sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Presunção de inocência X Governabilidade

O extermínio da presunção de inocência em nome da "governabilidade"

Por Fábio Tofic Simamtob
Vivemos, em 2016, um clima de tragédia política iminente, aquela atmosfera apavorante que permeia o livro Complô contra a América, de Philip Roth. A operação “lava jato” atingiu seu auge. Ganhou até biografia. Mas foi a vez também de a “lava jato” — sim, na pessoa jurídica mesmo — colocar os pés pelas mãos. Vazamentos de áudios, apresentações em PowerPoint, notícias de delações induzidas. Advogados agredidos na porta da Polícia Federal. Advogados grampeados e áudios divulgados em rede nacional (vale lembrar que o juiz Baltazar Garzón foi condenado na Espanha por conduta semelhante).
A impressão é que, com tantas mazelas expostas, foram-se embora os deuses, e o menino Jesus, aquele de Alberto Caeiro, veio visitar a nossa aldeia. “Eternamente humano e menino. Limpa o nariz ao braço direito, chapinha nas poças d’água, colhe as flores e gosta delas e esquece-as. Atira pedra aos burros, rouba a fruta dos pomares (...). Era nosso demais para fingir.”
Houve um debate muito grande em torno das prisões nos últimos anos, advogados denunciando que as prisões estão sendo usadas para extorquir delações (por todos eles, vale conferir o artigo de Alberto Zacharias Toron na última edição da Revista Brasileira de Ciências Criminais)[1], e procuradores se defendendo, dizendo que não. Na verdade, a opinião pública não está muito preocupada com isso. As pessoas no fundo não admitem, mas não acham nada grave prender para obter delações. 
Parcela da imprensa perdeu inclusive a vergonha de dizer isso. Quando houve a prisão de Eduardo Cunha, uma importante jornalista fazia sua “análise jurídica” com naturalidade em horário nobre da televisão, explicando ao telespectador que deveria ter paciência com eventual delação, porque a PF precisaria de uns dois meses para fazer aquela pressão básica na mulher e na filha, com ameaças de prisão, para então convencê-lo a delatar.
A missão da advocacia não é mais mostrar violações ao direito de defesa, mas explicar que o direito de defesa precisa ser respeitado. Um bom sismógrafo, para usar uma feliz expressão de Roxin, do estágio civilizatório em que chegou nossa democracia.
Dois mil e dezesseis foi também o ano do pacote das “10 medidas contra a corrupção”, que já é desonesto no nome. Não só porque não são dez, como também porque não é contra a corrupção. O Brasil continuou prendendo como nunca, abusando da prisão provisória, por furto e por tráfico, prendendo mães pegas com pequenas quantidades de droga. A investigação criminal continua arcaica, pífia e com baixíssimos índices de solução de casos. As ilegalidades se avolumam nos fóruns e nos tribunais, é raríssimo ver uma corte anular um processo por prova ilícita, o Habeas Corpus está cada vez mais agrilhoado, e a violência e a corrupção policiais continuam grassando soltas, pelo menos é o que dizem as organizações internacionais. Esquizofrenicamente, porém, a comunidade jurídica passou o ano discutindo o desejo do Ministério Público Federal de aumentar os poderes de todos os agentes de investigação. É como se disséssemos “estão morrendo nos hospitais, então fechem os hospitais”. As mazelas da Justiça não podem ser atribuídas à lei ou aos direitos e garantias fundamentais do cidadão. É desonesto fazer essa apologia. O problema é da ineficiência da máquina pública, do excesso de trabalho e da má gestão.
Neste caso do pacote do MPF, a farsa foi tão grande — e louvada seja a advocacia criminal e as inúmeras entidades envolvidas em apontar isso, com destaque para as defensorias públicas — que não demorou para veículos de comunicação como Folha de S.PauloEstado de S. Paulo e Veja apresentarem ressalvas em relação ao projeto de lei.
Os pontos mais criticados foram justamente aqueles rejeitados na Câmara dos Deputados.
Mas o ponto alto de desrespeito ao direito de defesa no ano foi o julgamento das ações declaratórias de constitucionalidade 43 e 44, que discutiam a execução provisória da pena. O Supremo Tribunal Federal já havia decidido em fevereiro que o início do cumprimento da pena, quando pendentes recursos especial e extraordinário, não viola a presunção de inocência, nem, portanto, a Constituição Federal. 
Relativizar, no entanto, o artigo da Constituição Federal mediante manobras hermenêuticas parecia fácil perto da dificuldade que seria negar vigência a um artigo do Código de Processo Penal, que de forma muito mais expressa impedia o STF de entender como entendeu. Diferente do que prescrevia o falecido artigo 5º, LVII, que diz que ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado, o artigo 283 do Código de Processo Penal diz que ninguém será preso antes do trânsito (fora as hipóteses clássicas de prisão provisória).
Reinterpretar o sentido da expressão “culpado” parecia simples, mas como reinventar a palavra “preso”? 
Foi o competente e arguto advogado Antônio Carlos de Almeida Castro que, com procuração do Partido Ecológico Nacional (PEN), percebeu com perspicácia que havia aí um novo caminho a ser percorrido. O STF teria que reexaminar a questão, mas agora sob enforque diverso, o da constitucionalidade e, por conseguinte, da plena vigência do artigo 283 do CPP.
Várias entidades aderiram, entre elas o Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), e engrossaram fileiras ao lado da legalidade, com destaque para as defensorias públicas de São Paulo e Rio de Janeiro — sem clientes na “lava jato”, frise-se. Foi um julgamento histórico. A defesa criminal — não importa se de pobres ou de poderosos — lado a lado, lutando pelo respeito à liberdade e à legalidade. O decano Técio Lins e Silva, presidente do Instituto dos Advogados do Brasil, encerrou a sequência de sustentações orais com um apelo dramático e emocionado dirigido aos ministros. 
Tudo em vão. O resultado foi o mesmo. Só que desta vez, para molhar o bico da opinião pública sedenta por prisões, o Supremo precisou expor uma insanidade jurídica que ecoaria em pronunciamentos futuros. 
Manteve seu posicionamento original, mas não declarou o artigo 283 do CPP inconstitucional, como seria o mais coerente, embora juridicamente inviável. A regra processual está em perfeita consonância com a norma do artigo 5º, inciso LVII da Constituição. Havia grande expectativa para saber como o STF sairia do imbróglio. Não sendo declarada a inconstitucionalidade do dispositivo, a opção de deixar de aplicá-lo só tinha uma explicação possível. O Supremo estava revogando, ou no mínimo reescrevendo o dispositivo. Esse era o recado escondido na decisão e que a opinião pública não captou naquele momento. A decisão poderia ser entendida como uma forma de pôr em xeque a própria independência dos Poderes da República. 
Não é mera coincidência que o ano judiciário tenha terminado com postura semelhante abalando a credibilidade das instituições, primeiro com o afastamento do presidente do Senado Federal por decisão monocrática de um ministro (que inclusive votou contra majoritariamente na questão da presunção de inocência), depois com a determinação de retorno de um projeto de lei para a Câmara para ser analisado de forma “correta” pelos deputados, decisão também monocrática de ministro do STF. 
Principalmente no primeiro caso, muitos que aplaudiram o extermínio da presunção de inocência, agora, em nome da “governabilidade” criticaram a intromissão do STF nas atividades legislativas. 
A raiz do problema talvez esteja aí. Foi o ano da “governabilidade”, o ano das ruas, o ano dos linchamentos públicos, o ano das paixões políticas, o ano das prisões para delatar; o ano das delações por encomenda; o ano do frenesi da opinião pública. E o ano em que a tão festejada audiência de custódia sofreu silenciosos ataques, terminando o ano sendo enxotada para bem longe. O projeto de lei que a regulamenta foi anexado ao CPP. Na prática legislativa significa que foi engavetado.
O Direito está fora de moda. Quando as paixões dão o tom da valsa, o Direito se esconde debaixo da mesa. Vivemos a era do voluntarismo. A nós só resta a vontade de que o ano termine logo. Feliz 2017.

[1] TORON, Alberto Zacharias, O Direito de Defesa na Lava Jato, RBCCrim. Ano 24, 122, p. 15/41, 2016, Editora Revista dos Tribunais.
 é advogado criminalista e presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD).

Revista Consultor Jurídico, 29 de dezembro de 2016

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

STF demora 400 dias em média para julgar liminar

STF demora 400 dias em média para julgar liminar

Decisões que deveriam ser provisórias e, via de regra, coletivas se tornaram majoritariamente duradouras e individuais no STF (Supremo Tribunal Federal).
Dados do projeto Supremo em Números, da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas no Rio, mostram que o tempo médio de vigência de uma liminar até que ela seja julgada coletivamente foi de 403 dias entre 2011 e 2015 –ou seja, pouco mais de um ano e um mês.
Como o regimento do Supremo não estipula prazos para que ordens judiciais desse tipo sejam julgadas no mérito, a vigência de cada uma varia enormemente.
Se o afastamento de Renan Calheiros (PMDB-AL) da presidência do Senado, determinado, em dezembro, pelo ministro Marco Aurélio Mello, foi revertido em plenário em dois dias, há casos que permaneceram pendentes por duas décadas.
Aconteceu com a ação direta de inconstitucionalidade (ADI) 917, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República em 1993. Uma liminar suspendeu a eficácia de lei mineira que reservava 30% de cargos públicos vagos aos próprios servidores estaduais. O plenário só foi confirmar o entendimento em 2013, dez anos depois.
Exemplos levantados pelo Supremo em Números abundam. Em determinados casos, a vigência é menor em termos temporais, mas seu impacto pode ser maior.
A liminar concedida pelo ministro Luiz Fux estendendo auxílio-moradia de quase R$ 4.400 mensais para todos os juízes federais já custou mais de R$ 1,5 bilhão em recursos públicos em dois anos de vigência, por exemplo.
ARBITRARIEDADES
Para especialistas, a gravidade da arbitrariedade no funcionamento do tribunal aumenta quando se constata que as liminares, cada vez mais numerosas, são também cada vez mais monocráticas (individuais).
Procurada pela Folha, a presidência do STF não quis se manifestar.
O total de determinações expedidas por um único ministro disparou de 4 em 1989 para 2.448 em 2015.
A quantidade de colegiadas praticamente não se alterou, passando de 23 a 26 no período (embora tenha variado no meio tempo, chegando a 225 em 2004). Mas, se antes elas representavam 85% das liminares no tribunal, agora respondem por 1%.
O acúmulo de casos recebidos pelo STF está na origem dessa distorção. Com algo entre 80 mil e 90 mil novos processos por ano, soluções mais ágeis são aplicadas.
Liminares monocráticas caminham mais rapidamente no STF, de acordo com o projeto da FGV.
Da data em que um caso deu entrada no tribunal até que um ministro o julgasse provisoriamente sozinho, passaram-se em média 65 dias em 2015. Para que um órgão colegiado (o plenário ou as turmas, compostas de cinco ministros cada) o fizesse, passaram-se 414 dias.
CONVENIÊNCIAS
Ao deliberadamente aceitar mais tipos de recursos em vez de limitar aqueles passíveis de análise no último grau da Justiça brasileira, o Supremo pretende se beneficiar, opinou o pesquisador Ivar Hartmann, coordenador do Supremo em Números.
"Isso dilui a visibilidade dos casos e aí os ministros têm mais liberdade de tomar decisões não ortodoxas", afirmou o professor da FGV.
Para ele, o excesso de casos serve ainda de "desculpa conveniente" para demoras em julgamentos sensíveis como o de Renan pelos crimes de peculato, falsidade ideológica e uso de documento falso, que ficou três anos parado no Supremo.
"O problema não é os ministros tomarem decisões políticas, mas, sim, que, diferentemente de outros órgãos, o STF não ter de prestar contas a ninguém", concluiu.
INDIVIDUALIZAÇÃO
A tendência de individualização das ordens no STF é verificada não só nas decisões liminares. Em geral, o Supremo tomou 18% menos decisões coletivas neste ano do que em 2015.
As decisões colegiadas, tomadas em plenário ou nas turmas, compostas por cinco ministros cada uma, diminuíram de 18 mil para 15 mil de um ano para o outro.
Segundo dados do Supremo, as decisões coletivas corresponderam a 12% do total em 2016. É o menor patamar desde 2010 (quando somaram 10%), último ano contemplado pelas estatísticas disponibilizadas pelo STF.
Por outro lado, as ordens expedidas exclusivamente por um ministro cresceram 3% em 2016 em relação ao ano passado, variando de 99 mil para 102 mil. 
(Transcrito do Jornal Folha de São Paulo de 29 de dezembro de 2016)

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

STF diminui decisões colegiadas em 2016

O Supremo Tribunal Federal tomou 18% menos decisões coletivas neste ano de atrito entre Poderes do que em 2015, acentuando uma tendência histórica de individualização das ordens na mais alta instância do Judiciário brasileiro e acirrando ânimos na classe política.
As decisões colegiadas, tomadas em plenário ou nas turmas, compostas por cinco ministros cada uma, diminuíram de 18 mil para 15 mil de um ano para o outro, enquanto o total de ordens do STF se manteve em cerca de 117 mil.
De acordo com dados oficiais da instituição, as decisões coletivas corresponderam a 12% do total em 2016. É o menor patamar desde 2010 (quando somaram 10%), último ano contemplado pelas estatísticas disponibilizadas pelo STF.
Por outro lado, as ordens expedidas exclusivamente por um ministro, tecnicamente chamadas de monocráticas, foram 3% mais volumosas neste ano em comparação com o anterior, passando de 99 mil para 102 mil.
DISTORÇÕES
A individualização das decisões no Supremo se acentua há quase duas décadas. Mas questionamentos a esse funcionamento recrudesceram em 2016, diante da crise no Brasil. Para analistas, divisões internas enfraquecem a instituição.
"A estratégia do Supremo de fragmentação, com a existência de 11 Supremos decidindo, tem criado crises políticas. Mas não tem aumentado a eficiência operacional", observou Joaquim Falcão, diretor da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas no Rio.
"A individualização é um fracasso que pode ser revertido. Revertido pelo Supremo", pontuou o docente.
Procurada, a presidência do Supremo Tribunal Federal não quis se manifestar.
Um dos casos recentes que expôs divergências decorreu da determinação do ministro Marco Aurélio Mello de afastar Renan Calheiros (PMDB-AL) da presidência do Senado, em 5 de dezembro.
Em atitude criticada, a Casa optou por ignorar a ordem judicial, argumentando que era, não apenas monocrática, como ainda liminar –ou seja, provisória.
Liminares, pela regra, devem ser submetidas a órgão colegiado. No caso de Renan, essa previsão foi cumprida e, dois dias depois de emitida, a ordem de Marco Aurélio foi à votação no plenário do STF e o afastamento, revertido.
O episódio, ainda assim, provocou novas manifestações públicas de desentendimento entre o ministro Gilmar Mendes e colegas de tribunal, além de insatisfações em outros Poderes.
Nem sempre o protocolo de julgamento colegiado de uma liminar é seguido, porém. Como o regimento do STF não estabelece um prazo para análise, decisões que deveriam ser provisórias vigoram, muitas vezes, por anos a fio.
A despeito de controvérsias recentes, o número de liminares oscilou relativamente pouco nos últimos seis anos, variando de 3.000 (em 2010) a 2.300 (2016).
EXCESSOS
Para Falcão, a interpretação do sistema recursal brasileiro feita pelo Supremo inviabiliza o trabalho no órgão. Por alto, ele estima que cada ministro teria de ler 3.000 páginas por dia útil para dar conta dos processos de sua competência.
"É impossível que um ministro leia essa quantidade de páginas por dia, mas o dever de leitura do ministro é direito do cidadão", argumentou.
"O Supremo já poderia ter diminuído seu trabalho por meio de rigoroso juízo de admissibilidade, de aplicação de multas por litigância de má-fé, agravos infundados e tantos outros. O Supremo não opta por esse caminho. Poderia optar, se houvesse um mínimo de coesão interna."
Um reflexo disso é a intermitência da produtividade do Supremo, se medida pelo total de decisões, colegiadas e monocráticas, proferidas anualmente.
Houve picos, por exemplo, em 2010 (110 mil) e 2016 (117 mil) e baixas em 2012 e 2013 (90 mil em cada ano).
É verdade que a quantidade de processos protocolados também varia. Mas, em um horizonte temporal mais distante, percebe-se que o STF vem acumulando trabalho.
Em 1990, por exemplo, 19 mil processos foram protocolados, segundo dados do tribunal. Neste ano, o total saltou para 91 mil. 

(Transcrito do Jornal Folha de São Paulo, de 26.12.2016).

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Finalista do Innovare ajuda comunidades a lutarem por seus direitos

Enquanto 400 pessoas de uma comunidade do norte de Minas Gerais negociam com empresários o território para retomar a agricultura familiar, um núcleo de assessoria jurídica popular de Ribeirão Preto/SP consegue dar fim ao processo de reintegração de posse que ameaçava uma população de 150 moradores. Ao mesmo tempo, no Ceará, uma entidade não governamental tenta garantir o direito à educação no sistema socioeducativo, que em 2015 teve 60 episódios de rebeliões. Todas essas ações fazem parte do projeto “Edital Litigância Estratégica, Advocacy e Comunicação para a Promoção de Direitos Humanos”, do Fundo Brasil de Direitos Humanos, que tem como objetivo criar estratégias para transformar a realidade de dez comunidades em situação de vulnerabilidade e sem acesso à Justiça, em quatro regiões do país.
O projeto foi finalista do 13º Prêmio Innovare, importante reconhecimento de ações na Justiça brasileira. O Edital foi lançado em 2014, e foram recebidos 234 projetos que tinham por foco a litigância estratégica, ou seja, o fortalecimento de ações relacionadas a casos emblemáticos e que levem à transformação social, influenciem a atuação do Estado, promovam a revisão ou implementação de políticas públicas e o aprimoramento da legislação. Destes, foram selecionados dez projetos em defesa dos direitos de populações em nove estados de quatro regiões do país – Rondônia, Bahia, Ceará, Piauí, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Minas Gerais, São Paulo e Rio Janeiro.
O Fundo Brasil de Direitos Humanos é uma fundação independente, sem fins lucrativos, e tem como proposta construir mecanismos para canalizar recursos destinados aos defensores de direitos humanos. A ideia é estimular atividades de pessoas e organizações não governamentais voltadas à defesa dos direitos no país, por meio de apoio a projetos que incentivem o investimento social e desenvolvam a filantropia nacional voltada para a justiça social.
Foram distribuídos mais de R$ 1 milhão entre as iniciativas. As organizações apoiadas receberam 50% do valor na assinatura do contrato, enquanto os outros 50% são vinculados à entrega dos relatórios de atividades e financeiro parciais e à aprovação dos mesmos. As iniciativas são permanentemente acompanhadas pela fundação.
Comunidade mineira – Um dos projetos beneficiados pelo Edital envolveu a luta de comunidades tradicionais do Vale das Cancelas, no Norte de Minas Gerais, para a demarcação de seus territórios. Conforme explica o advogado André Alves de Souza, do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas, que desenvolveu o projeto, até os anos 70, comunidades indígenas, quilombolas, geraizeras (originárias) e de apanhadores de flor viviam da agricultura familiar na região do vale, que abrange três municípios (Grão-Mogol, Padre Carvalho e Josenópolis). “Era uma terra coletiva, que as comunidades utilizavam para extrativismo e gado”, definiu André. Mas naquela década, o governo do Estado arrendou as terras para empresas que realizaram a monocultura do eucalipto, o que acabou por destruir nascentes de rios e dizimar muitas comunidades.
A partir da década de 1990, com o fim do contrato entre o Estado e as empresas, as comunidades começaram a tentar retomar o local em que viviam e recuperar o cultivo da terra, mas, sem sucesso. Por meio do projeto beneficiado pelo edital do Fundo Brasil de Direitos Humanos, em 2014, as comunidades conseguiram entrar em negociação com as empresas, ainda sem a necessidade de judicializar o conflito. “O projeto contribuiu muito para a organização e conscientização da comunidade, e a realização do acordo que está em andamento”, contou André. De acordo com ele, com a ajuda de idosos da comunidade e antropólogos foi possível traçar uma estratégia de autodemarcação do território, buscando reconstituir o cenário antes da intervenção estatal. “Mais de 400 pessoas foram beneficiadas pelo projeto”, afirmou.
Sistema socioeducativo – Em 2015, ocorreram 60 episódios de rebeliões e motins no sistema socioeducativo cearense. O Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca-CE), que tem por objetivo garantir o direito à educação no sistema socioeducativo de internação do estado, um dos projetos beneficiados pelo edital, realizou várias ações para tentar melhorar esse cenário. De acordo com Nadja Furtado Bortolotti, assessora jurídica do Cedeca-CE, o sistema encontrava-se em estado de barbárie, com elevado número de fugas, episódios de tortura coletiva, direitos negligenciados e falta de qualquer atividade, obrigando os adolescentes a ficarem 24 horas trancafiados nas celas. Em relação ao acesso à educação, os adolescentes só contavam com o Ensino de Jovens e Adultos (EJA), modalidade considerada inadequada à faixa etária, que deveria realizar o ensino fundamental e ensino médio regulares. “Não é possível oferecer uma política socioeducativa se a educação não é ofertada”, disse Nádja.

Houve a mobilização de órgãos e instâncias nacionais e internacionais sobre a violação ao direito à educação dos adolescentes internos, que resultou na concessão de medidas cautelares pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos contra o Brasil por graves violações aos direitos dos menores. Outra atividade desenvolvida foi a elaboração de uma proposta de resolução conjunta regulamentando o direito à educação escolar nas unidades de internação para apresentação junto ao Conselho Estadual de Educação e Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente.
Uma conquista importante, de acordo com Nadja, foi uma mudança feita pelo governo do Ceará em relação à estrutura de gestão do sistema socioeducativo, que passará a contar, a partir de 2017, com uma superintendência com autonomia administrativa e financeira. “Agora será possível acompanhar a execução dos recursos dessa política”, afirmou. Além disso, algumas atividades de educação profissionalizante passaram a ser oferecidas aos internos em parceria com universidades e houve a reforma de parte dos estabelecimentos. Para Nadja, o sistema socioeducativo do Ceará saiu de um estado de barbárie. “Mas ainda estamos na expectativa de que saia agora da situação de cárcere e passe para socioeducativo”, observou.
Reintegração de Posse – Outro projeto beneficiado pelo edital foi realizado pelo Núcleo de Assessoria Jurídica Popular de Ribeirão Preto (Najurp), que tem como uma das suas frentes de atuação o trabalho de assessoria jurídica popular à comunidade João Pessoa, em Ribeirão Preto/SP. Os 150 moradores da comunidade vivem sob a ameaça de remoção por causa da expansão e internacionalização do Aeroporto Leite Lopes. Com a assessoria do Najurp, os moradores conseguiram recentemente a extinção em primeira instância do processo de reintegração de posse que os ameaçava. A extinção foi motivada por irregularidades encontradas no processo. O trabalho foi realizado em parceria com a Defensoria Pública, que representou judicialmente a comunidade.
Prêmio Innovare – O Prêmio Innovare reconhece e dissemina práticas inovadoras realizadas por magistrados, membros do Ministério Público estadual e federal, defensores públicos e advogados públicos e privados de todo Brasil. Criado em 2004, o Prêmio identifica as boas ideias encontradas e desenvolvidas no sistema de Justiça brasileiro que possam ser aplicadas em outras localidades.
A realização é do Instituto Innovare, integrado pelos seguintes órgãos: Secretaria de Reforma do Judiciário do Ministério da Justiça, Associação de Magistrados Brasileiros, Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp), Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep), Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Associação Nacional dos Procuradores da República e a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), com o apoio do Grupo Globo.
Luiza Fariello
Agência CNJ de Notícias

sábado, 17 de dezembro de 2016

É contraditória a afirmação de que há déficit na previdência

É contraditória a afirmação de que há déficit na previdência

Por Sérgio Pinto Martins

Habitualmente é observado na imprensa o discurso no sentido de que há déficit do sistema de Previdência Social. O objetivo é, pela reiteração e insistência, tentar fazer com que as pessoas acreditem que de fato isso existe. Na Segunda Guerra Mundial, a propaganda nazista, atribuída a Paul Joseph Goebbels, era no sentido de que a mentira afirmada repetidamente acabaria convencendo e se tornaria verdade. Não se pode ter essa concepção.
A reforma é necessária pelo aspecto que o homem vive mais tempo em razão dos progressos da medicina, a mulher tem um número menor de filhos, o desemprego e a informalidade fazem com que um menor número de pessoas contribua para o sistema e da diminuição da relação de ativos custeando os inativos.
Faz referência a Constituição a diversas fontes de custeio da Seguridade Social: I- do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: a- a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; b- o faturamento, que são duas as contribuições: a COFINS (Lei Complementar 70/91) e PIS (Lei Complementar 7/70); c- o lucro (Lei 7.689/88); II- do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social; III- sobre a receita dos concursos de prognósticos; IV- do importador de bens ou serviços do exterior ou de quem a lei a ele equiparar (artigo 195).
São, ainda, receitas da Seguridade Social: I - as multas, a atualização monetária e os juros moratórios; II - a remuneração recebida por serviços de arrecadação, fiscalização e cobrança prestados a terceiros; III - as receitas provenientes de prestação de outros serviços e de fornecimento ou arrendamento de bens; IV - as demais receitas patrimoniais, industriais e financeiras; V - as doações, legados, subvenções e outras receitas eventuais; VI - 50% dos valores recuperados a título de tráfico de entorpecentes; VII - 40% do resultado dos leilões dos bens apreendidos pelo Departamento da Receita Federal; VIII - outras receitas previstas em legislação específica (artigo 27 da Lei 8.212). Cinquenta por cento do prêmio do seguro obrigatório de veículos automotores de vias terrestres deve ser destinado ao Sistema Único de Saúde (SUS), para custeio da assistência médico-hospitalar dos segurados vitimados em acidentes de trânsito.
Os dados apresentados na imprensa indicam, porém, todas as despesas, mas não incluem todas as receitas, especialmente da Cofins, da contribuição sobre o lucro e do PIS/Pasep. 
Existe fundamento constitucional no artigo 76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias para a transferência de recursos da Seguridade Social para outros fins. Ele foi acrescentado pela Emenda Constitucional 27, de 22 de março de 2000, que estabeleceu que no período entre 2000 a 2003 20% da arrecadação de contribuições sociais da União, já instituídos ou que vierem a ser criados no referido período, seus adicionais e respectivos acréscimos legais, seria desvinculado de órgão, fundo ou despesa. A Emenda Constitucional 42/2003 prorrogou o período de 2003 a 2007. A Emenda Constitucional 93/16 ampliou o porcentual de desvinculação de recursos da União (DRU), passando a prever que são desvinculados de órgão, fundo ou despesa, até 31 de dezembro de 2023, 30% da arrecadação das contribuições sociais da União. Agora, o porcentual não é de 20, mas de 30%. Entretanto, isso não pode ser uma regra permanente. Deveria ser uma regra constitucional transitória, mas vai se prolongando no tempo.
Nota-se, portanto, ser contraditória a afirmação de que não há recursos suficientes ou existe déficit do sistema, mas 30% das contribuições da Seguridade Social são usadas para pagar outras contas do Estado e não os benefícios da Seguridade Social.
Observa-se que os recursos da Seguridade Social existem, mas eles desaparecem e são empregados para outros fins. 
No ano 2000, a arrecadação da contribuição sobre o lucro foi de R$ 8,665 bilhões e somente R$ 4,441 bilhões foram destinados à Seguridade Social. A Cofins no de 2000 arrecadou R$ 38,634 bilhões, sendo que R$ 21,553 bilhões foram destinados para outros fins, mas não para a Seguridade Social.[1] A CPMF arrecadou em 2000 R$ 14,397 bilhões, mas só foram destinados R$ 11,753 bilhões para a Saúde.
Foi feito repasse no ano de 2001 de R$ 31,5 bilhões para o Orçamento Fiscal da União, mas a arrecadação de contribuições sociais foi de R$ 136,879 bilhões. O objetivo parece ter sido gerar superávit primário.
Informou o Ministério do Planejamento que em 2013 o déficit do sistema seria de R$ 83,66 bilhões. Em 2015, o déficit do sistema teria sido de R$ 86 bilhões em 2015.
De acordo com dados da Anfip e da Fundação Anfip, em 2005 o sistema teve superávit de R$ 73,5 bilhões; em 2006, R$ 60,2 bilhões; em 2007, R$ 72,9 bilhões; em 2008, R$ 64,9 bilhões; em 2009, R$ 33,1 bilhões; em 2010, R$ 55,5 bilhões; 2011, R$ 76,6 bilhões; em 2011, R$ 76,6 bilhões; em 2012, R$ 81,4 bilhões; em 2013, R$ 78,6 bilhões, em 2014, R$ 53,8 bilhões. 
Não acredito em déficit da Previdência Social. Logo, por esse motivo não era o caso de se falar em reforma da Previdência Social.
Há outras formas de aumentar a arrecadação da contribuição previdenciária, como de er feita maior fiscalização nos empregadores e cobrança da dívida ativa da Seguridade Social em relação às empresas. Na prática, a Procuradoria Geral da Fazenda Nacional não consegue cobrar 1% da Dívida Ativa da União, seja porque as empresas desapareceram, porque não há bens a penhorar, porque os sócios não têm patrimônio, etc.
Têm sido obtidos resultados positivos com o recadastramento dos aposentados e pensionistas, evitando que pessoas falecidas continuem recebendo benefícios. Meu pai, por exemplo, faleceu em São Paulo, em 2002, e, no mesmo dia, sua aposentadoria foi cancelada. Não é possível que em certos locais pessoas mortas continuam recebendo benefícios, se há necessidade de comunicação do falecimento da pessoa pelo Cartório ao INSS. 
Por outro lado, é necessário fazer a economia voltar a funcionar normalmente. As empresas, assim, poderiam voltar a produzir na capacidade que tinham anteriormente. Os trabalhadores poderão ter renda para comprar os produtos e, assim, serão criados empregos e as empresas poderão crescer. Era a hipótese de se adotar os fundamentos do New Deal, de Roosevelt, no sentido de que o governo deve promover políticas públicas e obras públicas para impulsionar a economia. Estando os trabalhadores empregados ou prestando serviços, haverá maior arrecadação da contribuição previdenciária e, por esse ângulo, não será necessária reforma previdenciária.

[1] MARTINS, Sergio Pinto. Reforma previdenciária. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 34.


 é desembargador do TRT da 2ª Região e professor titular de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da USP.
Revista Consultor Jurídico, 15 de dezembro de 20

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Detentos de Joinville lançam livro de contos e envolvem comunidade

Dezenas de cidadãos de Joinville (SC), entre familiares de detentos e pessoas da comunidade, compareceram, na última quarta-feira (7/12), à Penitenciária Industrial para a noite de autógrafos do segundo volume da obra “Contos tirados de mim: a literatura no cárcere”. O livro, resultado de um projeto de oficinas literárias realizado com os presos com o incentivo da Vara de Execuções Penais de Joinville, foi custeado por uma editora paulista.
O interesse dos presidiários pela criação literária começou com a possibilidade de remição (redução da pena) pela leitura, implantada na penitenciária em 2013 nos moldes da Recomendação 44/2013 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Naquele ano, após uma campanha realizada pela Vara de Execuções Penais de Joinville, foram arrecadados livros suficientes para montar duas bibliotecas no complexo penitenciário, que possui 1.500 presos. Nos últimos dois anos foram lidos 3 mil livros por cerca de 400 detentos. Para obter a remição da pena, os presos têm até 30 dias para fazer a leitura da obra e uma resenha a respeito, que é avaliada por professores do complexo ou por universitários que cursam Letras na Universidade da Região de Joinville.
Oficinas de criação – Ano passado, uma editora de São Paulo demonstrou interesse por alguns poemas de detentos do complexo de Joinville, expostos em uma feira literária, o que estimulou a criação de um projeto de oficinas de imersão literária dentro do presídio, com a autorização da vara e do Ministério Público. O livro, que reúne doze contos de tema livre e já está em seu segundo volume, é fruto dessas oficinas que devem continuar em 2017.

O juiz João Marcos Buch, titular da Vara de Execuções Penais de Joinville, acredita que a comunidade tem mudado o olhar em relação às pessoas presas a partir da leitura dos contos. “Houve uma identificação humana, a comunidade percebeu que as pessoas que cumprem pena sofrem das mesmas alegrias e tristezas, o que pode auxiliar na reinserção dos presos após o cumprimento da pena”, disse o magistrado Buch.
Reflexão – De acordo com o juiz, o projeto tem o objetivo de transformação, fazendo com que o detento seja lembrado pelo que ele tem a contar, e não necessariamente pelo seu histórico criminal. “A leitura e escrita possibilitaram que os presos tivessem uma amplitude maior de sua existência, muito além da remição da pena, para refletirem sobre o que cometeram de forma consciente e racional”, afirmou o juiz.

Cotidiano familiar - As histórias de ficção são de tema livre e a maioria delas tem como pano de fundo o cotidiano de cidades de Santa Catarina, especialmente da zona rural. Em “Desafio lançado”, conto de Fábio Colzani, por exemplo, é narrada a história de uma família da Fazenda de Santa Maria do Coco Verde, que sonha ganhar um prêmio em um rodeio para melhorar as condições do local em que moram: “Projetaram uma fazenda dos sonhos e deste projeto, da porteira para dentro, fariam uma linda estrada com pés de fruta que contornaria o antigo lago, que agora seria um açude repleto de peixes. A antiga baia para dois animais ganharia mais oito lugares, e com um trato de construção não choveria mais dentro; e dos cavalos banguelas que tinham virariam história para os mustangues vermelhos, corcéis negros ou pangarés tordilhos, seriam bonitos.”
Outro conto, “Pais e Filhos”, de Flávio Luiz Boer, conta a saga do Dr. Canela, uma saborosa imersão nas relações familiares ao longo de gerações, que atiça rapidamente a curiosidade do leitor: “A afinidade e a harmonia se percebem no carinho e no respeito um para com o outro, e se realmente há a existência de vidas passadas, pode se dizer que essa família, ou esses seres simpatizantes, já estão juntos há um bom tempo. Vivenciando alguns fatos, convivendo de perto com essas pessoas e tendo, por convicção, a certeza de que nada nesta vida acontece por acaso e que para tudo existe uma explicação, é que dou o crédito para essa possibilidade”.

Remição pela leitura - A Recomendação 44/2013 do CNJ, que propõe a instituição, nos presídios estaduais e federais, de projetos específicos de incentivo à remição pela leitura, já está consolidada em quase todo o país. A norma trata das atividades educacionais complementares para fins de remição da pena pelo estudo e estabelece critérios para a admissão pela leitura. A edição da recomendação foi solicitada ao CNJ pelos ministérios da Justiça e da Educação porque a Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84) não detalhou as atividades complementares que possibilitariam a remição.
Luiza Fariello
Agência CNJ de Notícias

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Estados assinam pacto de combate ao trabalho escravo no CNJ

Foi assinado nesta terça-feira (13/12), após a 33ª Sessão Extraordinária do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Pacto Federativo para Erradicação do Trabalho Escravo no país entre quinze estados e o Distrito Federal com a Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério da Justiça e Cidadania. O acordo tem por objetivo promover a articulação entre os estados nas ações contra o trabalho escravo e aperfeiçoar as estratégias de enfrentamento a esse tipo de crime, definido no artigo 149 do Código Penal.

Uma das ações previstas é a construção de um novo Plano Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo, até junho de 2017, além da criação de um observatório de trabalho, com site para divulgação de indicadores e pesquisas sobre trabalho escravo, até dezembro do mesmo ano.
Para a presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia, a assinatura do Pacto Federativo na última sessão plenária deste ano do CNJ representa o compromisso do Conselho com as políticas públicas que têm por objetivo tornar concreto o respeito à dignidade humana. “Vamos fazer da prevenção ao trabalho escravo um novo marco civilizatório”, disse.

Políticas articuladas - A ministra Cármen Lúcia ressaltou a importância de projetos que punem a escravidão e aqueles que a praticam. Na opinião da secretária especial de Direitos Humanos Flávia Piovesan, o pacto resultará no fortalecimento da ação com a criação das comissões estaduais e de políticas públicas articuladas e integradas que atuem na prevenção do trabalho escravo. “É dever do Estado, é o que eu chamo de fomento ao federalismo por cooperação, que são as responsabilidades partilhadas. São direitos absolutos o direito a não ser submetido à escravidão e à tortura”, disse a secretária especial. Para ela, é preciso estimular a adoção da lista suja, que é o cadastro de empregadores que praticam trabalho escravo, e manter o conceito de trabalho escravo definido pelo Código Penal.

Atuação dos Estados – Os 15 estados que aderiram ao pacto - Maranhão, Bahia, Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte, Rondônia, Pará, Tocantins, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Paraná e Rio Grande do Sul e mais o Distrito Federal - terão de institucionalizar e dar pleno funcionamento às Comissões Estaduais para Erradicação do Trabalho Escravo (Coetrae), até dezembro de 2017; criar planos estaduais para erradicação do trabalho escravo com metas, indicadores e ações de prevenção, repressão ao trabalho escravo e reinserção das vítimas, também até dezembro do próximo ano, e dar apoio logístico às ações de fiscalização do Ministério do Trabalho.

Dimensão do trabalho escravo – Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o trabalho escravo atinge mais de 20 milhões de pessoas em todo o mundo. No Brasil, desde 1995, em 2 mil operações realizadas foram encontrados e libertados 50 mil trabalhadores em situação análoga ao de escravo, segundo informações do Ministério do Trabalho.
A secretária especial Flávia Piovesan ressaltou que, conforme dados da OIT, US$ 50 bilhões por ano são gerados com a utilização de trabalho escravo. “O trabalho escravo hoje pode ser maior em termos numéricos do que no século XV e XVI”, diz Roberto Caldas, presidente da corte Internacional de Direitos Humanos, também presente na cerimônia.
No Código Penal brasileiro, o trabalho escravo se configura quando, além de trabalhos forçados ou jornada exaustiva, a vítima está sujeita a condições degradantes de trabalho, em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto. A pena estipulada para esse crime varia de dois a oito anos e multa, além da pena correspondente à violência.

Fórum Nacional - No Poder Judiciário, o trabalho escravo tem sido monitorado pelo Fórum Nacional para Monitoramento e Efetividade das Demandas Relacionadas à Exploração do Trabalho em Condições Análogas à de Escravo e ao Tráfico de Pessoas (Fontet), criado pela Resolução CNJ n. 212/2015, e pelo Comitê Nacional Judicial de Enfrentamento à Exploração do Trabalho em Condição Análoga à de Escravo e ao Tráfico de Pessoas do CNJ (Portaria n. 5/2016).


Acesse aqui o álbum de fotos do evento.

Agência CNJ de Notícias


domingo, 11 de dezembro de 2016

Desafios para a Mediação e a Conciliação no novo CPC

Novos desafios para a mediação e conciliação no novo CPC: artigo 334

Por André Gomma de Azevedo e Marco Aurélio Buzzi

O novo Código de Processo Civil, estabelece no artigo 334 os parâmetros a serem seguidos para a realização de audiências de conciliação ou de mediação. De um lado, pode-se argumentar que a intenção do legislador foi promover a celeridade processual. Por outro lado, o citado dispositivo também se propõe a aumentar o escopo do que pode ser dirimido no âmbito do Poder Judiciário.
Isto porque um conflito possui um escopo muito mais amplo do que simplesmente as questões juridicamente tuteladas sobre as quais as partes estão discutindo em juízo. Distingue‐se, portanto, aquilo que é trazido pelas partes ao conhecimento do Poder Judiciário daquilo que efetivamente é interesse das partes. A chamada lide processual é, em síntese, a descrição do conflito segundo os informes da petição inicial e da contestação apresentados em juízo — analisando apenas os limites dela, na maioria das vezes não há satisfação dos verdadeiros interesses do jurisdicionado. Por outro lado, a descrição do conflito segundo os parâmetros preconizados pelos próprios envolvidos denomina-se de lide sociológica[1].
O novo CPC, em seu artigo 334 envida esforços para prestigiar a resolução integral do conflito presumindo que desta forma melhor se proporcionar à sociedade a pacificação efetiva. Não basta resolver a lide processual aquilo que foi trazido pelos advogados ao processo  se os verdadeiros interesses que motivaram as partes a litigar não forem identificados e resolvidos. Exemplificativamente, em determinada demanda julgada em Minas Gerais (TJ-MG, AC 408.550-5, 7ª Câmara Cível, publ. DJMG 29/4/2004) na qual se deferiu pedido de danos morais a um filho por abandono afetivo de seu pai, houve repercussão significativa após entrevista do autor a um programa de televisão no qual este chorava ao afirmar que não conseguiu o que queria  mesmo tendo lhe sido deferido o pedido. O autor, afirmou na entrevista que, ao ficar sabendo da referida decisão, seu pai lhe informou que nunca mais lhe dirigira a palavra. Ainda nesta entrevista o autor chorando disse que “não era isso que queria”. Constata-se que na lide processual houve formalmente um vencedor (i.e. o filho) e um perdedor (i.e.o pai), todavia, na realidade (ou na lide sociológica) ambos certamente saíram insatisfeitos do processo de resolução de disputa  neste conflito houve dois perdedores.
O exemplo acima merece ser examinado também da perspectiva do jurisdicionado. Imagine-se o pai do autor, que regularmente cumpria com seus deveres de prestação alimentar, todavia praticamente não mantinha contato com o jovem em razão de residir no exterior. O pai recebe uma contra-fé indicando que “abandonou afetivamente seu filho”  praticamente uma declaração de inaptidão parental ou mesmo uma “certidão de pior pai do mundo”. Esta inicial certamente reverberá na mente do réu por muito anos. Vale destacar que, exatamente por este motivo o novo CPC estabelece no parágrafo 1º do artigo 695 que “o mandado de citação conterá apenas os dados necessários à audiência e deverá estar desacompanhado de cópia da petição inicial, assegurado ao réu o direito de examinar seu conteúdo a qualquer tempo”.
A Política Pública de resolução apropriada de disputas conduzida pelo Conselho Nacional de Justiça, tem refletido um movimento de consensualização do Poder Judiciário uma vez que passa a estabelecer a autocomposição como solução prioritária para os conflitos de interesse. Isso significa que o legislador crê que a maior parte dos conflitos pode ser resolvida por meios consensuais. O Código de Processo Civil apresenta uma série de indicações nesse sentido como o conciliador e o mediador sendo auxiliares da justiça (artigo 149) e a criação de centros judiciários de solução consensual de conflitos (artigo 165). De fato, estas indicações refletem normas infralegais estabelecidas no CNJ, como a recomendação 50/2014 e a Resolução 125/10, respectivamente.
Nota‐se que o legislador avançou estabelecendo a regra de encaminhamento à conciliação ou à mediação no artigo 334 do novo CPC indicando que se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação. O estímulo pretendido foi tão enfático que o parágrafo 4º do mesmo artigo estabelece que a audiência não será realizada apenas se ambas as partes manifestarem, expressamente, desinteresse na composição consensual ou quando não se admitir a autocomposição. Ademais, o parágrafo 8º desse mesmo artigo estabelece também que o não comparecimento injustificado do autor ou do réu à audiência de conciliação deve ser considerado ato atentatório à dignidade da justiça e deve ser sancionado com multa de até dois por cento da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa, revertida em favor da União ou do estado.
O argumento utilizado em algumas decisões recentes de magistrados de que a audiência de conciliação ou de mediação pode ser dispensada pelo magistrado em prol da celeridade processual ou em razão da falta de mediadores ou conciliadores não encontra respaldo no nosso ordenamento processual ou no contexto fático brasileiro.
Inicialmente, merece o destaque que nem toda demanda deve ser encaminhada à autocomposição. De um lado, se as partes indicarem, de forma uníssona, que não desejam conciliar ou se quanto à matéria não couber ou não se recomendar a autocomposição caberá ao magistrado seguir com a instrução processual (novo CPC, artigo 334, parágrafo 4º, I e II). 
Por outro lado, o argumento de celeridade processual para evitar a audiência autocompositiva não encontra suporte legislativo ou mesmo fático. Considere-se que o tempo médio de duração de demandas cíveis no Brasil, da inicial até o transito em julgado após o prazo recursal extraordinário (tribunais superiores) seja de 10 anos. Para cada demanda que se encerra por conciliação ou mediação economiza-se cerca de 9,5 anos de tramitação (presumindo-se prazo de 6 meses do recebimento da inicial à homologação do acordo — destaque-se que o prazo estabelecido no artigo 28 da Lei de Mediação para a condução do procedimento é de 60 dias). Se cada autocomposição onera o andamento processual em seis meses, pode-se afirmar que cada mediação ou conciliação bem sucedida justifica cerca de 20 demandas sem acordo. Isto é, para que se justifique o encaminhamento de demandas para a conciliação ou mediação, em razão da duração do processo apenas no primeiro e segundo graus de jurisdição, basta que haja 5% de sucesso. Em algumas oportunidade em que foi verificado[2], o índice de acordo nas conciliações foi de cerca de 70%.
Vale destacar que o magistrado pode também determinar que a conciliação ou a mediação poderá ser conduzida entre a data de despacho da inicial e a data estabelecida para a audiência de instrução. Esta prática, denominada de parallel tracking mediation, permite que o procedimento autocompositivo siga paralelamente ao processo judicial.
Outro argumento que atualmente tem sido utilizado para afastar a aplicação do artigo 334 do novo CPC consiste na alegação de que inexistem conciliadores e mediadores suficientes para atenderem ao número de feitos em juízo. Todavia, o Cadastro Nacional de Mediadores Judiciais e Conciliadores pode e deve ser utilizado para a seleção do autocompositor. De fato, o registro de atividades dos conciliadores e mediadores judiciais tem demonstrado elevado número de autocompositores com disponibilidade para atuarem em feitos judicializados. Ademais, há muitos Cejuscs para os quais os feitos podem e devem ser encaminhados para posterior seleção de conciliação ou mediação.
Em suma, mais do que comprovadamente acelerar o processo de resolução de disputas, a conciliação e mediação judicial permitem dirimir lides sociológicas. Estas práticas de consensualização da justiça proporcionam a recontextualização do papel do Poder Judiciário afastando-se de posições singularistas segundo as quais para cada conflito de interesse só pode haver uma solução correta — a do magistrado, que sendo mantida ou reformada em grau recursal, torna‐se a “verdadeira solução” para o caso. A ideia de que o jurisdicionado, quando busca o Poder Judiciário, o faz na ânsia de receber a solução de um terceiro para suas questões vem progressivamente sendo alterada para uma visão de estado que oriente as partes para que resolvam de forma mais consensual e amigável seus próprios conflitos e, apenas excepcionalmente, como última hipótese, se decidirá em substituição às partes. Assim, na autocomposição, podem existir diversas respostas concomitantemente corretas (e legítimas) para uma mesma questão. Nessa hipótese, cabe às partes construírem a solução para suas próprias questões e, assim, encontrarem a resposta que melhor se adeque ao seu contexto fático.

[1] BACELLAR, Roberto Portugal. Juizados Especiais a nova mediação paraprocessual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
[2] Dados da Semana Nacional de Conciliação de 2014. 
Revista Consultor Jurídico, 11 de novembro de 2016

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Presunção de inocência X Pretensão punitiva do Estado

STF abandonou seu papel contramajoritário de guardião da Constituição

“No decision by the Court is ever final if the nation remains unsettled and seriously divided over a constitutional issue.” (Fisher, Louis. Constitutional dialogues: interpretation as political process. Princeton University Press, 1988, p.233).
Nossa história constitucional é marcada por vários episódios de instabilidade institucional, arbítrio estatal e violação de direitos fundamentais. Mesmo com a redemocratização do país, ainda existem inúmeros obstáculos à consolidação de uma cultura constitucional na sociedade brasileira.
É evidente que as instituições têm enorme responsabilidade nessa tarefa. Por isso, assistimos com preocupação a práticas decisórias recentes que têm ignorado os horizontes fixados pela Constituição e as conquistas históricas nela cristalizadas. O mais novo exemplo disso é a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a garantia da presunção de inocência. Pela maioria de 6x5, a corte abandonou seu papel contramajoritário de guardião da Constituição, transformando-se em seu algoz. E pior: no dia do seu 28º aniversário.
Muito já se tem escrito sobre o desacerto da referida decisão. Aqui, aproveitamos o ensejo desse emblemático caso para ressaltar alguns pontos sobre um estilo hermenêutico amplamente difundido na prática jurídica e que, antes de resultar em práticas concretizadoras da Constituição, tem contribuído para a sua deturpação semântica e para uma hipertrofia do Poder Judiciário.
I - Aspectos metodológicos
Na teoria constitucional, bastante conhecido é argumento de que as constituições escritas se apresentam como um “documento vivo”, que deve ter a capacidade de acompanhar as transformações sociais, sob pena de tornarem-se obsoletas.
Dessa maneira, concilia-se a pretensão de permanência da constituição com a dinâmica social que lhe é subjacente. tribunais constitucionais e cortes supremas teriam não apenas a legitimidade, mas também o dever de construir “interpretações evolutivas” do texto constitucional. O paradigma da “living constitution” acaba por estimular construções judiciais sobre o sentido e alcance dos preceitos constitucionais. No direito americano, bastaria citar as decisões da Suprema Corte em Brown vs. Board Education(1954) e Roe vs. Wade (1973).
No primeiro caso, a corte, abandonando a doutrina dos “separados, mas iguais”, reconheceu a ilegitimidade das discriminações raciais nas escolas. No segundo, decidiu-se pelo direito ao aborto com fundamento no preceito constitucional que reconhece o direito à privacidade. Dessa maneira, além das reformas constitucionais realizadas pelo legislador democrático, a Constituição também passa por mutações constitucionais, verdadeiras mudanças informais no significado do texto levadas a cabo pelo tribunal.
Embora não se defenda que a constituição seja um documento estático, as transformações de sentido operadas judicialmente devem respeitar os limites semânticos impostos pelo próprio texto constitucional. Assim, as disposições constitucionais apresentam densidades normativas distintas, ou seja, algumas cláusulas possuem um grau de indeterminação e vagueza maior que outras. Por isso, é mais plausível sustentar interpretações evolutivas em relação a disposições constitucionais que falam em “liberdade de expressão”, “igualdade”, “autonomia da vontade”, “livre iniciativa”, dentre outros termos abertos.
Todavia, na decisão do STF sobre a presunção de inocência, ao contrário do que se tem afirmado, não estamos diante de um exemplo de “interpretação evolutiva” da “constituição viva” ou de mutação constitucional. Desnecessário haver maiores esforços interpretativos para perceber que o modelo adotado pela CF/88 acerca da presunção de inocência determina que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (artigo 5º, LVII).
Além disso, o artigo 283, do Código de Processo Penal, reproduz, como não poderia ser diferente, a regra constitucional nos seguintes termos: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva”. Logo, o sentido manifesto tanto do texto constitucional, quanto do CPP, é de que o cumprimento da pena em processos criminais depende do trânsito em julgado da sentença condenatória.
Daí que as ações declaratórias de constitucionalidade ajuizadas perante o STF tinham como pedido a confirmação da validade do artigo 283, do CPP, em face do que dispõe o próprio artigo 5º, LVII, da CF. Curiosamente, tem-se uma situação em que se pede que o tribunal diga que é constitucional um preceito legal idêntico ao da própria CF, pois ambos exigem o trânsito em julgado da decisão para o início do cumprimento da pena. Porém, ao reconhecer que a pena já deve ser cumprida a partir da decisão de 2ª instância, a corte ultrapassa os limites semânticos do texto constitucional.
Não existe vagueza, ambiguidade ou qualquer imprecisão sobre o significado de “trânsito em julgado”. Viu-se, portanto, uma mutaçãoinconstitucional mediante a apropriação ou o assenhoramento da constituição por aquele que deveria atuar como seu defensor. Nessa perspectiva, muito pertinente a observação do constitucionalista espanhol Pablo Luscas Verdú, quando afirma: “o monopólio do conceito e da prática da Constituição pelos tribunais constitucionais, conduz, às vezes, a que estes não se limitem a defender e a interpretar, como instância máxima, a Lei Fundamental, senão a assenhorá-la. Expressando isso em termos alemães: não se reduzem a ser o Hüter da Constituição, senão o Herr da mesma.”[1].
Há quem não note qualquer diferença entre a decisão do tribunal sobre a presunção de inocência e a que reconheceu a união estável homoafetiva. Afirma-se que, nas duas situações, o STF contrariou a literalidade do texto constitucional. Não entendemos dessa maneira. Na controvérsia sobre a união estável, a CF se limita a dizer que é “reconhecida a união estável entre homem e mulher”. Não diz, portanto, que apenas tal união (entre homem e mulher) será reconhecida.
Além disso, se considerarmos que o ethos da jurisdição constitucional é a tutela dos direitos fundamentais, a corte acertou nessa decisão. Deveria igualmente ter se orientado pela proteção das garantias individuais no caso da presunção de inocência, fazendo valer a noção de que tais garantias funcionam como “trunfos” (Dworkin) contra avanços ilegítimos da maioria política ocasional, especialmente contra uma punitivismo exacerbado do Estado,
Essa decisão, infelizmente, não é um caso isolado nem no próprio STF, nem no restante do Poder Judiciário. O avanço das discussões hermenêuticas do Direito superou o exegetismo do positivismo legalista ao assumir como premissa teórica a distinção entre “texto” e “norma jurídica”. Embora essa distinção conceitual seja normalmente vinculada à metódica estruturante de Friedrich Müller, ao menos tal diferenciação já pode ser inferida de autores como Kelsen (ao falar na “moldura da norma”) e Hart (quando discute a “textura aberta do direito”).
Dessa maneira, sabe-se que o texto não contém a norma e esta não vem embutida nos enunciados linguísticos como se ao intérprete coubesse apenas uma tarefa de revelação de sentidos. Porém, também avançamos para reconhecer que, embora “enunciado” seja diferente de “norma jurídica”, isso não significa que o juiz pode atribuir qualquer sentido a texto normativo de acordo com a sua visão de mundo. Uma teoria da interpretação consistente deve apontar os limites da interpretação jurídica, a fim de viabilizar um controle hermenêutico das decisões judiciais.
Ao que tudo indica, nossa práxis judicial apenas assimilou (e muito bem) que o juiz “constrói” a norma, mas esqueceu de realçar a dimensão do limiteda atividade interpretativa. Como resultado, o direito legislado não oferece minimamente segurança e previsibilidade e cada juiz se transforma em uma “constituição viva”
Um outro aspecto a ser destacado diz respeito ao uso do método da ponderação para flexibilizar a garantia da presunção de inocência. Desse modo, partindo-se da ideia de que a constituição assegura valores contrapostos (presunção de inocência vs. pretensão punitiva do Estado), faz-se necessário ponderá-los. Esse argumento foi sustentado pelo ministro Luís Roberto Barroso. De há muito tempo, a “teoria dos princípios”, sobretudo nos moldes propostos por Robert Alexy, tem sido amplamente difundida no Brasil.
Embora este não seja o espaço próprio para a discussão sobre o tema, sabe-se que tal teoria defende a utilização da ponderação para solucionar conflitos entre normas principiológicas, especialmente as que asseguram direitos fundamentais. Mas isso pressupõe que os preceitos em colisão tenham natureza de princípios, e não de regras, o que caracterizaria um hard case. Nesse debate, entende-se como princípio uma norma que determina que algo deve ser implementado na maior medida do possível respeitadas as limitações fáticas e jurídicas.
Por esse motivo, o princípio é um mandamento de otimização, que assegura um direito ou dever apenas prima facie, já que são direitos ponderáveis. As regras, ao contrário, estabelecem direitos ou deveres definitivos, e não prima facie. Sendo assim, as regras são aplicadas seguindo a lógica do “tudo ou nada”: ou se verifica, no plano dos fatos, a situação descrita na regra e ela deverá ser aplicada integralmente; ou tal situação não ocorreu e a regra não será aplicada.
No caso dos princípios, já que são preceitos sujeitos a ponderações, sua aplicação será gradual, admitindo-se níveis diferentes de concretização. Pois bem, no caso em tela, ao determinar que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, a CF garantiu a presunção de inocência através de regra jurídica e não de princípio. Em outras palavras, o constituinte fez uma escolha clara em condicionar o cumprimento da pena ao trânsito em julgado da condenação, de modo que ninguém será tratado como culpado antes desse momento.
Argumentos como o da morosidade do Poder Judiciário, número elevado de recursos e sentimento de impunidade da “sociedade” não são juridicamente legítimos para relativizar uma garantia constitucional. Não estamos diante de um hard case. A rigor, tecnicamente, o caso é de fácil solução. O que se verifica aqui é mais um exemplo de como essa teoria foi recepcionada equivocadamente no país e como tem sido empregada de forma distorcida para camuflar decisionismos judiciais.
Com efeito, além da manipulação conteudística da constituição para encobrir moralismos individuais, foram abertas as portas para a identificação de um sem-número de novos princípios supostamente embutidos nos preceitos constitucionais. Sob o argumento de não se aplicar a “letra fria da lei”, contendo regras jurídicas que deveriam ser aplicadas em toda sua inteireza, saca-se um princípio como razão de decidir, arrefecendo o postulado da legalidade e da constitucionalidade em decorrência de práticas decisórias inconsistentes e reveladoras de um abuso de princípios.[2]
No fundo, por não concordarem com a constituinte e a constituição, o STF deu primazia ao populismo penal de cunho repressivo, utilizando, equivocadamente, alguns postulados teóricos no afã no conferir legitimidade à decisão. Deveriam ter ouvido a lição do ex-ministro Sepúlveda Pertence: “ é fundamental fugir à tentação de inserir no direito positivo as nossas convicções sobre o que ele deveria ser”[3].
II - Aspectos institucionais
O fenômeno do protagonismo judicial tem sido verificado em várias partes do mundo. Uma das justificativas a favor do ativismo tem sido a proteção dos direitos fundamentais. Não obstante, de toda a discussão em torno do ativismo judicial do STF, não se imaginava que ele se empenharia num ataque aos direitos fundamentais, justamente contra uma das maiores conquistas do Estado de Direito: a presunção de inocência.
No presente caso, a corte se transubstanciou em poder constituinte permanente, ou seja, em autoridade política soberana, capaz de reescrever cláusulas constitucionais como lhe aprouver.
Não que o ativismo judicial seja um mal em si. Entendemos que práticas ativistas, compreendidas como o alargamento dos espaços decisórios de um tribunal, podem ser legítimas. Isso vai depender do sistema constitucional de cada país. Mas é certo que na situação exposta a corte praticou um ativismo contra a Constituição ao afrontar sua própria literalidade.
Questão de relevo diz respeito à eventual reversão da decisão judicial por decisão do Congresso Nacional. Esse ponto traz à tona o importante debate em torno da supremacia judicial, que envolve um grau mais elevado de poder a favor dos tribunais. Agindo sob o paradigma da supremacia judicial, tribunais invocam a autoridade para determinar o que a constituição significa e essa construção é válida para toda a comunidade política. Os defensores da supremacia judicial sustentam que o Poder Judiciário é o responsável pela última palavra sobre o sentido do texto constitucional.
Em princípio, isso não significa que o Poder Legislativo e o Governo não participam do processo interpretativo, mas não se reconhece tanta relevância institucional no papel interpretativo das instâncias políticas. Estas até podem participar, mas, uma vez proferida a decisão pelo árbitro máximo das questões constitucionais, a interpretação judicialmente firmada não está aberta a novas discussões, nem deve ser desrespeitada por outros órgãos ou autoridades do Estado.
É inegável, portanto, que a supremacia judicial reduz o campo das deliberações políticas majoritárias, impedindo até mesmo que o Poder Legislativo, através de lei ou emenda constitucional, se manifeste de forma contrária à posição sustentada pelo tribunal. Na perspectiva da supremacia judicial, portanto, os outros poderes devem aceitar a interpretação judicial da constituição como a correta, senão a única legítima.
Por outro lado, a doutrina dos diálogos constitucionais desnuda o centralismo judicial, afastando a noção convencional de que uma corte, por mais prestígio e credibilidade social que venha a ter, deve ser considerada a fonte exclusiva do direito constitucional. Desse modo, a doutrina dos diálogos busca compreender o comportamento judicial das cortes, a partir da sua relação com os meios de comunicação e a opinião pública em geral, bem como a partir de suas relações com as instâncias político-representativas.
Isso significa que a autoridade de uma corte em proferir a “última palavra” sobre a constituição é relativizada e circunscrita ao caso concreto, pois a decisão não afasta os múltiplos processos interativos que podem ser deflagrados a partir deste momento. A tendência é que interpretação firmada pelo tribunal não será desafiada na medida em que os demais poderes e a opinião pública considerarem-na convincente, razoável e aceitável. Do contrário, o debate constitucional continuará enquanto subsistir dissenso público relevante. E parece ser este o caso da relativização da presunção de inocência.
Ademais, sabe-se no processo constitucional brasileiro o legislador não está vinculado às decisões do STF no controle abstrato. Esse lembrete é importante para se perceber que não existe empecilho ao diálogo, de modo que o legislador pode construir interpretações constitucionais distintas da realizada pela Corte. Mas poder, não é querer.
Os pontos aqui levantados são apenas algumas das várias e complexas questões presentes nas discussões sobre interpretação e metódica do direito. Essas preocupações serão objeto de rico debate por ocasião do PUBLIUS 2016, congresso de Direito Constitucional a ser realizado na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), reunindo pesquisadores de várias partes do país, os quais tratarão do estágio atual da hermenêutica jurídica e práxis decisória dos nossos tribunais.
* Artigo produzido pelo grupo Recife Estudos Constitucionais (REC / CNPq), formado pelos professores Adriana Rocha de Holanda Coutinho, Flávia Danielle Santiago Lima, Glauco Salomão Leite, Gustavo Ferreira Santos, João Paulo Allain Teixeira, José Mário Wanderley Gomes Neto, Luiz Henrique Diniz, Marcelo Casseb Continentino e Marcelo Labanca Corrêa de Araujo.

1 LUCAS VERDÚ, Pablo. La Constitución en la encrucijada: palingenesia iuris politici. Madrid: Real Academia de Ciencias Morales y Políticas, 1994. p. 75-76.
2 Cf. NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais. São Paulo: Martins Fontes, 2013.
3 STF – MS n. 20.916/DF, rel. Min. Carlos Madeira, DJ, de. 11.10.1989.
Revista Consultor Jurídico, 10 de outubro de 2016.

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Debate sobre o papel dos magistrados no momento atual

Painel debate papel dos magistrados no momento atual


“Devemos evitar tratar magistrados como heróis. O culto à personalidade favorece a idealização junto à opinião pública e tende a imunizar os ídolos das críticas e eventualmente até ao controle das instâncias superiores”, afirmou o jurista Gustavo Binenbjom, durante painel “O cidadão e a sociedade: o Judiciário na atualidade”. A fala ocorreu no 10º Encontro Nacional do Poder Judiciário, que acontece nesta segunda e terça-feira (5 e 6/12) no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em Brasília. O painel foi presidido pela diretora do Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ, Maria Tereza Sadek.

Durante sua exposição, chamada por ele de “reflexões críticas”, o advogado e professor de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), analisou a legitimidade do Poder Judiciário atual que, segundo ele, repousaria mais no crédito público do que apenas na Constituição e nas leis. Mas ele adverte que é preciso cautela para fugir da representatividade política, assim como do culto à personalidade, considerado por ele algo próprio dos regimes populistas ou totalitários.

“Hoje, as ameaças estão mais veladas, feitas na calada da noite, de maneira disfarçada, quase envergonhada. Mas, a despeito de toda essa grave crise que enfrentamos, o país vive uma aliança travada entre a sociedade, a Magistratura e o Ministério Público, pelo que temos entregue à sociedade brasileira”, disse.

O jurista também falou do papel do Judiciário em todo o processo atual. Para ele, ao Poder Judiciário cabe, ao máximo, o papel de “desobstruir os canais da democracia, sendo necessário resistir bravamente à ação de se substituir às instâncias democráticas dos tomadores de decisão”. Hoje, Judiciário e Ministério Público são os fiadores da continuidade democrática no país, mas para poder manter sua independência, é preciso entender que o papel da Magistratura muitas vezes a obriga a tomar decisões impopulares. “Juízes não devem ser nem amados, nem odiados; devem ser respeitados”.

Para o jurista, é fundamental que os membros do Poder Judiciário, ciosos do seu papel, deem o melhor exemplo ao país com um trabalho baseado em transparência, prestação de contas e responsabilidade com os recursos.

Finalização de 30 mil processos – O ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel, atualmente consultor tributário, também participou do painel, onde apresentou uma proposta de reestruturação do contencioso administrativo fiscal. Segundo o especialista, a ideia seria encaminhar aos órgãos do Executivo, como Receita Federal, a responsabilidade pelo acompanhamento na execução fiscal dos processos.

De acordo com o Relatório Justiça em Números, um dos principais gargalos na redução de processos judiciais no Brasil está nessa fase. A execução fiscal continua sendo um entrave para a redução da taxa geral de congestionamento do Judiciário. Segundo a pesquisa, estes processos representam quase 40% dos casos que ficaram pendentes de baixa em 2015. Para o ex-secretário, esse novo paradigma de tratamento vem sendo estudado pelo governo. Se aceito, resolveria 29 milhões de casos pendentes. “Hoje temos 1 trilhão e meio em dívida ativa federal, que aumenta todo ano. Do jeito que está, vai quebrar o dique. A instância que deve deliberar sobre crédito é o tribunal, a partir daí a administração pública executaria e não a Justiça”, explicou.

Agência CNJ de Notícias

sábado, 3 de dezembro de 2016

Não se pune um abuso com outro abuso, diz presidente do IDDD

O IDDD (Instituto do Direito de Defesa) atacou tanto a Lava Jato que já foi chamado de marionete de empreiteiras.
Nesta quinta (1º), porém, o instituto criado por criminalistas do porte de Márcio Thomas Bastos (1935-2014) e José Carlos Dias emitiu nota criticando o projeto de lei aprovado na Câmara que prevê a punição de juízes e procuradores, numa posição similar à da força-tarefa da Lava Jato.
Em entrevista, o presidente do IDDD, Fábio Tofic Simantob, ataca o projeto por não definir com clareza quais seriam os crime de juízes e procuradores: "Não se pode punir abuso com outro abuso".
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Folha - O IDDD sempre atacou as Dez Medidas, mas agora critica a decisão da Câmara de criminalizar condutas de juízes e promotores. Por que o instituto mudou de posição?
Fabio Tofic - Não mudamos de posição. É preciso pensar em formas de coibir abusos cometidos na Justiça criminal, mas de forma séria e refletida. O projeto aprovado prevê tipos abertos demais, o que dá margem para subjetivismo, arbítrio e injustiça.
Dá para citar exemplos?
As previsões da Câmara são vagas demais, punem o juiz que age de modo incompatível com a dignidade ou decoro ou julga por motivação político-partidária. São expressões muito vagas, que permitem que qualquer coisa seja considerada crime. Isso fere o direito de defesa. Daí a nossa preocupação. O juiz precisa de liberdade, tem de estar certo de que nem ninguém vai recriminá-lo. O projeto relativiza esta garantia.
Que tipo de abuso de autoridade deve ser criminalizado?
Isso é algo que a sociedade precisa discutir de forma ampla e democrática. Mas a seara penal deve ser reservada para graves violações de direitos e garantias fundamentais. Uma prisão manifestamente ilegal e arbitrária ou uma prova obtida de forma ilícita são atos graves, e os agentes responsáveis devem responder por isso. Essas condutas não podem ficar de fora de um projeto que pune abusos. Mas os tipos devem ser fechados, com previsão de condutas claras e precisas para que não sejam instrumento de abuso e vingança. Não se pode punir abuso com outro abuso.
O que achou da atitude da força-tarefa neste episódio?
Parece que pela via errada, a força-tarefa despertou para um problema que advogados alertam há anos: o risco de uma criminalização de tudo, de usar o direito penal como panaceia para todos os males. Alguns setores do Ministério Público nunca se preocuparam com tipos abertos e arbitrários de leis penais. Todas as vezes que a advocacia denunciou esse tipo de previsão legislativa, que afeta o cidadão comum, eles estavam do lado contrário. O mal precisou bater à sua porta para que acordassem para esse movimento de arbítrio penal. Mas nunca é tarde para ter a força-tarefa como aliada na luta por um direito penal mais justo, democrático e mais racional.
Advogados estão dizendo que o IDDD se rendeu à força-tarefa da Lava Jato. É isso?
Quando ocorreram violações de direito de defesa na Lava Jato, e não foram poucas, o IDDD foi o primeiro a se manifestar contra. Mas nem por isto vamos compactuar com a violação do direito de defesa de quem amanhã for acusado de cometer crime de abuso de autoridade. Defendemos um princípio, o direito de defesa, de qualquer um.
Qual a posição do IDDD sobre o projeto aprovado na Câmara?
A força-tarefa aproveitou o prestígio da Lava Jato e tentou emplacar um pacote de medidas autoritárias, que amplia demais os poderes dos investigadores, como aceitar prova ilícita, e elimina instrumentos de defesa. A força-tarefa está vendo o autoritarismo penal se voltar contra a própria instituição. O IDDD sempre alertou para risco de legislações penais de pânico, oportunistas, feitas no calor do momento, e a reboque dos acontecimentos. Quem sabe agora eles resolvam nos ouvir.
(Transcrito do jornal Folha de São Paulo, de 03 de dezembro de 2016)