segunda-feira, 31 de março de 2014

Justiça do Trabalho X Terceirização

O nome de Nelson Mannrich costuma ser precedido pela palavra “professor”. Nada mais preciso. O advogado, que dá aulas de Direito do Trabalho na graduação da Universidade de São Paulo e em dois cursos de mestrado, já lecionou em oito instituições. Atualmente, divide o tempo em sala de aula com a atuação no escritório Mannrich Senra Vasconcelos — com 22 advogados —, para o qual foi em 2013, depois de 13 anos como sócio em uma banca com mais de 200 profissionais.
Mannrich costuma estar do lado das empresas na mesa de audiência e os desafios que aponta para o Direito do Trabalho são muitos. No dia a dia, enfrenta temas como terceirização, contratação de pessoas com deficiência, trabalho escravo e termos de ajustamento de conduta, os TACs, além da tão criticada falta de segurança jurídica. A insegurança, diz ele, vem inclusive da falta de um Código de Processo do Trabalho.
A falta de leis também atinge a bola da vez na Justiça do Trabalho: a terceirização. Atualmente, os limites são traçados pela jurisprudência, que, em vez de defini-los, discute o que são atividades-meio e o que são atividades-fim de cada empresa que chega aos tribunais por terceirizar. A discussão é vazia, na opinião de Mannrich, pois as empresas devem ser observadas por suas especialidades — o que não pode é uma empresa se especializar em ser “intermediadora de mão de obra sem ter um objeto especifico”.
O Brasil, porém, perdeu o momento certo de aprovar uma lei sobre a terceirização, diz ao se referir ao Projeto de Lei 4.330/2004, que estava na pauta do Congresso em meados de 2013, mas saiu da mira do Legislativo. O projeto foi alvo de críticas de 19 ministros do Tribunal Superior do Trabalho, que assinaram um manifesto contrário à peça, em uma atitude que, para Mannrich, não condiz com a de quem vai julgar casos relacionados a isso.
O advogado também critica o que o Judiciário aponta como um dos remédios para a insegurança jurídica: as súmulas. Para ele, elas são úteis, mas têm sido usadas para atender a demandas populares, criando normas — o que é papel do Legislativo.

Nelson Mannrich tem 67 anos e quase 50 de profissão. Foi advogado do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC nos anos 1970, quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ainda atuava na entidade. Agora, atende empresários em seu escritório em São Paulo, na Avenida Paulista, onde recebeu a reportagem da revista eletrônica Consultor Jurídico duas vezes, para mais de duas horas e meia de conversa.
Leia a entrevista:


ConJur — O senhor diz que assinar um Termo de Ajustamento de Conduta é pedir para fechar as portas ou para pagar uma multa dobrada. Por quê?
Nelson Mannrich — Tem situações em que a empresa não deve assinar o TAC, porque vai ficar sempre pendurada, vai ter aquela vinculação permanente com o Ministério Público. Um TAC coloca a empresa em um desequilíbrio em relação ao concorrente. Se todos têm que cumprir uma norma e o descumprimento implica o pagamento de uma multa que é igual para todo mundo, a empresa que assina o TAC assume o compromisso de cumprir aquela mesma obrigação, mas sob pena de uma multa milionária. O concorrente fica em uma situação confortável. O TAC não deveria ser a reprodução do que está na lei.


ConJur — O cumprimento da lei deveria independer de um TAC, correto?
Nelson Mannrich — Isso. A empresa acaba assinando por conta disso, mas não vê que tem um diferencial: o Ministério Público vai exigir que o Ministério do Trabalho sempre verifique se a empresa cumpriu aqueles itens que foram objeto do TAC. A fiscalização vai ser bem maior nela do que nos concorrentes.


ConJur — É difícil negociar TAC com o MP?
Nelson Mannrich — É muito difícil discutir os termos de um TAC para depois assinar. Normalmente o Ministério Público dá pouca abertura. Uma vez assinado o TAC, dificilmente a empresa vai se livrar dele. Uma vez dei parecer sobre se era possível rever um TAC. Era uma empresa que tinha um dificuldade de cumpri-lo e a discussão era muito interessante, envolvia terceirização. Eles haviam se comprometido a não terceirizar, mas os concorrentes de um determinado setor continuaram terceirizando, e o custo da empresa ficou inviável. Por conta disso, a discussão judicial de um TAC se justifica.


ConJur — É comum discutir o TAC na Justiça?
Nelson Mannrich — Não é comum a empresa tentar mudar ou anular um TAC. O que é comum é discutir o cumprimento dele. Ou seja, o Ministério Público alega que ele não foi cumprido e a empresa tentar provar que cumpriu.


ConJur — E quando vale a pena assinar um TAC?
Nelson Mannrich — As empresas às vezes assinam em um momento de muito desespero. É uma forma de tentar resolver um problema urgente como a pressão da comunidade por conta de um problema enfrentado, mas é uma ilusão, pois vai ficar aquela dívida para sempre. É uma forma, digamos, de resolver do ponto de vista sociológico. Do ponto de vista jurídico, o Ministério Público desiste da ação trabalhista, mas praticamente ganha uma cadeira no conselho da empresa. Por exemplo, se você assinou um TAC de não mais terceirizar, então não vai terceirizar, dependendo do que está escrito, nem contador, nem advogado.


ConJur — Com anda a discussão a respeito da terceirização?
Nelson Mannrich — Nós perdemos o momento histórico de regrá-la, no ano passado. Lá em Brasília, tem, seguramente, mais de dez projetos de lei sobre terceirização. Uns bons, outros mais ou menos. Esse do Sandro Mabel (4.330/2004) foi “retocado” e estava bem adiantado. Parecia que ia ser aprovado, mas, de repente, deu problema no andamento. Veio, então, aquele manifesto dos ministros do TST contra qualquer tipo de terceirização. Aquilo foi uma coisa terrível. Foi inclusive questionado em eventos públicos: como é que pode um ministro se posicionar sobre uma questão que ele vai ter que julgar amanhã? Ele tem que ser neutro.


ConJur — Estavam se posicionando contra o projeto de lei antes mesmo de ele ser aprovado...
Nelson Mannrich — Quando o ministro [João Oreste] Dalazen era presidente do TST e convocou uma audiência pública sobre terceirização, o objetivo dele foi bastante interessante: ele queria que a sociedade levasse ao tribunal quais eram os fatos, as questões econômicas, as questões políticas envolvidas na terceirização. Ele queria elementos para poder entender melhor o fenômeno. Na pratica, essa audiência pública infelizmente não deu o resultado que a gente esperava. Esperávamos que o TST revisse a Súmula 331, porque o tribunal não pode dar uma de legislador e criar regra que não está na lei.


ConJur — Mas as súmulas têm sido muito usadas pelo TST, não é?
Nelson Mannrich — Sim, e com o alcance de um dispositivo legal. Existe a possibilidade de interpretar por esse caminho, por aquele caminho ou por outros caminhos. Mas não pode criar uma obrigação, uma norma. E o TST tem feito isso, lamentavelmente.


ConJur — A ideia das súmulas não é interessante para dar segurança jurídica?
Nelson Mannrich — É. A súmula tem a ideia de que o TST desenvolve o papel de unificar a jurisprudência, papel que ele tem feito muito bem. Mas às vezes temos uma pressão da sociedade por conta da leniência ou omissão do Legislativo e o tribunal acaba ocupando aquele espaço vazio. Às vezes acontece algo pior: na área trabalhista, a visão ideológica das relações do trabalho.


ConJur — O senhor acha que a gente perdeu o momento certo para discutir a terceirização. E agora, para onde a gente vai?
Nelson Mannrich — Começar tudo de novo. Tem que começar a costurar uma nova norma. Porque essa norma era a melhor possível naquele momento, era a mais adequada.


ConJur — É melhor do que a indefinição que a gente tem hoje?
Nelson Mannrich — É. Sem uma lei regulando a terceirização, o TST vai ocupar esse espaço se arvorando a legislador. Ou, pelo menos, como não tem uma lei que diga quais são as regras, as diretrizes, quais são os limites da terceirização, vai aflorar uma visão ideologia para dizer que é assim, não assado. Dizem que terceirização é uma forma de precarização, que é o retorno da era industrial. Não conseguem ver que houve uma transformação da empresa. A empresa não é mais aquela vertical, grande, que faz tudo. Não. É uma empresa horizontal — e aqui não tem espaço para aquele modelo antigo. A visão ideológica protecionista, que são princípios que deviam ser revistos à luz de questões muito mais importantes, como a questão da igualdade, a dignidade e a segurança do trabalhador, proíbe qualquer tipo de terceirização, e as empresas fecham.


ConJur — O TST julgou há pouco tempo, em 2013, que o call center não poderia ser terceirizado. Como é que isso mexeu com as empresas?
Nelson Mannrich — Isso é muito importante e agora está sendo levado adiante, para ser discutido no Supremo Tribunal Federal. Eu, confesso, fiquei perplexo. Como é que pode um call center ter que ser empregado da própria empresa, se ela tem uma especialidade? Não tem nada a ver com a realidade da empresa. Eu acho uma incoerência grande. O próprio Estado terceiriza muito. Em uma reunião no Ministério Público, eu apontei para os presentes que eles terceirizavam os recepcionistas, a equipe da limpeza...


ConJur — Nesse caso há ainda as multinacionais, muitas com call center até em outros países.
Nelson Mannrich — Exatamente. Em grandes empresas de aviação, a área para emissão de passagem está na China ou na Índia. Alias, tem um debate muito interessante sobre essa questão da globalização. Um autor francês chamado Antoine Jamour tem uma visão incrível, mostrando que, como nós temos os Direitos do Trabalho, uma empresa francesa não consegue impor regras para uma filial brasileira.


ConJur — A Justiça do Trabalho busca definir a atividade-fim para decidir sobre a terceirização. No caso do call Center foi dito que resolver problema do cliente era atividade-fim. É possível fazer essa definição?
Nelson Mannrich — Não tem como. Nós temos que partir da ideia de especialidade. Em tese, não precisaria ter uma lei sobre terceirização. Quando você parte do conceito de empregador, que é a empresa, significa que ela tem que ter uma especialidade, ela não pode é ser uma intermediadora de mão de obra sem um objeto especifico. Ser empregador é dirigir a atividade do empregado, ter responsabilidade pelo cumprimento das obrigações trabalhistas. O conceito de empregador que exerce uma atividade resolve o problema da terceirização.


ConJur — A ideia do empregador respondendo solidariamente aos terceirizados faz sentido?
Nelson Mannrich — Não tem sentido, porque quando a companhia assume uma terceirização, se a terceirizada sabe que a responsabilidade é solidária, se acomoda. A responsabilidade deve ser da terceirizada, não da tomadora. A responsabilidade da tomadora de serviço é subsidiária, porque se a terceirizada não pagar, a conta vai para a outra empresa. A companhia não pode ficar em uma posição tão confortável.


ConJur — Parece que vai ser muito difícil este ano, com Copa e eleição, discutir isso.
Nelson Mannrich — Nenhum político vai querer se comprometer na sua base. Mudar a legislação trabalhista significa mexer com o privilégio de uma minoria. No fundo é isso. E falam de pleno emprego... Imagina. O tamanho do trabalho informal no Brasil é uma coisa incrível. É a terceirização a culpada? Absolutamente. Com terceirização, a empresa exige que a terceirizada registre seus empregados, recolha o fundo de garantia, pague férias, pague horas extras, e ainda provar que recolheu e pagou tudo direitinho.


ConJur — Então, a terceirização facilita a formalização?
Nelson Mannrich — A formalização e o cumprimento efetivo das leis. Porque existe hoje, digamos assim, estruturas dentro da empresa, ou empresas especializadas para controlar o processo de terceirização, de exigir o cumprimento da legislação trabalhista.


ConJur — O Presidente do Sindicato dos Advogados de São Paulo fala que a contratação de advogados como associado é ilegal, porque não está prevista na lei e nem na CLT, só no regulamento do Estatuto da Advocacia. Qual a sua opinião a respeito? Tende a acabar esse tipo de contratação como associado?
Nelson Mannrich — Não. Ao contrário, tem que manter e regulamentar isso. É muito interessante examinar como é que funciona em outros países. Na Itália, por exemplo, se o bacharel faz o curso até certo período, pode trabalhar internamente como empregado do escritório, e se ele continuar o curso, pode atuar externamente — e esse nunca será empregado. Tem uma lei também interessante da Espanha nesse sentido. Há situações realmente complicadas, mas, de modo geral, o associado de uma sociedade de advogados define a linha que adota, avisa quando quer sair de férias, escolhe quando vai de manhã ou de tarde, ou se nem quer ir ao escritório no dia. Existe de fato um espírito societário. Eu acho que há fraudes, há situações específicas, mas a figura do advogado é típica de um profissional liberal, que, com apoio até na própria OAB, tem instrumentos para dar uma estrutura legal para isso.


ConJur — O senhor não acha que o crescimento das bancas vai aumentar o número de advogados empregados, por exemplo? Porque as bancas estão ficando muito grandes, a gente está vendo muito escritório de massa. Faz sentido manter um advogado associado em um escritório de massa?
Nelson Mannrich — Depende da situação, do tipo de atividade. Porque às vezes ele pode assumir, por exemplo, um tipo de atividade onde ele tenha autonomia para definir o que e como ele vai fazer e vai ganhar por resultado. Tem que ver cada caso concreto, mas se você colocar um advogado em uma linha de produção, como temos notícia de algumas bancas enormes, se de fato ele tiver hora pra entrar, hora pra sair e subordinação, ele é empregado. A CLT está ai para dizer isso.


ConJur — E faz sentido ter advocacia trabalhista sem ser de massa, não hoje, mas daqui uns cinco anos?
Nelson Mannrich — Olha, no nosso caso especifico, não somos só advocacia trabalhista, fazemos as cinco áreas principais do Direito. Mas nós não fazemos massa aqui. Não porque eu acho que seja errado, mas porque acho que não tenho vocação para isso.


ConJur — Mas vai ter como um escritório sobreviver, daqui cinco anos, sem fazer demandas de massa, sendo que a parte trabalhista é o carro-chefe? 
Nelson Mannrich — Tem, porque, cada vez mais, a legislação trabalhista será sensível para as empresas. Nós estamos criando uma complexidade, uma rede tão complexa de relações trabalhistas, das mais variadas fontes, seja do Estado ou das organizações sindicais, com obrigações para as empresas de todo tipo. Então é cada vez mais difícil para o empresário manter o seu negócio sem ter um passivo. Ele tem que ter sempre a atuação preventiva do advogado trabalhista, que é aquele vai dar mais consultoria, que vai trabalhar muito em arbitragem, em negociação.


ConJur — Arbitragem no Direito do Trabalho faz sentido?
Nelson Mannrich — Não. Nós temos uma cultura de que só o Estado pode resolver o conflito, que só o Estado pode criar a norma. A causa dos maiores problemas é o monopólio do Estado. Se nós tivéssemos mais negociação, teríamos menos conflito. Se nos tivéssemos mais formas de solução de conflitos, nós teríamos um custo Brasil menor.


ConJur — Essa ideia de o Estado ser o detentor das normas, acaba colocando-o como o detentor do Direito, na prática, não é? Vemos casos de o Estado impedir o trabalhador negociar, por exemplo, horário de almoço. Por que isso acontece?
Nelson Mannrich — O que se coloca é que a matéria objeto de negociação é saúde, e saúde não se negocia. Eu acho uma coisa muito complicada, porque qualquer pessoa pode dizer que prefere almoçar em 20 minutos — tomar um lanche — e ir para casa mais cedo. Eu pergunto: Será verdade que a questão da hora de almoço envolve saúde do trabalhador? Não tem sentido nenhum. Nós já tivemos uma portaria que permitia ao sindicato negociar com a empresa a redução da hora do almoço. Foi um escândalo, porque o sindicato negociava com a empresa meia hora de almoço, o empregado demitido ia para a Justiça do Trabalho e a empresa era obrigada a pagar indenização para o empregado. Eu estou falando de uma visão ultrapassada de colocar como interesse da sociedade questões que não têm nada a ver. O interesse público não se confunde com os interesses da coletividade, de um determinado grupo. A saúde do trabalhador, no sentido de ele trabalhar com substância agressiva, em um ambiente que possa ser inseguro para ele, tem regras. Não tem sentido dizer que o problema da hora de almoço está na mesma dimensão de grandeza desse valores da ordem pública da sociedade.


ConJur — Que outros direitos têm sido tutelados pelo estado?
Nelson Mannrich — As férias, por exemplo. A lei diz que as férias são de 30 dias e você pode negociar um terço em dinheiro. Então, eu teria 20 em descanso e 10 em dinheiro. Mas se as férias forem coletivas, você pode fracionar as férias, mas nenhum período pode ser inferior a 10 dias. Mas o juiz do Trabalho, por exemplo, pode dividir as férias dele em diversos períodos, como é no serviço público.


ConJur — A ideia do assédio moral tem bastante repercussão na imprensa. É impressionante como ele se replica, como aparece em diversos ambientes completamente diferentes. Como se explica a quantidade de casos de assédio moral no país?
Nelson Mannrich — Existe uma cultura do poder dentro das empresas, e não há espaço para democracia. Isso é um problema complicado. Existe uma visão de que você trabalha para ganhar salário e tem que ficar quieto. Existe hoje um cuidado por parte das empresas, principalmente as que já sofreram ação por assédio moral. De modo particular, quando aquela ação foi movida pelo Ministério Público, porque aí ela dá uma repercussão nacional. O Ministério Público tem exercido um papel importante na mudança desse perfil da empresa, no trato com o empregado. Tem exageros, mas esse ponto é muito importante, porque as empresas hoje tem a preocupação com a cultura do respeito à dignidade do trabalhador. Nós mudamos o Direito do Trabalho da era em que se valorizava muito o princípio da proteção para uma época em que valorizamos o trabalhador pela sua dignidade e pela participação que ele tem na empresa, sua cidadania. Mas isso não é uma coisa que o Estado impõe, é uma coisa que se conquista. É educação. Evidente que assédio moral não é um problema jurídico, é um problema que envolve psicologia e outras matérias, evidentemente. Mas o Direito tem uma influencia aí.


ConJur — Faz falta um Código de Processo do Trabalho?
Nelson Mannrich — Sim. O Código de Processo Civil é usado para preencher lacunas, mas cada um entende que uma coisa diferente sobre o que é lacuna. Um processo lá em Manaus é totalmente diferente do processo em João Pessoa, diferente do Rio Grande do Sul. Por exemplo, aqui [em São Paulo], se não levar testemunha, não pode adiar um julgamento. É um processo por vara. Nós temos que ter um processo único para a Justiça do Trabalho.


ConJur — Podemos prever uma reforma trabalhista em alguns anos ou parece fora de cogitação?
Nelson Mannrich — Nós só introduzíamos segurança na empresa depois de um assalto. Nós esperamos uma desgraça acontecer. Tem uma estrada em Ibiúna, que cada lombada corresponde a um acidente. Eu tenho, porém, que fazer uma lombada antes de ocorrer o acidente. Nós não podemos esperar uma grande crise de desemprego no Brasil para fazer a reforma. Mas isso não interessa para o governo. A Dilma, quando abriu a conferência da CNI, falou de tudo, de aeroportos, de portos, de infraestrutura, do paraíso de pleno emprego, mas não disse uma palavra sobre a parte trabalhista.


ConJur — E está na hora de mexer na CLT?
Nelson Mannrich — Precisa mexer na base da CLT, dessa visão paternalista, do Estado protetor. Significa quebrar monopólios do Estado na criação de norma e permitir uma participação do trabalhador na negociação coletiva e na solução do conflito. É preciso ter estímulos a um sistema de solução de conflitos dentro da empresa, ao dialogo interno, ao mecanismo onde o trabalhador possa resolver com seu chefe diretamente o seu conflito, e, se ele não resolver, que ele possa ir ao superior. O processo não pode ser uma possível vingança, resultado da vida de um trabalhador isolado, não ouvido, uma panela de pressão sem válvula de escape... Ele não tem com quem conversar, com quem resolver, e deixa tudo guardado para no final processar. Isso é um desafio para o governo e para o empresário também. O empresário deve abrir um espaço dentro da empresa para criar instâncias de negociação. E aí entra aí obviamente a questão sindical.


ConJur — A estrutura dos sindicatos e a estrutura de relação com os sindicatos deve ser alterada?
Nelson Mannrich — O Direito do Trabalho começa pela reforma sindical. Esse é o grande desafio. Enquanto não fizer isso, nada vai mudar no Brasil. Tem que introduzir a liberdade sindical, para pensar então em negociação coletiva. Porque o sindicato que está aí... Tem muitos sindicatos bons, mas eles estão naquela velha estrutura. Quem vai ser o representante do trabalhador na solução do conflito é aquele que nós vamos entender que é o mais adequado.


ConJur — Vemos muita pressão por acordos na Justiça do Trabalho. Essa é a função da Justiça?
Nelson Mannrich — O papel da Justiça é pacificação. A pacificação não depende de uma sentença. Depende de uma solução imposta, que é a sentença, ou uma solução acordada. O importante é que haja uma solução do conflito. Eu acho que 50% dos conflitos são resolvidos já na fase inicial, por acordo. Aí você percebe que nós precisaríamos rever o nosso modelo, que nós poderíamos ter uma instância aonde as questões pendentes seriam resolvidas sem necessidade de movimentar o Judiciário.


ConJur — A CLT deveria tratar diferente cada escalão de empregado?
Nelson Mannrich — A minha proposta é essa. Ter uma legislação própria para altos quadros, diretores e altos executivos, em uma linha de exclusão desse protecionismo da CLT. Países europeus fazem isso. Na França tem o operário, que é o trabalhador braçal, o empregado, que é o colarinho branco, e tem o alto quadro, que são os dirigentes.


ConJur — Isso desafogaria a Justiça de alguma forma?
Nelson Mannrich — Sim. E daria mais segurança jurídica para todo mundo.


ConJur — É possível reduzir o custo de um trabalhador sem reduzir direitos.
Nelson Mannrich — Ninguém entende direito o que é custo trabalhista. Os economistas mesmo falam em 102% de custo, outros reduzem para 67% ou 50%. Eu tenho que definir o que vai para o Estado: isso é custo. O que vai para o empregado não é custo trabalhista. INSS sem encargo, fundo de garantia sem encargo e um terço de acréscimo no salário das férias não é custo trabalhista, é uma forma de pagar o salário dele. Nós não temos uma transparência em relação a isso ou um levantamento claro para dizer se o Brasil tem mais ou menos custo trabalhista que outros países. Como eu posso falar que temos o custo trabalhista mais alto do mundo se nós temos um dos salários mais baixos do mundo?


ConJur — Mas aí entram questões tributárias também, não é?
Nelson Mannrich — Estou muito convencido de que a reforma trabalhista passa por uma reforma fiscal. O governo tentou desonerar a folha de pagamento cobrando INSS sobre faturamento em alguns segmentos em vez de vir na folha. Alguns criticam que o Estado, dizendo que só se fez isso porque é uma forma de arrecadar mais. Eu vejo que nós poderíamos resolver grande parte dessa questão do custo desonerando a folha. Por que hoje tem tanto empregado chamado PJ (pessoa jurídica) ou não registrado? Porque se eu registro o empregado, preciso pagar o dobro. Então, se eu tiver uma reforma tributária, não será pelo fato de ele ser empregado ou não que vai dar mais imposto ao Estado.


ConJur — O que o Brasil tem a enfrentar ainda para conseguir acabar com o trabalho análogo à escravidão?
Nelson Mannrich — Do ponto de vista jurídico, tem que primeiro definir o que é trabalho escravo, com uma lei clara, objetiva, e não um conceito em aberto, que não define claramente as regras do jogo. Nós não sabemos exatamente o que é trabalho escravo.


ConJur — Não existe uma jurisprudência fechada sobre isso?
Nelson Mannrich — Tem muita coisa, descrevendo aquela situação. Mas quais são os critérios? Tem o artigo 149 do Código Penal. Por exemplo, jornada excessiva. Aí vêm as instruções normativas do Ministério do Trabalho, que não são leis. Segundo elas, se você tiver uma empregada doméstica em casa que um dia trabalhou 15 horas, é trabalho escravo, pois é jornada excessiva. Precisamos de parâmetros objetivos, critérios.


ConJur — Já noticiamos que uma empresa foi acusada de ter trabalho escravo porque não tinha o bebedouro na altura certa. Como isso é possível?
Nelson Mannrich — Um desses quatro itens do Código Penal fala de condições de saúde e segurança. Uma portaria do Ministério do Trabalho sobre as condições de saúde tem 35 normas regulamentadoras. Cada norma regulamentadora pode ter até mais de mil itens. Tem vestiário, refeitório, sinalização, rede elétrica. Se uma dessas normas é descumprida, é, em tese, trabalho escravo. Mas a realidade não é assim. A lei tem que dizer o que é trabalho escravo de verdade. Uma das penas é por usar trabalho escravo é privar da liberdade o autor do crime. Ora, eu não posso privar alguém da liberdade de uma maneira simplista. Ele tem que ser acusado da prática de um crime que a lei estabeleça de forma clara e definida para que possa se defender. A lei não pode simplesmente criar uma nuvem da qual vão extrair gotas que interessam caso a caso.


ConJur — Quanto às cotas para pessoas com deficiência, vemos diferentes decisões sobre a obrigação de contratar ou não deficientes, de acordo com a disponibilidade de alguém para o serviço específico da empresa. A jurisprudência parece bem dividida. Como o senhor enxerga a questão?
Nelson Mannrich — No começo, houve uma lei bastante complicada para as empresas. Nós não tínhamos a cultura ou o devido respeito ao deficiente que ele fosse um homem produtivo. Com a lei, verificamos que de fato tem espaço, e muito espaço, para pessoas com deficiência. Foi adotada uma posição muito dura por parte dos órgãos de fiscalização, em parte do Ministério Público, e até da própria Justiça do Trabalho. Hoje nós avançamos muito. Há uma integração muito grande, mas ainda temos o problema de formação de mão de obra. Com isso esbarramos em um critério discutível: precisamos saber se a porcentagem de deficientes a serem contratados será feita a partir dos cargos que podem ser ocupados por esses funcionários ou a partir de todos os postos da empresa. Se eu não tiver pessoas com deficiência que possam, por exemplo, dirigir caminhão, coloco em risco o patrimônio da empresa, a sociedade e terceiros ao obrigar uma empresa a ter uma cota de motoristas com deficiência. Aí a discussão pega fogo. Uma vez fiz um acordo com determinada empresa que, em vez de contratar, ela se comprometeu a qualificar mão de obra para outros utilizarem. O que se pretende hoje é excluir do cálculo da cota os empregados que estão na área técnica, onde não posso colocar ninguém. Então, onde eu tenho 200 empregados, mas só posso alocar um deficiente em uma área com 100, então eu vou calcular a cota em cima de 100.


ConJur — As decisões do TST são seguidas nos tribunais regionais e nas varas?
Nelson Mannrich — Normalmente são, mas há uma relutância em levar em conta o TST como uniformizador da jurisprudência.


ConJur — Qual é a função do Conselho Superior da Justiça do Trabalho e qual tem sido a aplicação dele?
Nelson Mannrich — É uma revolução que ocorreu dentro do Judiciário. Eu, pessoalmente, acho que é fundamental esse papel de supervisionar o trabalho dos magistrados, mas há uma cobrança muito forte por metas. Isso cria uma pressão muito grande, que gera uma reação por parte dos juízes. Gera estresse, depressão... É muito fácil o tribunal condenar as empresas porque submeteu o trabalhador a uma meta difícil de ser atingida, quando seu próprio integrante é submetido a esse estresse.


ConJur — Existe algum incentivo para o advogado que está saindo da faculdade atuar na Justiça do Trabalho?
Nelson Mannrich — Tem um mercado incrível para as pessoas que são bem preparadas. Mas precisa gostar do que faz. Quando começa meu curso na faculdade, eu sempre digo: Olha, vamos enfrentar um curso que é obrigatório para vocês, mas que não será provavelmente a escolha de vocês como profissionais. Eu estou falando para 5% da turma só. Por isso que eu vou exigir de todos o mínimo daquilo que é o básico. Advogado tem que saber tudo aquilo que é básico. Há um preconceito muito grande na área Trabalhista, com diversas explicações. Talvez porque alguns vejam um viés ideológico na área, como algo mais ligado ao empregado, ao proletariado, ao sindicato.

quinta-feira, 27 de março de 2014

Câmara aprova o novo Código de Processo Civil

O plenário da Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (26/3) o projeto do novo Código de Processo Civil (CPC), que tem o objetivo de atualizar os dispositivos atuais, em vigor desde 1973, e acelerar a tramitação das ações cíveis, incluindo questões de família, do consumidor e tributárias. O texto base já tinha sido aprovado em novembro, mas a redação final só foi votada após a análise de cerca de 40 destaques em diferentes sessões. A proposta segue agora para o Senado.

O texto atual permite que advogados públicos recebam honorários, um dos pontos mais polêmicos do PL 8046/2010. Hoje, o valor pago ao governo nas ações em que é vencedor vai para os cofres públicos, mas o novo CPC permite que ele seja repassado ao profissional que atuou no caso, na forma de uma lei futura. Haverá uma tabela com a quantia devida nas causas que o governo perde e, para todos os advogados, o pagamento de honorários deve ocorrer na fase de recursos.

Uma das principais inovações é a possibilidade de que pedidos que tratem de interesse de um grupo — casos que afetem uma vizinhança ou acionistas de uma empresa, por exemplo — poderão ser convertidos em Ação Coletiva, com decisão aplicada a todos já na primeira instância. O novo CPC também estabelece a contagem de prazos em dias úteis e determina a suspensão dos prazos no final do ano, garantindo descanso para os defensores.

A audiência de conciliação deve se tornar a fase inicial da ação. Se não der certo, o juiz poderá tentar novamente um acordo durante a instrução do processo. “Teremos câmaras de conciliação nos tribunais, com corpos especializados para isso. Só depois da impossibilidade da conciliação é que o conflito irá para o processo judicial”, disse o relator do substitutivo, deputado Paulo Teixeira (PT-SP). A conciliação também será pré-requisito na análise de pedidos de reintegração de posse envolvendo invasões de terras e imóveis que durarem mais de um ano.

Sobre a falta de pagamento de pensão alimentícia, fica alterada a jurisprudência atual do Superior Tribunal de Justiça, que só permite a notificação do devedor quando a dívida for superior a três meses. Isso significa que a Justiça poderá ser acionada já depois do primeiro mês de inadimplência. A proposta original tentava ampliar de três para dez dias para o devedor pagar ou justificar a falta de pagamento e estabelecer a prisão em regime semiaberto como regra geral, mas ambas as mudanças foram vetadas após críticas da bancada feminina.

Na execução, a carta de fiança e o seguro de garantia judicial terão o mesmo valor do dinheiro para fins de penhora. Quem responde a processos poderá recorrer a esses títulos para garantir que o seu dinheiro não será confiscado. O confisco de contas e investimentos bancários deve ser limitado, sem que comprometa o negócio e sem ser definido em plantão judicial. O juiz terá 24 horas para devolver o valor penhorado que exceder a causa.
  Com informações da Agência Câmara Notícias.
Clique aqui para ler o texto aprovado.

quarta-feira, 26 de março de 2014

Medidas extrajudiciais X Eficiência do Poder Judiciário

Medidas extrajudiciais podem tornar Judiciário eficiente
Por José Renato Nalini
A explosão da litigiosidade permite várias leituras. Para os otimistas, significa o despertar da população para os benefícios de um acesso ampliado ao equipamento estatal encarregado de solucionar conflitos. O povo descobriu o Judiciário e a ele acorreu com sofreguidão.
Para os realistas, é sintoma de enfermidade. Não pode ser saudável uma sociedade tão beligerante. Os números dariam a sensação de que todo o Brasil litiga. Pois excluídas as crianças, que em regra não demandam em juízo, e considerada a bipolaridade da ação judicial —autor versus réu—, todos os habitantes do país estariam a se digladiar em juízo.
Não é bem assim: 60% dos processos são de interesse exclusivo do governo. São Paulo, por exemplo, tem 12 milhões de execuções fiscais (cobrança judicial da dívida ativa do Estado e dos municípios). Ainda não se disseminou a noção racional de que cobrar dívida do governo não é função do Judiciário. A Procuradoria-Geral do Estado já compreendeu e avançou num trato mais sensato. Porém, há inúmeros municípios que continuam a atravancar os foros com milhões de executivos fiscais.
Outros campeões de litigância são os fornecedores de serviços essenciais, as instituições financeiras e bancos. A relação dos maiores litigantes não causa surpresa, mas sugere um trabalho de conscientização para que os preferencialmente demandados adotem alternativas de pacificação extrajudicial. Essa é a receita para tornar o Judiciário um serviço público eficiente, como determina a Constituição no artigo 37, ao contemplar os princípios incidentes sobre a administração pública.

Fazer Justiça não significa, inevitavelmente, ingressar em juízo. Ao escancarar o acesso à Justiça, o sistema foi tão prestigiado que se tornou quase impossível encontrar a saída. Afinal, sofisticamos tanto o modelo que chegamos ao quádruplo grau de jurisdição —juiz de primeira instância, tribunal, Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal— com dezenas de possibilidades recursais. É o que explica a duração de mais de uma década para o trâmite de um processo.

O pragmatismo anglo-saxão formatou múltiplas opções para solucionar controvérsias independentemente de ingresso em juízo. O Brasil é tímido ao enfrentá-las. Mas avançou bastante ao prestigiar a conciliação, a mediação e a alavancar a arbitragem, velha conhecida dos profissionais do direito.
É urgente intensificar o uso dessa estratégia. Os advogados podem e devem contribuir para tanto, pois é dever inscrito no seu Estatuto de Ética e Disciplina tentar a conciliação antes de adentrar o Judiciário. Assim como é dever ético dissuadir a parte de promover lide temerária.
A advocacia, essencial à administração da Justiça, precisa ser consultada preventivamente, o que evitaria o surgimento de situações geradoras de processos. Ao assumir atuação proativa rumo à precaução e prevenção de litígios, o advogado poupará o seu cliente do prolongamento da angústia pela indefinida duração de uma demanda.

Edificar uma cultura de pacificação não atende exclusivamente à política de reduzir a invencível carga de ações cometida ao Judiciário. O aspecto mais importante é o treino da cidadania a ter maturidade para encarar seus problemas com autonomia, situação muito diversa da heteronomia da decisão judicial.
Embora chamado "sujeito processual", o demandante ou demandado se converte, na relação jurídico-processual, em verdadeiro "objeto da vontade do Estado-juiz". Este é que tarifará sua dor ou sofrimento, o valor de sua honra e de sua liberdade. Enquanto que na via conciliatória, o próprio interessado terá participação efetiva e obterá uma solução superiormente ética à decisão judicial. Afinal, fazer Justiça é obra coletiva, num Brasil em que a iniquidade ainda parece constituir a regra.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Soluções alternativas para conflitos agrários

Conflitos Agrários: quem quer solução?

De fato, o Poder Judiciário, tal como está estruturado, não consegue interpretar princípios e aplicá-los, parando num formalismo que, longe de solucionar os conflitos, os estendem para um tempo mais longe, mantendo um estado de injustiça, de pobreza e de marginalização, quando não o amplia
17/03/2014
Por Carlos Marés

A Secretaria de Reforma do Judiciário (SRJ) do Ministério da Justiça acaba de publicar o resultado de um interessante estudo sobre soluções alternativas para os conflitos agrários e tradicionais. O Estudo, coordenado e desenvolvido por professores integrantes de Programas de Pós-graduação, teve a parceria da organização Terra de Direitos e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

Estes conflitos, em geral envolvendo proprietários de terras e comunidades tradicionais ou de pequenos agricultores familiares, são traumáticos, invariavelmente demorados e sempre judicializados.

A pesquisa partiu da análise de quatro casos concretos, dois de camponeses, um de indígenas e um de quilombolas. Estes conflitos se caracterizam pelo fato de um lado estar uma coletividade que usa e precisa usar a terra e do outro a propriedade privada. Da análise resultou que as soluções que o Estado brasileiro oferece acabam sempre judicializadas e decidias pelos estreitos limites do formalismo e legalismo, que não atendem a princípios constitucionais como a erradicação da pobreza e da marginalização e a promoção do bem de todos, entre outros.

De fato, o Poder Judiciário, tal como está estruturado, não consegue interpretar princípios e aplicá-los, parando num formalismo que, longe de solucionar os conflitos, os estendem para um tempo mais longe, mantendo um estado de injustiça, de pobreza e de marginalização, quando não o amplia.

A pesquisa demonstra que existe um instrumental jurídico e uma vontade nacional e internacional (arcabouço normativo de leis e tratados) para uma solução mediada, negociada de tal forma que se chegue a uma solução para as origens do problema. É um estudo sensato, sem críticas morais a sistemas ou órgãos, apenas constatando as dificuldades de implementação dos princípios pelos quais está constituído o estado brasileiro.

Apesar disto, a Senadora Kátia Abreu, em nome dos proprietários de terras, escreve um insidioso artigo criticando a pesquisa, seus financiadores, realizadores e autoridades presentes ao lançamento de seu resultado. Talvez por não ter entendido o teor de uma pesquisa científica, talvez pelo só espírito de emulação, considera que o resultado é um desrespeito às leis do país e uma desconsideração para com o Judiciário. Aliás, pelo nome da Secretaria de Estado que promoveu a pesquisa (Secretaria de Reforma do Judiciário) fica desconstruído o argumento da senadora e presidenta do CNA que também lançou uma nota ácida.

Ao contrário, a razão da pesquisa é exatamente analisar o que se deve fazer para implementar o que a Constituição brasileira determinou em 1988. Não só os conflitos agrários, quem sabe os mais visíveis, mas todos os conflitos e mazelas sociais deveriam ser objeto de estudo visando sua superação. O que a pesquisa mostra é que tudo está sendo judicializado e que há instrumentos para se pensar em soluções harmônicas, sempre mais justas e adequadas. Mas se a cabeça dos dirigentes dos proprietários de terras não está preocupada com soluções, dificilmente chegaremos a alternativas e o conflito deve continuar.

Realmente, enquanto faltar sensibilidade humana a uma das partes que tudo vê a partir do prisma do lucro, o trabalho do Estado, como conciliador, fica evidentemente prejudicado, nem haverá reforma do Judiciário, nem soluções alternativas. Vai imperar o radicalismo e sectarismo desejado pela Senadora.

Carlos Marés é doutor em Direito pela UFPR, professor da PUC/PR e ex-procurador geral do Estado do Paraná.

domingo, 16 de março de 2014

Conciliações da AGU economizam R$ 487 milhões

Cerca de R$ 487,7 milhões dos cofres públicos foram economizados em 2013 com a prática da conciliação adotada pelos órgãos da Advocacia-Geral da União. Foram mais de 117 mil acordos, a maioria envolvendo questões previdenciárias e gratificações de servidores públicos. Além da economia, os dirigentes da instituição afirmam que os dados representam a redução de litígio na Justiça e o reconhecimento do direito dos autores das ações. Os projetos de conciliação da AGU calculam a economia com base no valor do abatimento obtido por meio da conciliação e a projeção de quanto seria gasto caso a ação judicial continuasse tramitando.
A Procuradoria-Geral da União registra uma média de pagamento de R$ 10,9 mil aos servidores públicos que aceitam as propostas de acordos para retirarem ações requerendo valores de gratificações funcionais cujo direito a Justiça já pacificou. Em acordos envolvendo benefícios previdenciários e pagamento de gratificações a servidores aposentados, a Procuradoria-Geral Federal (PGF) estima uma média de 30% de economia em casos como esses.
A PGU atua na área conciliatória por meio das Centrais Regionais de Negociação, que contam com órgãos da Justiça na realização dos acordos. As unidades foram responsáveis por 9 mila cordos em 2013, gerando uma economia direta de R$ 17,2 milhões. No total, considerando o deságio e as despesas evitadas com o processo, cerca de R$ 45,6 milhões deixaram de sair dos cofres da União. A região jurídica onde houve maior economia foi a 1ª Região, que respondeu por cerca de R$ 225 milhões.
O Procurador-Geral da União, Paulo Henrique Kuhn, avalia que os resultados dos acordos obtidos em 2013 representam a consolidação do projeto o qual considera de grande importância para a gestão de processos implantados pela PGU. "A eliminação de milhares de processos e a perspectiva de termos evitado a interposição de centenas de milhares de petições e de recursos pela União revelam o elevado potencial de economia de recursos públicos e de recursos humanos desse programa", afirma.

"Por meio desses acordos e desistências, os procuradores, dentro dos parâmetros de legalidade, exercem diretamente a própria Justiça, garantindo aos autores das ações judiciais o reconhecimento imediato de seus direitos", diz o procurador-geral federal Marcelo Siqueira. Segundo Siqueira, o balanço demonstra a necessidade de a procuradoria auxiliar as autarquias e fundações públicas federais no aprimoramento de suas atividades de análise prévia e reconhecimento originário dos direitos pleiteados.


Administração Pública
A Advocacia-Geral da União também desenvolve o papel de conciliador nos casos envolvendo órgãos da Administração Pública. Os acordos são feitos no âmbito da Câmara de Conciliação e Arbitragem Federal (CCAF), que é vinculada à Consultoria-Geral da União (CGU). No ano passado, a unidade promoveu 27 conciliações entre eles, envolvendo 88 órgãos públicos.

Além disso, foram feitas 194 reuniões de conciliação, sem a celebração de Termos de Conciliação, e foram analisadas mais de 450 representações. O destaque da unidade no ano passado foi o projeto CCAF Virtual para utilização de dispositivos como e-mail, videoconferência, sistema de mensagens instantâneas para realização de acordos.

"O ano de 2013 foi extremamente proveitoso para a consolidação do procedimento conciliatório no âmbito da AGU, garantindo que a CCAF seja reconhecida como ferramenta apropriada para toda a administração pública e para organismos do Poder Judiciário como instrumento de solução nas controvérsias", diz o Diretor da CCAF, Orlando Muniz.


Anuário
A revista eletrônica Consultor Jurídico lança no próximo mês de abril o inédito Anuário da Advocacia Pública do Brasil. A publicação revela em detalhes o modelo que tem como estrutura mais conhecida a AGU. A obra também abordará as procuradorias-gerais dos estado, presente nas 27 unidades federativas, e a procuradorias-gerais de municípios.

De acordo com Maurício Cardoso, diretor executivo da ConJur, a AGU “é uma instituição gigantesca, que pouca gente conhece, o maior escritório de advocacia do Brasil” e o Anuário explica o funcionamento do arcabouço jurídico do governo. A Advocacia-Geral da União, afirma, tem 800 unidades espalhadas pelo Brasil, incluindo as procuradorias e escritórios de representação. A unidade central inclui o gabinete do advogado-geral da União, nomeado como ministro pela Presidência da República. Atualmente, o cargo é ocupado por Luís Inácio Adams. 
Com informações da Assessoria de Imprensa da AGU.

quinta-feira, 13 de março de 2014

Judiciário não pode usar PPPs

 

CNJ decide que instrumento das PPPs não deve ser usado por órgãos do Poder Judiciário

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) respondeu, na sessão desta última terça-feira (11/3) a uma das mais controversas questões de natureza administrativa do Poder Judiciário: poderiam os tribunais se utilizarem do instrumento das Parcerias Público-Privadas (PPPs), comum no Poder Executivo?

A questão vem sendo debatida no CNJ desde abril de 2010, quando a Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão apresentou uma consulta ao CNJ questionando se seria possível o TJMA firmar contratos nos moldes das Parcerias Público-Privadas.
 
A intenção era utilizar o mecanismo para a construção e aparelhamento de dez novos fóruns em comarcas do interior, uma sede para os juizados especiais e um complexo judiciário para varas da Infância e Juventude, além da reforma da própria sede do TJAM, informatização de cartórios e aquisição de veículos novos.

Com a retomada do julgamento na última terça-feira, a questão foi respondida negativamente pelo Conselho. A decisão estava suspensa desde novembro de 2011, após um pedido de vista do ex-conselheiro Tourinho Neto.

Em março de 2012, uma comissão foi criada para analisar a introdução das PPPs no Poder Judiciário. Diversos especialistas e autoridades no assunto foram ouvidos em duas reuniões, realizadas em Brasília e em São Paulo. Faziam parte da comissão os conselheiros Bruno Dantas, Jorge Hélio e Silvio Rocha.
 
Ao retomar o debate em plenário, o conselheiro Guilherme Calmon optou por acompanhar a divergência apresentada pelo então ministro Ayres Britto, em 2011, respondendo negativamente à consulta. “Sob o prisma das vantagens que o regime das parcerias público-privadas, aliás como foi ressaltado por vários especialistas, seria possível e econômico ao Poder Judiciário se valer do instituto jurídico previsto na Lei n. 11.079/04”, disse o conselheiro, em seu voto.  “Todavia, como foi objeto de extenso debate durante as reuniões de trabalho levadas a efeito pela Comissão constituída no âmbito do CNJ, há uma série de questões que ainda merecem maior cuidado e atenção, sob pena da provocação de consequências piores do que aquelas que atualmente são vivenciadas na realidade do regime contratual atualmente aplicável à Administração Judiciária, basicamente restrita aos limites da Lei n. 8.666/93 para fins de contratação de execução de obras, de aquisição de bens e de prestação de serviços”, complementou.

Um dos pontos nevrálgicos da questão era a eventual submissão de uma PPP firmada pelo Poder Judiciário a um órgão gestor do Poder Executivo, o que poderia ser uma ofensa ao princípio da separação dos poderes. O órgão gestor está previsto no artigo 14 da Lei 11.079/04, que institui as parcerias público-privadas, e seria composto apenas por representantes do Poder Executivo.
No entendimento do então ministro Ayres Britto, a Lei 11.079/04 refere-se exclusivamente aos órgãos do Poder Executivo, seja no âmbito da União, Estados, Distrito Federal ou municípios. Além disso, argumentou Ayres Britto, seus dispositivos são incompatíveis com o desempenho de atividades do Poder Judiciário, mesmo aquelas não relacionadas à atividade jurisdicional.

O voto de Ayres Britto foi acompanhado pela então corregedora Nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon, e pelos conselheiros Carlos Alberto, Neves Amorim, Ney Freitas, Silvio Rocha, Wellington Saraiva, Gilberto valente Martins, Jefferson Kravchychyn e Jorge Hélio.
 
Para o relator original da consulta, o ex-conselheiro Paulo de Tarso Tamburini Souza, a consulta deveria ser respondida de forma positiva, desde que o CNJ regulamentasse a questão no âmbito do Judiciário. O voto do relator sugeria ainda a criação de um grupo de trabalho para regulamentar a matéria no âmbito do Poder Judiciário.
 
“Talvez com mudanças legislativas – muito bem pensadas e alicerçadas na realidade das coisas do Judiciário brasileiro – venha a ser possível algum dia a utilização de meios outros – tais como através do regime das PPPs – pelos inúmeros tribunais brasileiros, mas não no modelo atual”, concluiu Guilherme Calmon.
 
O conselheiro Emmanoel Campelo também votou por responder negativamente à consulta. Já os conselheiros Rubens Curado e Fabiano Silveira acompanharam o voto do ex- conselheiro Paulo Tamburini.



Agência CNJ de Notícias

sexta-feira, 7 de março de 2014

Tráfico de pessoas e a impunidade

Conselheiro defende punição mais rigorosa para combater tráfico de pessoas

O combate ao Tráfico de Pessoas no Brasil ganhou o apoio oficial da Campanha da Fraternidade de 2014, lançada esta semana pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Com o tema “Fraternidade e o Tráfico Humano”, a campanha tem como objetivo alertar e denunciar o crime que, segundo o Ministério da Justiça, fez ao menos 475 vítimas brasileiras, entre 2005 e 2011. “É imprescindível que este crime seja melhor tipificado e que seus autores sejam punidos com maior rigor”, defende o coordenador do programa de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do CNJ, conselheiro Guilherme Calmon.

Para ele, as penas precisam ser condizentes com o que vem sendo praticado contra, principalmente, mulheres e crianças no país. O conselheiro alerta para a existência de três projetos de lei estacionados na Câmara dos Deputados sobre o tema. Atualmente, os crimes de tráfico interno e internacional de pessoas estão previstos no Código Penal, com penas que variam de 3 a 8 anos e multa.

O problema é que raramente a Justiça consegue comprovar o delito. As próprias pessoas traficadas muitas vezes sequer se enxergam como vítimas desse crime, apesar das péssimas condições de vida impostas pelo "trabalho" a que são submetidas e, raramente, denunciam os autores.  
Com o objetivo de mudar esse quadro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) realiza em maio o 4º Simpósio Internacional sobre o Tráfico de Pessoas. O evento tem como objetivo contribuir para a capacitação de juízes, promotores, defensores e advogados quanto aos instrumentos eficazes de combate as várias modalidades de crime ligadas ao tráfico, como exploração sexual; trabalho análogo ao escravo; adoção ilegal; venda de órgãos, dentre outros.

Ações - Desde 2012, o CNJ promove debates com representantes de órgãos e entidades públicos sobre o assunto. Além do aperfeiçoamento da legislação para criar tipos penais que contemplem as diversas modalidades do crime de tráfico de pessoas, outros pontos foram levantados durante os encontros; dentre eles: a melhoria no acolhimento às vítimas por parte da saúde pública e a realocação das vítimas no mercado de trabalho.   
“Mulheres vítimas do tráfico são, antes de tudo, vítimas do abandono social, da falta de políticas públicas. Muitas que passaram pela experiência da exploração sexual fora do País preferem não voltar para o Brasil, pois sabem que aqui não encontram perspectiva de trabalho, acompanhamento médico, muito menos acolhimento social ou familiar”, pondera a advogada e assistente social Tânia Teixeira Laky de Sousa, uma das especialistas no assunto que esteve presente no último debate.  

Campanha - Durante o lançamento da campanha da Fraternidade, ocorrida em missa no Santuário de Aparecida, o cardeal arcebispo e presidente da CNBB, Dom Raymundo Damasceno Assis, afirmou que toda a comunidade católica precisa se mobilizar para combater o tráfico humano.
“A Igreja não pode ficar imóvel diante desse problema tão grave, movido por quatro fontes de lucro ilícito: a exploração sexual, que atinge as mulheres e crianças; o trabalho escravo, que atinge os homens, mas também lança mão de crianças; o tráfico de órgão para transplantes, promovido por sequestros e até mesmo assassinatos; e a adoção ilegal de crianças, que são roubadas de seus pais", disse. Do Vaticano, o papa Francisco também reforçou o apelo do cardeal brasileiro e pediu aos brasileiros que se mobilizem contra o tráfico humano.
De acordo com a ONU, o tráfico de pessoas movimenta, por ano, 32 bilhões de dólares.

Regina Bandeira
Agência CNJ de Notícias



terça-feira, 4 de março de 2014

"Processo do mensalão é vingança contra desigualdade"

O devido processo legal não pode ter uma vinculação com o estrato social da pessoa que está sendo julgada. Esse princípio, porém, tem sofrido uma distorção no Brasil, do qual o processo do mensalão dá provas. Quem afirma é o professor da Universidade de Coimbra Rui Cunha Martins. “O processo do mensalão é a grande oportunidade que as populações cansadas de tanta desigualdade têm agora do revanchismo, da vingança. E o sistema jurídico aceita fazer esse papel”.

Professor visitante de programas de pós-graduação e membro de grupos de pesquisa em diversas universidades brasileiras e espanholas, Martins tem como foco de trabalho investigar confluências entre a Teoria da História, Teoria do Direito e Teoria Política, áreas em que orienta trabalhos de mestrado e doutorado. As linhas de pensamento mais presentes em seus trabalhos são a problemática da mudança política e da transição, a problemática da fronteira e da estatalidade e os regimes da prova e da verdade. No Brasil, as ideias foram explicadas nos livros O Ponto Cego do Direito: The Brazilian Lessons e A Hora dos Cadáveres Adiados, lançados no ano passado.

Para Martins, ao relativizar a importância das provas e justificar entendimentos com a repercussão que o resultado do julgamento teria em outros casos ou na opinião pública, o Supremo admitiu a participação de um elemento informal na técnica de decidir: a pressão social. Pressão essa que, segundo o professor, se volta contra a corrupção como se ela fosse a causa dos problemas sociais e econômicos do país. Em sua opinião, porém, esse tipo de pensamento tira o foco de um mal ainda mais destrutivo: a incompetência de quem tem a obrigação de guiar bem a gestão pública. Em entrevista exclusiva concedida à ConJur, ele afirma: “Se os tribunais fizerem o papel da ‘limpeza’, se arriscarão a ser os faxineiros do serviço, os idiotas úteis”.

E ele é ainda mais assertivo. Diagnosticando o movimento, que com a postura do Supremo ganha força na Justiça, Martins faz um alerta. Diante do anseio em acabar com a corrupção colocando ricos e poderosos atrás das grades, há o risco de se questionar a conveniência de se viver em um Estado Democrático de Direito, que, por regra, não pode abrir mão do devido processo legal — princípio que, por natureza, pede o contraditório e é inimigo da pressa em julgamentos penais. “Devido processo legal não tem que ter uma vinculação ao estrato social da pessoa que está a ser julgada. Esse princípio tem sofrido uma distorção no Brasil. Tem havido um peso de punição, de prisões, de execuções, proveniente de camadas sociais”, afirma. “O Estado de Direito não é salvo cada vez que um corrupto é condenado. E não será salvo se prender pessoas que não deveriam ser presas. Dizer: ‘Eu também vou julgar poderoso’ não vai oferecer segurança às populações.”
O professor visitou a redação da ConJur em uma de suas viagens ao Brasil, que faz com frequência para dar palestras em universidades. 

Leia a entrevista: 

ConJur — O Ponto Cego do Direito: The Brazilian Lessons e A Hora dos Cadáveres Adiados foram duas obras recentes com análises sobre eventos na sociedade brasileira, como as manifestações de junho. Qual foi o objetivo?
Rui Cunha Martins — Há um objetivo especifico e um objetivo comum. O objetivo comum é o de tentar construir uma problemática, pensar assuntos que o senso comum nos coloca, problemas da sociedade atual, das sociedades contemporâneas e, sobretudo, da sociedade brasileira. De forma a construir o que eu chamo de uma boa problemática, tentar pensar em vez de tomar partido ou, de forma impulsiva, transportar nossas pré-compreensões para assuntos que são mais sérios do que elas. Minha intenção é sugerir vias reflexivas para problemas que o Direito coloca.



ConJur — Suas obras fazem uma distinção entre a forma legal e a forma política de ver.
Rui Cunha Martins — Meu trabalho se situa no cruzamento entre Ciência Política, Direito e História. É um trabalho situado nos interstícios, nas dobras, nas pontes. Um exemplo concreto na sociedade brasileira se refere às expectativas sociais criadas em face à decisão judicial. O megaprocesso do mensalão é a expressão máxima de determinados problemas que há muito tempo ocorrem na sociedade brasileira e nas relações entre o sistema jurídico e o sistema social. Estamos a falar de uma zona de fronteira, de passagem. É uma tripla fronteira, porque, além do sistema social e do jurídico, há interferência da mídia e, portanto, do sistema comunicacional também. O sistema comunicacional é hoje expressão do sistema econômico. A mídia é a tradução do poder econômico. Os grupos de empresas são grandes. É o motivo do título do meu segundo livro, A Hora dos Cadáveres Adiados. É uma procissão de cadáveres, na qual está o sistema jurídico, que é a parte sacramentada, a parte do rei do momo no Carnaval, do bobo, que está desacreditado. É também uma festa que não pode passar sem o sistema político, em quem todos batem também. Mas a prova de que todos fazem política é em relação aos juízes do Supremo. Alguns deles são apontados até mesmo como putativos candidatos presidenciais, ou seja, candidatos ao topo do sistema político.



ConJur — O Supremo Tribunal Federal é uma corte constitucional em que a política faz parte das decisões, até por conta da forma como deve ser composto. É razoável que ele decida estritamente com argumentos jurídicos?
Rui Cunha Martins — Não tenha certeza se se quer isso. Sim, há um senso comum jurídico, porque não há só o senso geral da rua, mas também o senso comum jurídico. Mas vimos que a pressão feita sobre os ministros a partir das ruas, do sistema social, é justamente o contrário. A exigência que é feita — ou pelo menos que a mídia retrata ser feita — pelas populações é a de que haja julgamento político. Ou seja, que se dê o sinal fortemente político no sentido, quase pedagógico, de excomungar o poderoso. O problema é como desempenhar uma função que também é política, mas não pode deixar de ser técnica. E aqui já estamos quase a falar na teoria da democracia, no lugar do Direito nas sociedades democráticas, do Estado de Direito. Como uma decisão pode ter em conta as expectativas sociais?



ConJur — E qual é a resposta?
Rui Cunha Martins — Essa foi uma questão presente, por exemplo, no mensalão, em relação aos Embargos Infringentes. Até que ponto há obrigação do Direito em dar resposta às expectativas sociais? Isso é preocupante. É preocupante pensar que as expectativas sociais a respeito do Direito e do sistema jurídico sejam interpretadas no sentido de que o ruído da rua deve ser levado em conta pela decisão judicial. Penso que, no âmbito do Estado de Direito, não pode ser levado em conta. Não é dessa forma que se assegura a certeza do Direito.



ConJur — Sua tese é de que só se consegue inibir a impunidade quando o corrupto assumido passa pelo devido processo legal. Decisões que tendam a dar uma resposta rápida ao clamor por condenações acabam sendo um tiro pela culatra?
Rui Cunha Martins — Sim. Há uma ideia de que o sistema jurídico, quando condenar um poderoso, está finalmente a dar resposta aos anseios de justiça social. Ora, o fato de se viver em um Estado de Direito tem um preço, que é o devido processo legal. É nesse conceito que está incrustada a ideia de Estado de Direito e, sobretudo, de uma das versões de Estado de Direito, que é o Estado Democrático de Direito. Esse devido processo legal não tem que ter uma vinculação ao estrato social da pessoa que está a ser julgada. Esse princípio tem sofrido uma distorção no Brasil. Tem havido um peso de punição, de prisões, de execuções, proveniente de camadas sociais. Essa mesma sociedade, depois, tem de enfrentar problemas no sistema prisional. Esse problema nasce de outros. São problemas econômicos não resolvidos, de desigualdade social, do sistema capitalista. O sistema econômico não resolveu o problema da desigualdade social, dos crimes de injustiça econômica. Não é surpresa, portanto, que no âmbito do Estado de Direito, que funciona a partir de um processo legal, se esteja a procurar que seja o sistema jurídico quem resolva os problemas que o sistema econômico não resolveu. E quem carrega essa bandeira tem a esperança de que os tribunais limpem o terreno. Nisso, o mensalão não traz nada de novo. Ele é a grande oportunidade que as populações cansadas de tanta desigualdade têm agora do revanchismo, da vingança. E o sistema jurídico aceita fazer esse papel. 



ConJur — O que precisa se descaracterizar para fazer.
Rui Cunha Martins — Estamos a discutir isso em sociedades contemporâneas, no pleno vigor do Estado de Direito, que consolidou o conceito de “in dubio pro reo”, de que não há julgamento sem culpa formada, que privilegia sistemas garantistas. É por isso que vejo a corrupção como alvo da tentativa dos tribunais de procurar resolver o problema. A eleição da corrupção como alvo esconde o fundamental. Há uma falsa ideia de que, se limpássemos o terreno, tudo funcionaria bem. Tudo o quê? O sistema. Então, tudo, afinal, é contestar o sistema. Há outra ideia, subjacente a isso, de que a corrupção é patológica em relação ao sistema, o sistema capitalista. Não é só patológica, ela é também sociológica. A grande discussão é se o sistema capitalista a produz fisiologicamente, por instituir uma sociedade que vive do lucro, da ideia de valor, de mercadoria. Será possível que uma sociedade cada vez mais orientada para isso não produza fisiologicamente corrupção? O sistema que temos produziu desigualdades socioeconômicas sem as quais não é possível discutir o sistema de carceragem. Se os tribunais fizerem o papel da “limpeza” se arriscarão a ser os faxineiros do serviço, os idiotas úteis. Vai ficar tudo na mesma. Porque estamos queimando as etapas de discussão e debates que nunca foram feitos. São problemas antigos, mas não resolvemos.



ConJur — Como o Direito pode reagir?
Rui Cunha Martins — A sociedade tem estabilizadores de expectativas sociais e normativas. E o Direito, no ultimo século, tem feito esse papel. Aquilo que devo esperar é aquilo que o Direito permite. Como a religião fez esse papel, a Ciência fez esse papel, enfim, é o progresso. “Estado de Direito” quer dizer que o Direito deve estabilizar as minhas expectativas sociais e normativas. Aonde posso ir, o que posso esperar, o que é permitido. O que nós assistimos é o enfrentamento entre os julgamentos pelos tribunais e os julgamentos pela mídia, a manifestação da mídia na forma como ela traduz os protestos das ruas. É o que chamo de batalha das expectativas. É uma batalha que o Direito tem que perder. O Direito nunca vai ser tão rápido. Porque o processo é uma garantia? Porque implica demora. O processo muito rápido é o que faz a mídia. Coloca uma pessoa como suspeita, mas a prova não está presente. A evidência é tomada como prova.



ConJur — A sociedade não compreende a diferença?
Rui Cunha Martins — É uma diferença basilar, porque implica dois tipos de narrativa, dois tipos de conhecimento, dois tipos da abordagem da realidade. São conceitos gêmeos, mas não coincidentes. Estamos, nesta entrevista, em três pessoas. Isso é evidente. E se é evidente, não preciso provar. Essa é a força do discurso da evidência, do discurso rápido, intuitivo, instantâneo. O discurso da evidência dispensa a prova. Mas no Direito, no âmbito do devido processo legal, que deve se erguer no horizonte constitucional do Estado Democrático de Direito, é suposto que as decisões judiciais são construídas não sobre evidência, ou seja, não sobre aquilo que é imediato, mas sobre uma prova, depois de se ter feito uma série de contraditórios, de indagações. E, portanto, esse é o enfrentamento entre mídia e tribunal, a expressão dos dois discursos e dos dois tipos de conceito. A função social da mídia é essa, de informar. O Direito nunca vai ganhar essa batalha. Porque presume que, na dúvida, é preciso libertar. É claro que também há dimensões escandalosas no Direito, que é quando o processo demora tanto e de forma nada inocente. Mas também é escândalo quando tenta ser rápido demais. Tem de haver grande cautela com a celeridade. Ela é a tradução de pressupostos eficientistas para o Direito Penal. Esse é um dos motivos pelos quais se deve ter cuidado com a transação penal.



ConJur — A informação judicial não é útil à população?
Rui Cunha Martins — A pergunta que tem que ser feita às populações é: “Querem, afinal, o Estado de Direito?” Não se tem feito essa pergunta por dois motivos: um é porque as pessoas têm sido seduzidas com o excesso voyeurista, com os julgamentos indiretos. Tornou-se um costume dizer que o Brasil é o país da impunidade. Ora, todos os países o são, de uma maneira ou de outra. O que é específico no caso brasileiro é o peso que tem se dado ao julgamento indireto. É dar à criança o brinquedo e não explicar como funciona, porque não há uma descodificação. As pessoas não sabem que, em um julgamento, não se faz um “Fla-Flu”, não se pode tomar partido. Não lhes é dito que há procedimentos, e isso é um problema quase perverso.



ConJur — O problema é da informação ou dos meios?
Rui Cunha Martins — O Estado Democrático é o Estado que dá satisfações e, portanto, onde tem de haver transparência. Ele faz contraponto com o Estado inquisitivo, autoritário, em que não havia transparência. Já sabemos tudo o que isso causou. Agora, porém, temos que abrir a problemática da transparência. Porque em um mundo que tudo comunica, a transparência é quase pornográfica. E o sentido de pornografia é o de uma transparência sem contenção. Quando falo sobre o voyeurismo é no sentido de as pessoas só veem, sem terem a descodificação daquilo. É o problema da transmissão excessiva e direta dos julgamentos. A transparência já ameaça o próprio sistema democrático, porque atenta contra a privacidade das pessoas e é vítima da manipulação informativa do povo, da massa.



ConJur — Qual é a responsabilidade do povo?
Rui Cunha Martins — O povo é identificado como portador de um desígnio sacrossanto. Ele não se engana, é sabedor. Essa é uma retórica que permeia a narrativa dos consensos democráticos, de que a bondade está no povo. Isso é perigoso quando contrasta com a imagem dos seus representantes, que são “vândalos”, “maléficos”, “corruptos”. É uma linguagem da revolução francesa, perigosa porque alimenta uma suspeição quanto à política e acaba por omitir que o povo, como massa, foi conivente com a ditadura e com o totalitarismo. Por isso, não espanta que, hoje em dia, haja desinteligências, que os cidadãos não queiram garantias processuais e achem que isso seja um exagero, uma excrescência. O próprio Estado de Direito, embora nós esqueçamos disso, surgiu não apenas como oposto ao Estado absolutista, ao Estado de polícia, mas também ao terror revolucionário, à massa, ao grande número. O Estado de Direito tem uma dificuldade enorme de lidar com a massa e é produto de um compromisso de várias forças conservadoras. E nisso está a sua força também, porque é um Estado garantista, porque garante também contra o povo. Portanto, não admira que sempre que a rua fala, o Estado de Direito treme. Nem espanta que a própria rua não perceba que o discurso do Estado de Direito existe para proteger, que as garantias são para as populações. Não se tem essa ideia, não se sente isso como seu.



ConJur — O Estado funciona mal por causa da corrupção ou da incompetência? Não se está mirando o alvo errado?
Rui Cunha Martins — Eu também coloco essa pergunta. Quer nível macro, quer níveis micro, quer nível de política global estatal, quer nível de pequenas instituições, tenho defendido que o problema de se entrar no estudo da corrupção e pretendermos que aquilo que não funciona tem a ver com o que ela tira omite algo importante. E essa omissão é política, é nossa capacidade de medir quando determinada pessoa, à frente de determinada instituição, é ou não competente. É a pergunta final: Quem é que exerce? Como é que exerce? E que decisões tomou esse representante, esse governante, esse togado? Por que que todo esse movimento populista em certo sentido é perigoso para a política? Porque omite essa pergunta. Ora, se eu vou atrás dos corruptos, vou excluir que os virtuosos podem não ser competentes. A ideologia dos honestos vai ditar as decisões. E essas decisões podem ser, elas próprias, do ponto de vista político, mais honestas ou não, mais virtuosas ou não. 


ConJur — E isso não pode ser decidido nos tribunais.Rui Cunha Martins — Evidentemente.

ConJur — Como vê a TV Justiça no Brasil, que foi considerada um exemplo até mesmo pelo presidente da Suprema Corte do Reino Unido?
Rui Cunha Martins — É um exemplo de transparência, é credora dos maiores elogios, principalmente por seu pioneirismo. Entendo a bondade da ideia. Meu problema é que o próprio conceito que traduz essa iniciativa, da existência desse canal televisivo, que é o conceito de transparência, deve ser repensado. Quando digo isso não estou esfregando as mãos para dizer que, afinal, a ditadura era boa. Nada disso. Essa conquista é fundamental, mas tem que ser repensada para não ser o coveiro daquilo em nome do qual ela foi forjada. Se essa experiência é boa e pioneira, não se pode furtar à crítica. Esse mecanismo interfere na decisão judicial.


ConJur — Como?
Rui Cunha Martins — Hoje, temos que incorporar mais uma etapa no processo, a etapa em que as expressões sociais interferem sobre o que o juiz vai decidir. Ou seja, a decisão tem um componente que já não é formal. É o momento das expectativas sociais midiaticamente mediadas.



ConJur — Os julgamentos fechados ao público estão isentos?
Rui Cunha Martins — Eu prefiro a sociedade em que esse assunto pode ser debatido e é debatido de forma rigorosa. O que quer que se decida sobre esse assunto, que seja o resultado de um debate feito na esfera pública. Nós temos que reabrir as discussões sobre os limites. As sociedades democráticas, ao contrário do que a gente estuda muitas vezes, não são sociedades em que acontece o contrário das ditaduras repletas de limites e regras. Pelo contrário, as sociedades democráticas são as que aceitaram debater os limites que querem. E limites que aceitem a sua revisão, que aceitem responder sobre sua legitimidade.



ConJur — Um de seus livros diz que o processo judicial, por si só, é uma potencial ruptura com a ordem estabelecida. Por quê?
Rui Cunha Martins — Estamos a viver em um mundo que apresenta problemas novos, para os quais só temos mecanismos antigos. Quando se vive em ditaduras, a ruptura é tentar o ato revolucionário. Mas quando a democracia se instala como regime de consenso, como procurar rupturas, sendo que está patente que elas são necessárias? Como reinventar a diferença, a mudança? Como reinventar a mudança? Isso também vem junto com alguma insatisfação com a transição. Porque as sociedades que passaram da ditadura para a democracia usaram o mecanismo da transição, que é um mecanismo de mudança. Mas é um mecanismo incompleto, porque as transições não fazem tudo. Transita-se, mas há muito que permanece. Porque os juízes que exerciam os cargos durante a ditadura não foram mudados, não são mudados em um momento de transição política. A transição é incompleta. Ela diz que alguma coisa, a partir de agora, se pode fazer. Mas está tudo por fazer. O mais óbvio, diante da insatisfação com a transição, é buscar o ato, o evento. Nós precisamos, sem dúvida, de uma ruptura com o existente. O existente é uma sobreposição das formas, das realidades, do sistema político, do sistema jurídico. E aí entra o Judiciário e o julgamento cada vez mais apressado pela busca da celeridade. Se isso constitui nossa realidade, aquilo que temporariamente rompe com essa realidade é o mecanismo em sentido contrário, que garante hiatos, que garante processos. Por isso digo que só o processo é potencial ruptura. O processo é radical.



ConJur — Mas ele atende à necessidade de punição ao mesmo tempo em que freia a sede de sangue?
Rui Cunha Martins — Ele tem que, sobretudo, achar uma decisão. Porque a sociedade só quer a decisão. Não é discussão pela discussão. É chegar a termos seguros. A segurança jurídica não é punir. Segurança jurídica é saber que houve um devido processo legal. O Estado de Direito não é salvo cada vez que um corrupto é condenado. E não será salvo se prender pessoas que não deveriam ser presas. Dizer: “Eu também vou julgar poderoso” não vai oferecer segurança às populações. Porque o processo continua a ser injusto socialmente, continua a ter uma matriz de decisão que tem por base o estrato social da pessoa. Sempre que se cria mecanismos para combate ao crime organizado, à corrupção, ao crime de colarinho branco, ao desvio de fundos, ao crime com dinheiro público, como violar o sigilo bancário, esses dispositivos de controle, daqui a cinco ou dez anos, já não funciona, porque o “peixe graúdo” já aprendeu a lidar com eles. Só que o mecanismo ficou criado. E quem vai cair dentro do mecanismo? Criamos as coisas com um intuito, mas elas depois ficam disponíveis para uso geral.



ConJur — Existe a verdade no processo penal?
Rui Cunha Martins — É impensável deixar que a verdade seja, como foi no âmbito do processo inquisitorial, a rainha do processo, porque isso alimentou situações em que, em nome da verdade, tudo era permitido. Alguém era torturado, por exemplo, para se chegar à verdade. É preciso pensar no trajeto da maior parte dos juízes para chegar às suas decisões. O processo não pode produzir verdade. Mas é impensável, também, que um dos elementos constantes do processo não seja a linha da verdade, de alguma maneira. Ou seja, uma coisa é dizer: “Não é suposto que o processo tem a garantia da verdade.” Estou de acordo com isso. E que se diga que não vale tudo para se conseguir a verdade. Agora, há métodos em que estou a buscar, de fato, uma reconstituição do que se passou. Claro que essa reconstituição não é verdade, mas nenhuma reconstituição é verdade. Não é possível reconstituir o que se passou. O processo produz determinado tipo de representação, mas não produz verdade. Porque a verdade é sempre autoral. Não há verdade sem autor. Quem proferiu? Em que condições lógicas, sociais, temporais e de poder proferiu?



ConJur — Levando em conta as convicções de quem profere a decisão judicial, é possível dizer que ela já está tomada antes mesmo de as partes serem ouvidas?
Rui Cunha Martins — Fatalmente todos nós partimos para uma decisão com níveis de pré-compreensão. Às vezes no nível do impensável, intuitivo, com intuições, com preconceitos. Preconceito relativamente a determinado assunto, à possibilidade de aquela pessoa ser ou não quem praticou determinado ato. É suposto que o processo de convicção é um processo de depuração. Eu vou depurar minha crença inicial. Aqui está em jogo a diferença entre crença e convicção. A crença corresponde à evidência, na oposição que mencionamos antes sobre evidência e prova. Crença é em algo que eu não tenho que justificar. A decisão judicial não pode ser atingida a partir de níveis de crença. Ela precisa passar por várias etapas mediante as quais essa crença originária será desmentida, controlada, despistada. A convicção, por sua vez, é todo processo de constrangimento à crença. Esses processos nunca são perfeitos. É por isso que, apesar de tudo, se garante o in dubio pro reo, dimensão garantista que tem por pano de fundo a possibilidade do erro judiciário.