.  A consultoria técnica trabalha com uma duração de 60 dias para toda a instrução.
Dia 94 – Alegações finais da presidente Dilma. E abre-se prazo de dez dias para que a comissão especial discuta o mérito da acusação.
Dia 104 – A comissão especial vota o parecer do relator sobre o mérito. E abre-se o prazo de cinco dias para que a presidente recorra do parecer ao Plenário do Senado.
Dia 109 – Termina o prazo para recurso.
Dia 111 – Plenário analisa e vota o recurso contra o parecer da comissão especial.
Dia 113 – O Plenário do Senado passa a ser presidido pelo presidente do STF. Dois dias depois da votação do recurso contra o parecer, o denunciante é intimado para oferecer o libelo acusatório, e o denunciado é pronunciado.
Dia 115 – O denunciado é intimado a se manifestar sobre o libelo acusatório e indicar testemunhas.
Dia 116  Os autos são remetidos ao presidente do Supremo para ele designar uma data de julgamento.
Dia 126  O Plenário vota o libelo acusatório. É quando vai ser dada a sentença de mérito e decidido se a presidente vai ser punida ou não com o impeachment. Caso seja condenada, será deposta de seu mandato e ficará inelegível por oito anos, passando o cargo ao vice, Michel Temer, que já estará em exercício.
*Texto alterado às 14h22 do dia 18 de abril de 2016.


 é editor da revista Consultor Jurídico em Brasília.

segunda-feira, 11 de abril de 2016

Diferença entre Repercussão Geral e Recurso Repetitivo

A democratização do acesso à Justiça após a Constituição de 1988 ampliou os meios para os cidadãos buscarem seus direitos, resultando em aumento significativo no número de processos no Judiciário. Somente no Supremo Tribunal Federal (STF) os casos novos passaram de 14,7 mil em 1989 para cerca de 120 mil em 2007, de acordo com estatísticas da corte. Essa progressão geométrica na demanda – somada à pouca alteração na estrutura do Judiciário – estimulou os poderes públicos a pensarem em novos mecanismos de gestão processual, garantindo respostas mais uniformes e céleres à sociedade.
Uma das soluções foi o surgimento da repercussão geral, criada pela Emenda Constitucional n. 45/2004 e regulamentada em 2007. A ferramenta é de uso exclusivo do STF, e impossibilita a análise de recursos extraordinários que não atendam critérios de relevância jurídica, política, social ou econômica, indo além do interesse das partes envolvidas.
Além de reduzir a quantidade de recursos no STF – somente entre 2007 e 2010 houve uma queda de 71%, segundo dados da corte – esse filtro também afeta a tramitação nas outras instâncias. Isso ocorre porque os processos sobre o mesmo assunto ficam paralisados nos tribunais aguardando o julgamento da Suprema Corte, que tem efeito multiplicador.
A proposição de repercussão geral é feita pelo relator e analisada pelo Plenário Virtual do STF. São necessários pelo menos oito votos discordantes para que a repercussão geral não seja admitida. A decisão definitiva sobre o processo com repercussão geral ocorre sempre em julgamento presencial. Em setembro de 2015, segundo o STF, havia 1,36 milhão de processos em instâncias inferiores aguardando decisão do Supremo, em casos de repercussão geral.
Recursos repetitivos – Outro instituto criado para melhorar a vazão de processos no Judiciário é o de recursos repetitivos. Os recursos repetitivos foram instituídos no Superior Tribunal de Justiça (STJ) com a Lei n. 11.672/2008. O objetivo é dar mais celeridade, isonomia e segurança jurídica no julgamento de recursos especiais que tratem da mesma controvérsia jurídica. Esses casos podem ser selecionados por amostragem – cabe ao presidente ou vice-presidente do tribunal de origem admitir um ou mais recursos que melhor representem a questão repetitiva e encaminhá-los ao STJ para julgamento.
Os tribunais de origem não precisam replicar a decisão do STJ de forma obrigatória, mas o entendimento da Corte superior tem papel importante de orientação. Estatísticas do STJ indicam que, em fevereiro de 2016, haviam 422,1 mil processos suspensos em tribunais de justiça e tribunais federais aguardando o julgamento de recursos repetitivos.
Agencia CNJ de Notícias

domingo, 10 de abril de 2016

Mais de 270.000 processos deixaram de entrar da Justiça em 2015

Os Centros Judiciários de Resolução de Conflito e Cidadania (Cejuscs) evitaram, somente no ano passado, a entrada de pelo menos 270 mil processos no Judiciário brasileiro. Os números referem-se a oito estados brasileiros e não contabilizam as audiências que ocorrem nas Semanas Nacionais de Conciliação. Só em São Paulo, estado que conta com o maior número de Centros instalados no país, 138 mil casos foram finalizados com a ajuda de conciliadores, magistrados, servidores e instituições envolvidas nas audiências de conciliação.
Criados pela Resolução 125/2010, que instituiu a Política Judiciária de Tratamento de Conflitos, os Cejuscs são unidades da Justiça onde, preferencialmente, devem ocorrer as audiências de conciliação e mediação. Além de disseminar a cultura do diálogo, a tentativa de buscar acordo reduz a quantidade de processos que chegam ao Judiciário. Atualmente, tramitam nos tribunais brasileiros mais de 95 milhões de processos judiciais.
“Esse é um passo importante para conseguirmos uma Justiça mais ágil. Não é racional mover a máquina do Judiciário para solucionar conflitos que podem ser resolvidos pelos próprios cidadãos”, avalia o conselheiro Emmanoel Campelo, presidente da Comissão Permanente de Acesso à Justiça e Cidadania e coordenador do Movimento Gestor pela Conciliação no CNJ.
São Paulo - Maior tribunal brasileiro, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) conta com o maior número de Cejuscs instalados no país: são 153 unidades, sendo 7 na capital e 146 no interior. Os centros paulistas têm alcançado importantes índices de sucesso na área da conciliação. Antes do ajuizamento da ação, na chamada fase pré-processual, o número de acordos vem beirando 67%. Das 122 mil sessões de tentativas de conciliação, houve resultado positivo em 82 mil delas. Na área processual (quando o processo judicial está em curso), das 113 mil sessões, 56 mil foram positivas, alcançando 49% de conciliações.
Em Minas Gerais, os centros realizaram 33 mil audiências e obtiveram acordos em 14 mil (42%) delas. Já os Cejuscs do Distrito Federal atenderam mais de 68 mil pessoas em 24 mil audiências de conciliação, tendo conseguido acordo em mais de 7 mil delas. Os dados, consolidados pelo Núcleo Permanente de Mediação e Conciliação (Nupemec) do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT), revelam um acréscimo de 47% no número de audiências realizadas em relação ao ano de 2014 e cerca de 24 mil pessoas atendidas a mais.
O tribunal firmou mais de 30 parcerias com instituições públicas e privadas para facilitar a resolução dos conflitos. Defensoria Pública, bancos, cooperativas, financeiras, construtoras, escritórios de advocacia, empresas de plano de saúde, instituições de ensino, empresas de telecomunicações e de transporte aéreo, além de empresas varejistas são parceiros do TJDFT.
Outros estados - Outro tribunal de Justiça que obteve bons resultados em 2015 foi o de Goiás. Dentre as 32 mil audiências de conciliação realizadas, o TJGO obteve 20 mil acordos (62,5%) nos seis Cejuscs da capital e 24 espalhados pelo interior do estado. A Bahia obteve 15.200 acordos no mesmo período. No Pará, o número de acordos chegou a 2.900 após 3.750 sessões. O Cejusc de Santa Catarina finalizou pouco mais de 2 mil acordos e, em Tocantins, das 4.400 audiências realizadas, foram concluídas satisfatoriamente 1.700.
Os centros estão em conformidade com a Lei de Mediação (Lei 13.140/2015) e o novo Código de Processo Civil (CPC), que entrará em vigor 18 de março e criou as audiências preliminares conciliatórias. Desde a criação da Política Nacional da Conciliação, já foram criados cerca de 500 centros em todo o país.
Dentre os casos que podem ser resolvidos nos Cejuscs estão questões relativas ao direito cível e de família, como regularização de divórcios, investigação de paternidade, pensão alimentícia e renegociação de dívidas.
Regina Bandeira
Agência CNJ de Notícias

terça-feira, 5 de abril de 2016

Acordo permitirá acesso à jurisprudência da CIDH em português

Os presidentes do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), ministro Ricardo Lewandowski, e da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), juiz Roberto de Figueiredo Caldas, assinam nesta terça-feira (5/4), às 16h, no STF, memorando de entendimento pelo qual o CNJ será o guardião da jurisprudência da Corte em língua portuguesa. Caldas entregará ao presidente do STF uma coletânea em língua portuguesa das principais sentenças da CIDH traduzidas para o português, com a cessão de direitos para o CNJ.
O entendimento prevê, em linhas gerais, colaboração ampla e direta entre os dois órgãos, a partir do interesse mútuo em promover, velar e difundir as normas internacionais e a jurisprudência dos Tribunais de Direitos Humanos, com ênfase para aquelas oriundas do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
A parceria segue o princípio do diálogo jurisprudencial, pelo qual a jurisprudência local se integra à jurisprudência do sistema interamericano de direitos humanos e vice-versa, em uma espécie de via de mão dupla. Para tanto, uma das primeiras medidas a serem implementadas com a assinatura do memorando é a busca dos meios para que o acervo em língua portuguesa esteja acessível pelo site do CNJ.
CIDH - A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem sede em San José, capital da Costa Rica, e faz parte do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Ela é um dos três Tribunais regionais de proteção dos Direitos Humanos, ao lado do Tribunal Europeu de Direitos Humanos e a Corte Africana de Direitos Humanos e dos Povos. Sua primeira reunião foi realizada em 1979 na sede da Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington, EUA.
A CIDH é composta de sete juízes, sendo presidida atualmente pelo brasileiro juiz Roberto de Figueiredo Caldas, além de juízes da Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador e México. Trata-se de um tribunal típico, que julga casos contenciosos entre cidadãos e países, além de supervisionar a aplicação de suas sentenças e ditar medidas cautelares.
Atualmente, a CIDH é composta de 20 países, englobando 560 milhões de cidadãos. Embora o Brasil seja o único país de língua portuguesa, sua população de 200 milhões de habitantes constitui uma parcela significativa dos cidadãos abrangidos pela jurisdição da CIDH.
Fonte: STF

sexta-feira, 1 de abril de 2016

Brasil: a democracia à beira do caos e os perigos da desordem jurídica

Brasil: a democracia à beira do caos e os perigos da desordem jurídica

 Por Boaventura de Souza Santos

Quando, há quase trinta anos, iniciei os estudos sobre o sistema 

judicial em vários países, a administração da justiça era a dimensão 

institucional do Estado com menos visibilidade pública. A grande exceção 

eram os EUA devido ao papel fulcral do Tribunal Supremo nas definições 

das mais decisivas políticas públicas. Sendo o único órgão de soberania não 

eleito, tendo um carácter reativo (não podendo, em geral, mobilizar-se por 

iniciativa própria) e dependendo de outras instituições do Estado para fazer 

aplicar as suas decisões (serviços prisionais, administração pública), os 

tribunais tinham uma função relativamente modesta na vida orgânica da 

separação de poderes instaurada pelo liberalismo político moderno, e tanto

assim que a função judicial era considerada apolítica. Contribuía também 

para isso o facto de os tribunais só se ocuparem de conflitos individuais e 

não coletivos e estarem desenhados para não interferir com as elites e 

classes dirigentes, já que estas estavam protegidas por imunidades e outros 

privilégios. Pouco se sabia como funcionava o sistema judicial, as 

características dos cidadãos que a ele recorriam e para que objetivos o 

faziam. Tudo mudou desde então até aos nossos dias. Contribuíram para 

isso, entre outros fatores, a crise da representação política que atingiu os 

órgãos de soberania eleitos, a maior consciência dos direitos por parte dos 

cidadãos e o facto de as elites políticas, confrontadas com alguns impasses 

políticos em temas controversos, terem começado a ver o recurso seletivo 

aos tribunais como uma forma de descarregarem o peso político de certas 

decisões. Foi ainda importante o facto de o neoconstitucionalismo 

emergente da segunda guerra mundial ter dado um peso muito forte ao 

controlo da constitucionalidade por parte dos tribunais constitucionais. Esta 

inovação teve duas leituras opostas. Segundo uma das leituras, tratava-se 

de submeter a legislação ordinária a um controlo que impedisse a sua fácil 

instrumentalização por forças políticas interessadas em fazer tábua rasa dos 

preceitos constitucionais, como acontecera, de maneira extrema, nos 

regimes ditatoriais nazis e fascistas. Segundo a outra leitura, o controlo da 

constitucionalidade era o instrumento de que se serviam as classes políticas 

dominantes para se defenderem de possíveis ameaças aos seus interesses 

decorrentes das vicissitudes da política democrática e da "tirania das 

maiorias". Como quer que seja, por todas estas razões surgiu um novo tipo 

de ativismo judiciário que ficou conhecido por judicialização da política e 

que inevitavelmente conduziu à politização da justiça. 

A grande visibilidade pública dos tribunais nas últimas décadas 

resultou, em boa medida, dos casos judiciais que envolveram membros das

elites políticas e económicas. O grande divisor de águas foi o conjunto de 

processos criminais que atingiu quase toda a classe política e boa parte da 

elite económica da Itália conhecido por Operação Mãos Limpas. Iniciado 

em Milão em abril de 1992, consistiu em investigações e prisões de 

ministros, dirigentes partidários, membros do parlamento (em certo 

momento estavam a ser investigados cerca de um terço dos deputados), 

empresários, funcionários públicos, jornalistas, membros dos serviços 

secretos acusados de crimes de suborno, corrupção, abuso de poder, fraude, 

falência fraudulenta, contabilidade falsa, financiamento político ilícito. 

Dois anos mais tarde tinham sido presas 633 pessoas em Nápoles, 623 em 

Milão e 444 em Roma. Por ter atingido toda a classe política com 

responsabilidades de governação no passado recente, o processo Mãos 

Limpas abalou os fundamentos do regime político italiano e esteve na 

origem da emergência, anos mais tarde, do "fenómeno" Berlusconi. Ao 

longo dos anos, por estas e por outras razões, os tribunais têm adquirido 

grande notoriedade pública em muitos países. O caso mais recente e talvez 

o mais dramático de todos os que conheço é a Operação Lava Jato no 

Brasil.

Iniciada em março de 2014, esta operação judicial e policial de 

combate à corrupção, em que estão envolvidos mais de uma centena de

políticos, empresários e gestores, tem-se vindo a transformar a pouco e 

pouco no centro da vida política brasileira. Ao entrar na sua 24a fase, com 

a implicação do ex-presidente Lula da Silva e com o modo como foi 

executada, está a provocar uma crise política de proporções semelhantes à 

que antecedeu o golpe de Estado que em 1964 instaurou a uma odiosa 

ditadura militar que duraria até 1985. O sistema judicial, que tem a seu 

cargo a defesa e garantia da ordem jurídica, está transformado num 

perigoso fator de desordem jurídica. Medidas judiciais flagrantemente

ilegais e inconstitucionais, a seletividade grosseira do zelo persecutório, a 

promiscuidade aberrante com a mídia ao serviços das elites políticas 

conservadoras, o hiper-ativismo judicial aparentemente anárquico,

traduzido, por exemplo, em 27 liminares visando o mesmo ato político, 

tudo isto conforma uma situação de caos judicial que acentua a insegurança 

jurídica, aprofunda a polarização social e política e põe a própria 

democracia brasileira à beira do caos. Com a ordem jurídica transformada 

em desordem jurídica, com a democracia sequestrada pelo órgão de 

soberania que não é eleito, a vida política e social transforma-se num 

potencial campo de despojos à mercê de aventureiros e abutres políticos.

Chegados aqui, várias perguntas se impõem. Como se chegou a este ponto?

A quem aproveita esta situação? O que deve ser feito para salvar a 

democracia brasileira e as instituições que a sustentam, nomeadamente os 

tribunais? Como atacar esta hidra de muitas cabeças de modo a que de cada 

cabeça cortada não cresçam mais cabeças? Procuro identificar neste texto 

algumas pistas de resposta.

Como chegámos a este ponto? 

Por que razão a Operação Lava Jato está a ultrapassar todos os limites 

da polémica que normalmente suscita qualquer caso mais saliente de 

ativismo judicial? Note-se que a semelhança com os processos Mãos 

Limpas na Itália tem sido frequentemente invocada para justificar a 

notoriedade e o desassossego públicos causado pelo ativismo judicial. Mas 

as semelhanças são mais aparentes do que reais. Há, pelo contrário, duas 

diferenças decisivas entre as duas operações. Por um lado, os magistrados 

italianos mantiveram um escrupuloso respeito pelo processo penal e,

quando muito, limitaram-se a aplicar normas que tinham sido 

estrategicamente esquecidas por um sistema judicial conformista e 

conivente com os privilégios das elites políticas dominantes na vida 

política italiana do pós-guerra. Por outro lado, procuraram investigar com 

igual zelo os crimes de dirigentes políticos de diferentes partidos políticos 

com responsabilidades governativas. Assumiram uma posição 

politicamente neutra precisamente para defender o sistema judicial dos 

ataques que certamente lhe seriam desferidos pelos visados das suas 

investigações e acusações. Tudo isto está nos antípodas do triste espetáculo 

que um setor do sistema judicial brasileiro está a dar ao mundo. O impacto 

do ativismo dos magistrados italianos chegou a ser designado por 

República dos Juízes. No caso do ativismo do setor judicial lava-jatista,

podemos falar, quando muito, de República judicial das bananas. Porquê? 

Pelo impulso externo que com toda a evidência está por detrás desta 

específica instância de ativismo judicial brasileiro e que esteve em grande 

medida ausente no caso italiano. Esse impulso dita a escancarada 

seletividade do zelo investigativo e acusatório. Embora estejam envolvidos 

dirigentes de vários partidos, a Operação Lava Jato, com a conivência da

mídia, tem-se esmerado na implicação de líderes do PT com o objetivo, 

hoje indisfarçável, de suscitar o assassinato político da Presidente Dilma 

Roussef e do ex-Presidente Lula da Silva.

Pela importância do impulso externo e pela seletividade da ação 

judicial que ele tende a provocar, a Operação Lava Jato tem mais 

semelhanças com uma outra operação judicial ocorrida na Alemanha, na 

República de Weimar, depois do fracasso da revolução alemã de 1918. A 

partir desse ano e num contexto de violência política provinda, tanto da 

extrema esquerda como da extrema direita, os tribunais alemães revelaram 

uma dualidade chocante de critérios, punindo severamente a violência da 

extrema esquerda e tratando com grande benevolência a violência da 

extrema direita, a mesma que anos mais tarde iria a levar Hitler ao poder. 

No caso brasileiro, o impulso externo são as elites económicas e as 

forças políticas ao seu serviço que não se conformaram com a perda das 

eleições em 2014 e que, num contexto global de crise da acumulação do 

capital, se sentiram fortemente ameaçadas por mais quatro anos sem 

controlar a parte dos recursos do país diretamente vinculada ao Estado em 

que sempre assentou o seu poder. Essa ameaça atingiu o paroxismo com a 

perspetiva de Lula da Silva, considerado o melhor Presidente do Brasil

desde 1988 e que saiu do governo com uma taxa de aprovação de 80%, vir 

a postular-se como candidato presidencial em 2018. A partir desse 

momento, a democracia brasileira deixou de ser funcional para este bloco 

político conservador e a desestabilização política começou. O sinal mais 

evidente da pulsão anti-democrática foi o movimento pelo impeachment da 

Presidente Dilma poucos meses depois da sua tomada de posse, algo, senão 

inédito, pelo menos muito invulgar na história democrática das três últimas 

décadas. Bloqueados na sua luta pelo poder por via da regra democrática 

das maiorias (a "tirania das maiorias"), procuraram pôr ao seu serviço o 

órgão de soberania menos dependente do jogo democrático e 

especificamente desenhado para proteger as minorias, isto é, os tribunais. A 

Operação Lava Jato, em si mesma uma operação extremamente meritória, 

foi o instrumento utilizado. Contando com a cultura jurídica conservadora 

dominante no sistema judicial, nas Faculdades de Direito e no país em 

geral, e com uma arma mediática de alta potência e precisão, o bloco 

conservador tudo fez para desvirtuar a Operação Lava Jata, desviando-a 

dos seus objetivos judiciais, em si mesmos fundamentais para o 

aprofundamento democrático, e convertendo-a numa operação de 

extermínio político. O desvirtuamento consistiu em manter a fachada 

institucional da Operação Lava Jato, mas alterando profundamente a 

estrutura funcional que a animava por via da sobreposição da lógica 

política à lógica judicial. Enquanto a lógica judicial assenta na coerência 

entre meios e fins ditada pelas regras processuais e as garantias 

constitucionais, a lógica política, quando animada pela pulsão anti-
democrática, subordina os fins aos meios, e é pelo grau dessa subordinação 

que define a sua eficácia.

Em todo este processo, três grandes fatores jogam a favor dos 

desígnios do bloco conservador. O primeiro resultou da dramática 

descaracterização do PT enquanto partido democrático de esquerda. Uma 

vez no poder, o PT decidiu governar à moda antiga (isto é, oligárquica) 

para fins novos e inovadores. Ignorante da lição da República de Weimar, 

acreditou que as "irregularidades" que cometesse seriam tratadas com a 

mesma benevolência com que eram tradicionalmente tratadas as 

irregularidades das elites e classes políticas conservadoras que tinham 

dominado o país desde a independência. Ignorante da lição marxista que 

dizia ter incorporado, não foi capaz de ver que o capital só confia nos seus 

para o governar e que nunca é grato a quem, não sendo seu, lhes faz 

favores. Aproveitando um contexto internacional de excecional valorização 

dos produtos primários, provocado pelo desenvolvimento da China, 

incentivou os ricos a enriquecerem como condição para dispor dos recursos 

necessários para levar a cabo as extraordinárias politicas de redistribuição 

social que fizeram do Brasil um país substancialmente menos injusto ao

libertarem mais de 45 milhões de brasileiros do jugo endémico da pobreza.

Findo o contexto internacional favorável, só uma política "à moda nova" 

poderia dar sustentação à redistribuição social, ou seja, uma política que,

entre muitas outras vertentes, assentasse na reforma política para 

neutralizar a promiscuidade entre o poder político e o poder económico, na 

reforma fiscal para poder tributar os ricos de modo a financiar a 

redistribuição social depois do fim do boom das commodities, e na reforma 

da mídia, não para censurar, mas para garantir a diversidade da opinião 

publicada. Era, no entanto, demasiado tarde para tanta coisa que só poderia 

ter sido feita em seu tempo e fora do contexto de crise.

O segundo fator, relacionado com este, é a crise económica global e o 

férreo controlo que tem sobre ela quem a causa, o capital financeiro,

entregue à sua voragem autodestrutiva, destruindo riqueza sob o pretexto 

de criar riqueza, transformando o dinheiro, de meio de troca, em 

mercadoria por excelência do negócio da especulação. A hipertrofia dos 

mercados financeiros não permite crescimento económico e, pelo contrário, 

exige políticas de austeridade por via dos quais os pobres são investidos do 

dever de ajudar os ricos a manterem a sua riqueza e, se possível, a serem 

mais ricos. Nestas condições, as precárias classes médias criadas no 

período anterior ficam à beira do abismo de pobreza abrupta. Intoxicadas 

pela mídia conservadora, facilmente convertem os governos responsáveis 

pelo que são hoje em responsáveis pelo que lhes pode acontecer amanhã. E 

isto é tanto mais provável quanto a sua viagem da senzala para os pátios 

exteriores da Casa Grande foi realizada com o bilhete do consumo e não 

com o bilhete da cidadania. 

O terceiro fator a favor do bloco conservador é o fato de o 

imperialismo norte-americano estar de volta ao continente depois das suas 

aventuras pelo Médio Oriente. Há cinquenta anos, os interesses 

imperialistas não conheciam outro meio senão as ditaduras militares para 

fazer alinhar os países do continente pelos seus interesses. Hoje, dispõem 

de outros meios que consistem basicamente em financiar projetos de 

desenvolvimento local, organizações não governamentais em que a defesa 

da democracia é a fachada para atacar de forma agressiva e provocadora os 

governos progressistas ("fora o comunismo", "fora o marxismo", "fora 

Paulo Freire", "não somos a Venezuela", etc, etc.). Em tempos em que a 

ditadura pode ser dispensada se a democracia servir os interesses 

económicos dominantes, e em que os militares, ainda traumatizados pelas 

experiências anteriores, parecem indisponíveis para novas aventuras 

autoritárias, estas formas de desestabilização são consideradas mais 

eficazes porque permitem substituir governos progressistas por governos 

conservadores mantendo a fachada democrática. Os financiamentos que 

hoje circulam abundantemente no Brasil provêm de uma multiplicidade de 

fundos (a nova natureza de um imperialismo mais difuso), desde as 

tradicionais organizações vinculadas à CIA até aos irmãos Koch, que nos

EUA financiam a política mais conservadora e que têm interesses

sobretudo no sector do petróleo, e às organizações evangélicas 

norteamericanas.

Como salvar a democracia brasileira?

A primeira e mais urgente tarefa é salvar o judiciário brasileiro do 

abismo em que está a entrar. Para isso, o sector íntegro do sistema judicial, 

que certamente é maioritário, deve assumir a tarefa de repor a ordem, a 

serenidade e a contenção no interior do sistema. O princípio orientador é 

simples de formular: a independência dos tribunais no Estado de direito 

visa permitir aos tribunais cumprir a sua quota parte de responsabilidade na 

consolidação da ordem e convivência democráticas. Para isso, não podem 

pôr a sua independência, nem ao serviço de interesses corporativos, nem de 

interesses políticos setoriais, por mais poderosos que sejam. O princípio é

fácil de formular, mas muito difícil de aplicar. A responsabilidade maior na 

sua aplicação reside agora em duas instâncias. O STF (Supremo Tribunal 

Federal) deve assumir o seu papel de máximo garante da ordem jurídica e 

pôr termo à anarquia jurídica que se está a instaurar. Muitas decisões 

importantes recairão sobre o STF nos próximos tempos e elas devem ser 

acatadas por todos qualquer que seja o seu teor. O STF é neste momento a 

única instituição que pode travar a dinâmica de estado de exceção que está 

instalada. Por sua vez, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça), a quem 

compete o poder de disciplinar sobre os magistrados, deve instaurar de 

imediato processos disciplinares por reiterada prevaricação e abuso 

processual, não só ao juiz Sérgio Moro como a todos os outros que têm 

seguido o mesmo tipo de atuação. Sem medidas disciplinares exemplares, o 

judiciário brasileiro corre o risco de perder todo o peso institucional que 

granjeou nas últimas décadas, um peso que, como sabemos, não foi sequer 

usado para favorecer forças ou políticas de esquerda. Apenas foi 

conquistado mantendo a coerência e a isonomia entre meios e fins.

Se esta primeira tarefa for realizada com êxito, a separação de poderes 

será garantida e o processo político democrático seguirá o seu curso. O 

governo Dilma decidiu acolher Lula da Silva entre os seus ministros. Está 

no seu direito de o fazer e não compete a nenhuma instituição, e muito 

menos ao judiciário, impedi-lo. Não se trata de fuga à justiça por parte de 

um político que nunca fugiu à luta, dado que será julgado (se esse for o 

caso) por quem sempre o julgaria em última instância, o STF. Seria uma 

aberração jurídica aplicar neste caso a teoria do "juiz natural da causa". 

Pode, isso sim, discordar-se do acerto da decisão política tomada. Lula da 

Silva e Dilma Rousseff sabem que fazem uma jogada arriscada. Tanto mais 

arriscada se a presença de Lula não significar uma mudança de rumo que 

tire às forças conservadoras o controle sobre o grau e o ritmo de desgaste 

que exercem sobre o governo. No fundo, só eleições presidenciais 

antecipadas permitiriam repor a normalidade. Se a decisão de Lula-Dilma

correr mal, a carreira de ambos terá chegado ao fim, e a um fim indigno e 

particularmente indigno para um político que tanta dignidade devolveu a 

tantos milhões de brasileiros. Além disso, o PT levará muitos anos até 

voltar a ganhar credibilidade entre a maioria da população brasileira, e para 

isso terá de passar por um processo de profunda transformação. Se correr 

bem, o novo governo terá de mudar urgentemente de política para não 

frustrar a confianças dos milhões de brasileiros que estão a vir para a rua 

contra os golpistas. Se o governo brasileiro quer ser ajudado por tantos 

manifestantes, tem que os ajudar a terem razões para o ajudar. Ou seja, 

quer na oposição, quer no governo, o PT está condenado a reinventar-se. E 

sabemos que no governo esta tarefa será muito mais difícil.

A terceira tarefa é ainda mais complexa porque nos próximos tempos 

a democracia brasileira vai ter de ser defendida tanto nas instituições como 

nas ruas. Como nas ruas não se faz formulação política, as instituições 

terão a prioridade devida mesmo em tempos de pulsão autoritária e de 

exceção antidemocrática. As manobras de desestabilização vão continuar e 

serão tanto mais agressivas quanto mais visível for a fraqueza do governo e 

das forças que o apoiam. Haverá infiltrações de provocadores tanto nas 

organizações e movimentos populares como nos protestos pacíficos que 

realizarem. A vigilância terá de ser total já que este tipo de provocação está 

hoje a ser utilizado em muitos contextos para criminalizar o protesto social,

fortalecer a repressão estatal e criar estados de exceção, mesmo se com 

fachada de normalidade democrática. De algum modo, como tem defendido 

Tarso Genro, o estado de exceção está já instalado, de modo que a bandeira 

"Não vai ter golpe" tem de ser entendida como denunciando o golpe 

político-judicial que já está em curso, um golpe de tipo novo que é 

necessário neutralizar.

Finalmente, a democracia brasileira pode beneficiar da experiência 

recente de alguns países vizinhos. O modo como as políticas progressistas 

foram realizadas no continente não permitiram deslocar para esquerda o 

centro político a partir do qual se definem as posições de esquerda e de

direita. Por isso, quando os governos progressistas são derrotados, a direita 

chega ao poder possuída por uma virulência inaudita apostada em destruir 

em pouco tempo tudo o que foi construído a favor das classes populares no 

período anterior. A direita vem então com um ânimo revanchista destinado 

a cortar pela raiz a possibilidade de voltar a surgir um governo progressista 

no futuro. E consegue a cumplicidade do capital financeiro internacional 

para inculcar nas classes populares e nos excluídos a ideia de que a 

austeridade não é uma política com que se possam defrontar; é um destino 

a que têm de se acomodar. O governo de Macri na Argentina é um caso 

exemplar a este respeito.

A guerra não está perdida, mas não será ganha se apenas se 

acumularem batalhas perdidas, o que sucederá se se insistir nos erros do

passado.