segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Ações contra o caos do sistema carcerário

LIMITE PENAL

O caos do sistema carcerário e as ações propostas pela Human Rights Watch

Por Aury Lopes Júnior e Alexandre Moraes da Rosa

O caos do sistema carcerário brasileiro não é novidade para quem atua em qualquer das diferentes esferas da Justiça criminal, mas ultimamente tem sido midiaticamente desvelada e passou finalmente a ter mais visibilidade e a integrar a agenda pública. Parece que finalmente a maioria das pessoas está percebendo que a barbárie e o descontrole do sistema carcerário retroalimenta o ciclo da violência urbana, bem como da falácia do discurso de "quanto pior, melhor...". Nesse contexto, os últimos acontecimentos levaram o governo federal a recorrer a uma velha fórmula bastante conhecida: um pacote emergencial, de efeito sedante. O problema é muito mais grave e precisamos de um projeto que contemple mais do que medidas emergenciais e simbólicas. Um plano de ação que pense a médio e longo prazo, que finalmente inicie uma mudança gradativa, mas efetiva.
Nessa linha, as seis propostas da Human Rights Watch podem ser um início de atuação coordenada e democrática. Não dá para fingir que está tudo bem, nem que uma reunião em Brasília dará conta de uma questão que apresenta múltiplas variáveis. Será necessário que se pense coletivamente, longe dos revanchismos e das visões maniqueístas, especialmente desconsiderando-se que punir faz parte da democracia. Partindo do enunciado das seis medidas, aparentemente simples e que todos conhecem, desenvolvemos alguns pontos para reflexão:
1. Retomar o controle das prisões
Uma ilusória ideia primeira seria a de invadir o complexo penitenciário e assim tudo estaria resolvido. A questão é primeiro compreender como funciona, de fato, as relações de poder dentro dos estabelecimentos penais. Depois, sem planos nacionais, mas particularizados por região e estado e com a participação da comunidade local, buscar alternativas para o cumprimento dos deveres e direitos dos presos. Prende-se e se cumpre pena dentro dos limites legais. Apenas adentrar e "tomar" o controle parcial é ingênuo, porque, uma vez fechada a "trava", a regra do poder, diante do vazio, é a de encontrar alguém que assuma. É preciso uma ação coordenada entre União, estados e municípios para começar a resolver o grave déficit de vagas por meio da construção de presídios com até 500 vagas (para realmente existir controle). Maxiprisões são sinônimo de descontrole, violência e promiscuidade. Também é preciso que os municípios assumam sua parcela de responsabilidade e permitam que os presos do interior cumpram suas penas em casas prisionais próximas às suas cidades, e não nos grandes centros. Outra dimensão do "controle" é que o Estado efetivamente cumpra com o seu dever de fornecer alimentação, vestuário e higiene, reduzindo ao máximo o "comércio" das cantinas e verdadeiros supermercados que alguns presídios possuem, administrados e (literalmente) explorados por presos. Isso gera relações de débito-crédito a serem pagas em "moeda" violência, no presídio ou fora dele. Além de constituir uma porta de entrada para drogas, armas e celulares. Por fim, é preciso uma estratégia para que gradativamente se diminua/elimine o poder das facções dentro das casas prisionais. Hoje, quem controla um presídio não é o poder público, e isso precisa acabar definitivamente.

2. Separar os presos
É básico e legal que presos cautelares, de violência doméstica, por classe de infrações, não poderiam conviver indiscriminadamente. São relações de poder assimétricas que geram, na confusão, mais uma vez a lei do mais forte, do mais temido, do que exercer o poder (imaginário ou real). Unidades muito grandes, com número expressivo de presos, por outro lado, tornam-se ingovernáveis. O padrão precisa ser alterado. Há que se fazer, efetivamente, uma triagem e acompanhar a execução da pena para que essa separação se mantenha. Novamente, é preciso compreender que a promiscuidade de condenados gera violência e descontrole, além de fornecer mão de obra e fortalecer cada vez mais o crime organizado e as facções.

3. Prover programas educacionais e de trabalho dentro dos presídios
Tente ficar uma semana sem sair de casa, sem acesso ao seu smartphone, desprovido de ocupação e expectativa de vida. Talvez assim você possa entender que o tempo de prisão — não iremos discutir sua função — pode ser utilizado para preparação do apenado para a vida coletiva. Educação e profissionalização auxiliam na vida fora das grades. Manter alguém confinado e sem esperanças torna-o presa fácil para oportunismo de todos os lados. Propiciar que alguém humano possa aprender um ofício ou mesmo se alfabetizar é um ganho sempre. O trabalho do preso é um direito, não um dever, mas é preciso que realmente exista possibilidade de trabalho e condições de reinserção social. Nesse ponto, as parcerias público-privado podem funcionar muito bem, com estímulos fiscais e facilidades para que empresas se instalem dentro dos presídios, desde que garantidos os direitos trabalhistas, e não a exploração de hoje. Esse trabalho, além do papel que cumpre durante a execução da pena, facilita o retorno ao convívio social. Não podemos mais continuar com presos costurando bolas e fazendo barquinhos com pauzinho de picolé ou palito de fósforo. Isso é o sintoma evidente do descompasso entre o ritmo social e a realidade do sistema carcerário. O filme Um Sonho de Liberdade bem retrata o rompimento das dinâmicas e a impossibilidade de um condenado a longas penas voltar ao convívio social lícito no modelo atual.

4. Ampliar o acesso à Justiça 
Devido processo legal substancial e garantia de direitos fundamentais é caro e, por isso, precisamos tornar mais efetivo os mecanismos de acesso aos serviços públicos, dada a escassez. Não se trata de direito de ação individual, necessariamente, mas fundamentalmente coletivo. O uso inteligente de mecanismos de garantia de todos (vítimas e apenados) deve prevalecer. Ademais, é preciso que exista efetividade da defesa e do contraditório durante o "processo de execução". O mutirão do sistema carcerário feito pelo CNJ evidenciou números absurdos de presos cumprindo penas além do devido, com direitos de progressão, livramento condicional, remição, detração etc. não reconhecidos por absoluta falta de acesso efetivo à Justiça. Isso contribui para o inchaço do sistema e, principalmente, para graves injustiças que resultam em rebeliões e outros tipos de violência. Na imensa maioria das rebeliões, um dos pontos nucleares da pauta de reivindicações (além de melhores condições de higiene e alimentação) é exatamente esse: a falta de assistência jurídica efetiva e o reconhecimento de direitos durante a execução da pena.

5. Reduzir o número de presos que aguardam julgamento 
Banalizamos a prisão cautelar e estamos pagando um preço altíssimo por isso. A lógica da prisão cautelar é a de garantir o processo que, por sua vez, deveria ter um prazo razoável. Manter-se aprisionado, nos patamares atuais — fala-se em 40%, em alguns estados supera os 50% — é uma atitude pouco democrática. A prisão preventiva é um mal necessário, mas deve ser a ultima ratio do sistema, e não a prima ratio, como estamos fazendo. Deve realmente ser excepcional, provisória e provisional. As medidas cautelares diversas do artigo 319 do CPP seguem sendo ilustres desconhecidas para muitos juízes criminais, infelizmente. Temos excesso de prisões preventivas, abusivas, desnecessárias e, principalmente, por extrapolação de tempo. No Brasil, é recorrente uma prisão preventiva durar três, quatro, cinco e até sete anos. É preciso definir prazo máximo de duração (que infelizmente não vingou na reforma de 2011, em que pese estar no PL 4.208/2001) e que a prisão cautelar realmente seja breve, provisória. Ademais, precisamos retomar a discussão (também estava no PL 4.208/2001 e foi afastada na redação final) do dever de revisar periodicamente os fundamentos da prisão preventiva. Por fim, o fortalecimento da audiência de custódia, com sua efetivação em todas as comarcas (e não apenas nas capitais) também contribuiria para a redução das prisões preventivas abusivas.

6. Reformar a política de drogas 
A política de drogas joga com o medo e a desinformação geral. Ninguém quer jovens e adultos usando drogas, assim como não queremos viciados em álcool. O que importa é acabar com o mercado paralelo em que não há controle. As experiências de tolerância e redução de danos poderiam ser um mecanismo de mitigação da violência. Para tanto, precisamos, também, superar a lógica talibã, como diz Thiago Fabres de Carvalho, em que qualquer um envolvido com drogas precisa ser exterminado. Temos à disposição meios de punir de modo inteligente e não manter em estabelecimentos penais um exército de usuários e entregadores de drogas que fazem a venda no varejo, enquanto os operadores do mercado sorriem. Será que alguém acredita que prender o sujeito que vende o produto acaba com a produção? A discussão sobre a legalização é válida e precisa ser aprofundada, ponderando-se com seriedade e sem histeria sobre vantagens, inconvenientes e riscos. O que não se pode mais é deixar a situação como está. A ingenuidade precisa ser superada, e os paliativos, também.

As questões estão abertas ao debate sério que não se seduz com promessas fáceis. As seis medidas podem ser um início necessário à superação do caos em que vivenciamos de fora, enquanto, por dentro do sistema, a coisa continua fervendo.
 é doutor em Direito Processual Penal, professor titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.
 é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).
Revista Consultor Jurídico 13 de janeiro de 2017..

Críticas e soluções ao sistema prisional

RAÍZES DO MASSACRE

Entidades lançam carta criticando sistema prisional e propondo soluções

Desde o início do ano, o quadro caótico no qual se encontra o sistema prisional brasileiro deixou de ser assunto restrito aos presídios superlotados e em situações bem abaixo da linha da civilidade e chegou às manchetes dos jornais e aos grupos de WhatsApp. Massacres no Amazonas e em Roraima ressuscitaram debates sobre encarceramento, Direito Penal e punitivismo. Nesta quinta-feira (12/1), uma carta assinada por 20 entidades atuantes na sociedade civil entra para o debate, recusando a ideia de que as chacinas sejam episódios esporádicos: são sintomas crônicos de um sistema em colapso.
As entidades criticam a “insistência no uso predominante da pena de prisão como principal resposta ao cometimento de um crime” e alertam que o Brasil aumentou seu nível de encarceramento em mais dez vezes desde 2000, o que é o caminho inverso ao restante do mundo.
“A Rede Justiça Criminal e as organizações parceiras abaixo subscritas conclamam as autoridades públicas a tratar a grave crise do sistema carcerário orientadas pelo respeito aos direitos humanos, de forma a enfrentar suas causas estruturantes e não se atendo à adoção de medidas de caráter paliativo ou imediatista”, escrevem.
As organizações defendem a revisão da política criminal vigente, “mediante a adoção de uma política pública consistente, que leva à redução da população carcerária — com especial atenção para a revisão da política de drogas, incentivo à política de alternativas penais e à implementação das audiências de custódia, como mecanismo fundamental de verificação da legalidade da prisão, do cumprimento das garantias processuais e da prática de abuso ou tortura – construída a partir da produção e análise consistente das estatísticas de justiça criminal, de forma transparente e regular”.
Leia a carta na íntegra:
Em menos de 25 anos, são inúmeras as crises que eclodiram dentro de unidades prisionais nos quatro cantos do Brasil: Carandiru em São Paulo (1992), Urso Branco em Rondônia (2002), Pedrinhas no Maranhão (2013), Cascavel no Parará (2014), Curado em Pernambuco (2015), e somente nas primeiras semanas de 2017, Complexo Anísio Jobim – COMPAJ - no Amazonas e Penitenciária Agrícola de Monte Cristo em Roraima, para citar apenas as mais noticiadas. Não é razoável tratar todos esses fenômenos como episódios desconectados ou como uma série de acidentes. O diagnóstico é muito mais sério, expondo as convulsões de um sistema colapsado.
A insistência no uso predominante da pena de prisão como principal resposta ao cometimento de um crime denuncia a escolha por uma política criminal punitivista que conduz ao encarceramento em massa. Os dados mais recentes divulgados pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) do Ministério da Justiça indicam que, em dezembro de 2014, o Brasil mantinha encarceradas 622.202 pessoas, comprimidas em um sistema deficitário em 250.318 vagas[1]. Em termos gerais, o Brasil mantém 306 pessoas presas por 100.000 habitantes, o que representa mais do que o dobro da média mundial, ostentando 6ª maior taxa de encarceramento do planeta[2]. No entanto, 40% da população prisional, ou seja, 249.668 indivíduos, estão presos sem terem sequer recebido uma sentença condenatória[3] — quantidade de pessoas suficiente, por si só, para zerar o déficit de vagas.
Essa realidade coloca o Brasil na quarta posição dos países que mais encarceram no mundo e revela uma franca tendência de agravamento do encarceramento em massa. Desde os anos 2000, a população prisional cresceu 167,32%, proporção mais de dez vezes superior ao crescimento experimentado pelo total da população do país. Tal direcionamento coloca o Brasil na contramão da trajetória de países como os Estados Unidos, que experimentaram políticas de endurecimento penal e estão voltando atrás, dado seu fracasso para a melhoria dos índices de violência e seu impacto no agravamento das desigualdades sociais.
A Rede Justiça Criminal[4] e as organizações parceiras abaixo subscritas conclamam as autoridades públicas a tratar a grave crise do sistema carcerário orientadas pelo respeito aos direitos humanos, de forma a enfrentar suas causas estruturantes e não se atendo à adoção de medidas de caráter paliativo ou imediatista. 
Reiterando seu compromisso com a garantia do pleno acesso à justiça, da efetivação das respostas alternativas ao encarceramento e com o controle social da atuação do sistema de justiça e das instituições responsáveis pela execução das políticas públicas, em âmbito nacional e estadual, as organizações subscritoras denunciam a política brasileira de encarceramento em massa, que atinge de maneira desproporcional e sistemática jovens negros, de baixa escolaridade e de baixa renda. É preciso reconhecer que o sistema de justiça criminal em vigor segue agravando vulnerabilidades, reforçando estigmas e reproduzindo desigualdades preexistentes. Em consequência, o sistema de justiça criminal termina por alimentar o ciclo de violência que assola a sociedade brasileira. A manutenção dessa tendência, à revelia de diagnósticos sérios e fidedignos da realidade, oferece tão somente terreno fértil para futuras e mais violentas rebeliões.
As organizações subscritoras defendem a revisão da política criminal vigente, mediante a adoção de uma política pública consistente, que leva à redução da população carcerária — com especial atenção para a revisão da política de drogas, incentivo à política de alternativas penais e à implementação das audiências de custódia, como mecanismo fundamental de verificação da legalidade da prisão, do cumprimento das garantias processuais e da prática de abuso ou tortura — construída a partir da produção e análise consistente das estatísticas de justiça criminal, de forma transparente e regular".

[1] Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias:Infopen, dezembro de 2014.
[2] Considerou-se a metodologia proposta pelo INFOPEN, dezembro de 2014, que a fim de evitar distorções estatísticas, exclui do computo países com menos de 10 milhões de habitantes.
[3] Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: Infopen, dezembro de 2014.
[4] A Rede Justiça Criminal é composta de sete organizações da sociedade civil, quais sejam: Associação pela Reforma Prisional, Conectas Direitos Humanos, Instituto de Defensores de Direitos Humanos, Instituto de Defesa do Direitos de Defesa, Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, Justiça Global, Instituto Sou da Paz.
A carta é assinada por:
Rede Justiça Criminal
Andi Comunicação e Direitos Associação
Associação Franciscana de Defesa de Direitos e Formação Popular 
Associação pela Reforma Prisional 
Blog negro Belchior - Carta Capital 
Centro de Estudos de Segurança e Cidadania 
Conectas Direitos Humanos 
Conselho Federal de Serviço Social 
Conselho Regional de Psicologia de São Paulo 
Grupo de Pesquisa "Criminologia do Enfrentamento (UniCEUB/DF) 
Instituto Alana
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
Instituto de Defesa do Direito de Defesa 
Instituto de Defensores de Direitos Humanos 
ISER - Instituto de Estudos da Religião 
Instituto Sou da Paz
Instituto Terra Trabalho e Cidadania 
Justiça Global
Lassos/UFBA Laboratório de estudos do crime e sociedade da UFBA 
Uneafro - Brasil 
Revista Consultor Jurídico, 13 de janeiro de 2017.