quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Impossibilidade de negociação da culpa no direito brasileiro

Resolução de ano novo para o Supremo: negociação da culpa
O ano novo reacendeu o debate sobre a questão penitenciária a partir de mortes, rebeliões e desmandos em presídios brasileiros. Para parcela da mídia e da academia, a origem do problema estaria na cultura punitiva dos magistrados brasileiros. Segundo O Globo juízes brasileiros insistem na privação da liberdade, contrastando a aplicação de somente 30% de penas alternativas no Brasil com o uso destas medidas em 79% dos casos da Inglaterra. Em ensaio, a professora Carolina Haber culpa os juízes de primeiro grau e “uma cultura punitiva que se apossou do nosso judiciário” pelo alto índice de presos provisórios no sistema penitenciário brasileiro.
Essa narrativa ignora uma variável decisiva: a inexistência em nosso direito da figura da negociação da culpa ou plea bargain. Aqui, em contraste com diversos países, Ministério Público e defesa não podem negociar a aplicação imediata de penas mínimas ou alternativas numa audiência de custódia. O altíssimo índice de penas alternativas na Inglaterra precisa ser compreendido à luz desta possibilidade. Caso tivéssemos previsão para negociação da culpa, juízes poderiam aplicar imediatamente a pena alternativa, na audiência de custódia, sem a necessidade de enviar um acusado primário para a penitenciária, onde ele estará sob a influência das facções criminosas.
Pense, por exemplo, nos roubos qualificados pelo emprego de arma de fogo, crime violento comum na justiça brasileira. Nestes casos, a prisão preventiva costuma ser considerada necessária para assegurar a produção da prova testemunhal e a instrução processual. As circunstâncias de cada caso devem ser analisadas, mas normalmente o réu é processado preso, para evitar a perda do depoimento da vítima intimidada com a soltura daquele que a ameaçou com arma de fogo. Por outro lado, ao final do processo, se o acusado for primário e o crime tentado, pode ser o caso de condená-lo e soltá-lo em sursis penal sem cumprimento da pena de prisão. Ora, seria muito melhor que fosse feita a negociação de culpa e, caso o acusado concordasse com a pena mínima ou alternativa, fosse condenado e solto na audiência de custódia. Assim, seria evitada a prisão provisória em diversos processos.
O resultado prático seria uma economia processual radical, com inúmeros processos criminais se encerrando no início. Além disso, as experiências de outros países revelam que recursos economizados podem ser destinados para profissionalização da justiça e produzir prova qualificada de processos mais complexos, o que melhora a prestação da atividade jurisdicional. Ademais, os julgamentos costumam ser mais céleres devido à racionalização que desestimula processos eternizados e desencoraja a criminalidade. O processo atenderia a suas finalidades e aos anseios sociais.
Certamente que a negociação da culpa não pode ser vista como uma panacéia, que irá solucionar todos os males do sistema penitenciário. Na prática, seus efeitos benéficos podem inclusive ser neutralizados, caso penas sejam desproporcionalmente aumentadas, poderes de supervisão judicial sejam limitados e uma defesa técnica qualificada não seja assegurada, como revela a experiência estadunidense. Contudo, na Inglaterra e demais países, a negociação de culpa gerou redução do encarceramento, com o efetivo desconto na quantidade e na qualidade da pena de réus.
Em discurso de posse no ano passado, Cármen Lúcia enfatizou a necessidade de atender aos jurisdicionados através da eliminação de processos judiciais eternizados e do aumento da efetividade do poder judiciário. Para ela não bastaria a reforma, mas sim uma verdadeira transformação da justiça para o cidadão. Até recentemente reformas processuais eram feitas exclusivamente através de lei. Contudo, a audiência de custódia foi implantada através de uma resolução do CNJ. Talvez, a adoção do plea bargain pudesse seguir o mesmo modelo e ser feita através de uma reforma na Resolução n. 213/2015, que disciplina o procedimento da audiência de custódia. Até mesmo porque a principal mudança seria interpretativa, de substituir o princípio da obrigatoriedade da ação penal pela discricionariedade regrada. Por cautela, eventual resolução do CNJ poderia ser submetida ao plenário do Supremo. Nos Estados Unidos, país de origem do instituto, plea bargain se iniciou pela prática dos tribunais sem que houvesse necessidade de lei específica autorizando.
Atualmente, em países como Estados Unidos, Inglaterra e Argentina, a imensa maioria dos processos criminais é resolvida sumariamente desta forma. No Brasil, ao contrário, os juízes não podem aplicar imediatamente penas mínimas ou alternativas para encerrar o processo sumariamente. Uma exceção ocorre nos casos de delação premiada, que tem beneficiado com descontos de pena criminosos de colarinho branco. Ora, se executivos da Odebrecht podem negociar a culpa, por que esta possibilidade não é admitida aos demais réus nos degraus inferiores da hierarquia social brasileira?
Não se pode afirmar, contudo, que a questão seja cultural, se falta o instrumento processual que permitiria modular a pena com maior flexibilidade e de forma negociada. Soltar e inocentar a todos indiscriminadamente também não seria o caminho adequado para reduzir encarceramento e criminalidade, tal como nos ensina o exemplo da Inglaterra. Diante da grave crise penitenciária de nosso país, uma excelente resolução de ano novo para a Presidente do Supremo seria adotar a negociação da culpa.
Pedro Fortes - Professor da FGV Direito Rio
(Transcrito do site JOTA).

Mediação como resolução de conflito

Desafios e perspectivas para as carreiras jurídicas na mediação

O Relatório Justiça em Números 2016[1] demonstrou que no final do ano de 2015 tramitavam no judiciário brasileiro quase 74 milhões de processos. E, “mesmo tendo baixado 1,2 milhão de processos a mais do que o quantitativo ingressado (índice de atendimento à demanda de 104%), o estoque aumentou em 1,9 milhão de processos (3%) em relação ao ano anterior”.
Diante deste cenário, a mediação tem sido festejada enquanto forma de dar celeridade na solução das demandas em andamento e forma de evitar o ingresso de determinadas demandas no judiciário. Contudo, importante destacar que a mediação não será a panaceia a resolver todos os problemas estruturais que decorrem do modelo de jurisdição centrada no monopólio estatal.
E, para que não haja frustração dos juristas e da própria sociedade com a “promessa” da mediação, é preciso compreender o que é e como funciona este instituto. E mais, é preciso saber que a mediação pode ser privada ou estatal e que a forma de lidar com o conflito em cada uma delas pode ser bastante diversa.
Na verdade, como qualquer instituto jurídico, a mediação possui muitos conceitos e outras tantas teorias a seu respeito. E como não é o objetivo deste artigo esgotar a temática, apresentaremos um conceito da professora Michéle Guilleaume Hofnung (2007, p. 71 Apud AMARAL, 2009, p.91)[2] que traz aspectos interessantes acerca do instituto:
 “a mediação se define principalmente como um processo de comunicação ética baseada na responsabilidade e autonomia dos participantes, na qual um terceiro — imparcial, independente, neutro, sem poder decisório ou consultivo, com a única autoridade que lhe foi reconhecida pelos mediados — propicia mediante entrevistas confidenciais o estabelecimento ou restabelecimento de relação social, a prevenção ou a solução da situação em causa”[3].
Nesse sentido, a mediação pode ser vista como um procedimento voluntário, pacífico de resolução de conflitos que é conduzido por um mediador capacitado para atuar de forma imparcial e independente, buscando por meio do diálogo e da investigação de questões (problemas) e motivações alcançar a compreensão do conflito e dos reais interesses das partes envolvidas. E, diante desta compreensão, capacitar os envolvidos para que os mesmos alcancem possíveis soluções que os satisfaçam e os tornem responsáveis por eventual acordo obtido. De forma concisa, a mediação é um meio de gestão do conflito entre as partes envolvidas e com o auxílio do mediador por meio da comunicação e expressão de interesses.
E aqui, é importante destacar o que a mediação não é. A mediação não é aconselhamento já que o mediador é imparcial e não deve aconselhar. Não é terapia, pois não oferece diagnóstico ou tratamento. Não é justiça restaurativa por não estar restrita à seara penal. Por fim e, principalmente, não é conciliação. 
A mediação difere-se da conciliação na medida em que trabalha com pessoas e não casos e, mais que isso não tem caráter eminentemente judicial, sendo altamente recomendável para situações em que existe um vínculo relacional mais longo entre as partes. Na conciliação pode haver sugestões por parte do conciliador já que o objetivo é evitar os desgastes de uma demanda judicial. Já na mediação, a solução do conflito deve surgir das próprias partes, do diálogo cooperativo. Por isso, a conciliação, via de regra, é mais célere.
Com relação às diferentes formas de trabalhar com a mediação são consideradas como clássicas três escolas: Modelo Tradicional-Linear de Harvard, o Modelo Transformativo de Bush e Folger e o Modelo Circular-Narrativo de Sara Cobb.
Destaque-se que nenhum dos modelos é melhor que o outro. São abordagens diferentes e aplicáveis à diferentes tipos de conflito.
Os legisladores brasileiros apostaram na mediação, mas para que a aposta dê certo é preciso que a mediação não seja encarada apenas enquanto meio de desafogar o judiciário, mas como meio natural e adequado de solucionar conflitos.
E o que se vislumbra com toda a atenção dada ao instituto da mediação na Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça, no Novo Código de Processo Civil e na Lei 13.140/15, a Lei da Mediação é a intenção de mudança de paradigma. São os primeiros passos no sentido de mudança de uma perspectiva de cultura do litígio para um ideal de cultura de independência dos cidadãos enquanto pessoas capazes de solucionarem seus conflitos sem a intervenção judiciária e um incentivo à cultura de paz.
É fato que há ainda um longo caminho pela frente sendo necessária a disseminação do conceito, dos modelos e técnicas de mediação, a capacitação de mediadores bem como a conscientização de todos que eventualmente participarão deste movimento, advogados, juízes, promotores, defensores e toda a sociedade.
E, é fundamental reconhecer a importância do papel do advogado nesse movimento para que os mesmos possam se despir da postura combativa natural da profissão e perceber que no procedimento de mediação sua colaboração é essencial. Afinal, por mais que na mediação as partes tenham em suas mãos o poder de decidir acerca da melhor forma de resolver um conflito, é importante que as mesmas estejam devidamente informadas. E é o advogado o primeiro a ter contato com o cliente, sendo seu dever instruí-lo.
Portanto, é função do advogado assessorar seu cliente desde o momento da escolha da forma de resolução conflito aplicável ao caso concreto. Ou seja, cabe ao advogado averiguar se para o caso apresentado a mediação é o procedimento mais adequado. Optando-se pela mediação, caberá ao advogado instruir seu cliente a respeito de como funciona o procedimento, que tem caráter colaborativo e não-adversarial, explicando quais os objetivos da mediação, auxiliando na inserção de cláusulas de mediação em contratos, na escolha do mediador ou eventualmente da câmara de mediação para gestão do procedimento e ainda estabelecendo qual a melhor estratégia de negociação que nada tem a ver com a chamada barganha de propostas.
Desta forma, para que as partes busquem com a mediação resolver seus conflitos economizando tempo, recursos e fortalecendo suas relações, em que pese não haver previsão legal mandatória neste sentido, é imprescindível a atuação do bom advogado que, por meio da análise das circunstâncias e dos interesses do cliente, poderá auxiliar na formulação de propostas mais satisfatórias e juridicamente possíveis, potencializando as chances de êxito.
No que concerne à mediação judicial, imprescindível também que os servidores estejam capacitados para atuarem diretamente com a mediação, mas que mesmo aqueles que não estejam atuando tão diretamente também conheçam o instituto e saibam de seus benefícios para as partes e para a sociedade. Indiscutível também é a necessidade de se capacitar os juízes, desembargadores, defensores e promotores para que, também eles, possam auxiliar na disseminação deste novo paradigma de uma cultura de paz e de cidadãos conscientes e independentes, capazes de solucionar seus conflitos.
E este é o grande desafio do momento. Mediadores, juízes em sentido lato e demais servidores devem estar capacitados e aptos a disseminarem o instituto da mediação de maneira clara e sem distorções que podem ser tão prejudiciais ao importante momento de transição e mudança de paradigma, sendo ainda forçoso que os advogados se conscientizem de sua importância, tornando-se versáteis o suficiente para atuarem em demandas litigiosas e nos procedimentos de mediação. 

[2] AMARAL, Márcia Terezinha Gomes. O Direito de Acesso à Justiça e a Mediação. Rio de Janeiro: Lumem Juris, 2009.
Lívia Milhorato é advogada e Secretária de Procedimentos na Câmara de Arbitragem Empresarial – Brasil (Camarb).
Revista Consultor Jurídico, 24 de janeiro de 2017.

Modelo alternativo ao sistema prisional

OPINIÃO

MG criou modelo alternativo — e mais barato — ao sistema prisional brasileiro

O motim de presos ocorrido em Manaus em plena virada do ano fez com que fossem anunciados apressadamente inúmeros investimentos destinados à abertura de novas vagas no sistema prisional, especialmente no âmbito do sistema penitenciário federal.
Olvida-se, entretanto, que, por sua natureza, o sistema penitenciário federal é destinado a presos de alta periculosidade, vinculados profundamente a organizações criminosas, o que lhe confere população prisional irrisória frente ao contingente nacional (cerca de 2 mil face a um total de mais de 650 mil), marcada por características que, a despeito de graves, destoam da imensa maioria dos encarcerados.
Noutro plano, viceja em Minas Gerais modelo institucionalizado pelo Poder Judiciário e posteriormente estendido, com pleno êxito, a outros estados (Paraná, Maranhão e Espírito Santo, por exemplo) e até outros países (Itália e Portugal), caracterizado por uma participação ativa da comunidade no cumprimento da pena privativa de liberdade, assumindo papel de verdadeira parceira na reintegração social do apenado. Várias são as delegações, inclusive estrangeiras, que visitam o Tribunal de Justiça de Minas Gerais para conhecer a experiência e difundi-la.
A atuação é conduzida pelas associações de Proteção e Assistência aos Condenados (Apacs), que instituem centros de ressocialização habilitados ao recebimento de condenados, em quaisquer regimes prisionais, para cumprimento de suas penas, sob fiscalização da própria comunidade, e não de agentes estatais, mediante autorização judicial.
A sensação de que o cumprimento de pena nas Apacs seja mais brando é puramente equivocada. Justamente ao contrário, eis que o rigor e a disciplina costumam ser muito mais elevados do que no sistema comum, conquanto ambas sejam permeadas sempre pelas diretrizes de humanização do apenado, de observância a direitos e de resgate da cidadania.
Marcam, por exemplo, o rigor e a disciplina das Apacs a fixação de horário para que os detidos acordem e durmam, a exigência de que todos trabalhem e estudem e, principalmente, a condição de que ostentem comportamento irrepreensível entre si e em relação a todos os demais atores do centro de reintegração, sob pena de recolocação no sistema prisional comum.
A solução é substancialmente mais econômica, tendo em vista que o custo de criação de vagas nas Apacs é 27% menor, e os gastos com a manutenção mensal do encarcerado correspondem à metade dos recursos despendidos no sistema comum. Noutros termos, gastam-se menos recursos públicos tanto para criar a vaga quanto para mantê-la ocupada por um detento.
Além de mais barata, a solução representada pelas Apacs ostenta índices de eficiência muito superiores, sopesando a inexistência de registro de motim ou rebelião desde 1972, período de sua criação, sem embargo de ser o número de fugas inferior a 1%, além de atingir o percentual de 20% de reincidência contra 80% do sistema comum.
Não fossem esses motivos bastantes à ampla acolhida do método alternativo de cumprimento de pena, há ainda outro de importância ímpar. Em razão de assegurar o direito de estudo e de trabalho à integralidade dos detidos, o que nem sempre é viável no sistema comum, as Apacs viabilizam que o cumprimento da pena seja mais rápido, tendo em vista as remições decorrentes dessas atividades. É possível imaginar que, em 90 dias de encarceramento, um(a) reeducando(a) possa legitimamente abater cerca de 50 dias de sua pena. Assim, para fins de cumprimento da pena, 90 dias de cárcere correspondem a 140 dias de pena, o que reduz substancialmente os efeitos prejudiciais inerentes ao encarceramento e acelera a reintegração social do detido.
A relevância da iniciativa é tamanha que o Judiciário, o Executivo e todos os parceiros atuantes nas Apacs estão, apesar de todas as dificuldades econômicas vigentes, dedicados à construção de seis novos centros de reintegração para cumprimento de penas conforme o método Apac, além de já contarem com outras 20 comarcas habilitadas para o início de suas respectivas construções.
Conquanto inviável conceber as Apacs para a alocação de todos os presos do sistema prisional comum, até mesmo porque alguns apresentam perfil que exige encarceramento rigoroso e em condições bem restritas, inclusive no sistema penitenciário federal, certo é que a referida iniciativa é absolutamente mais eficiente e substancialmente mais barata no difícil processo de reintegração social dos detidos.
Tanto assim que, deve ser frisado, Minas Gerais não está imune a todos os problemas que marcam o sistema prisional nacional, tais como rebeliões, presença de facções e, principalmente, uma superlotação representativa. Ainda assim, estão sendo construídas soluções alternativas ao quadro incontornável do cárcere.
Como se pode perceber, talvez o foco de investimentos e de ações por parte do poder público em relação ao sistema prisional devesse ser outro.
Herbert José Almeida Carneiro é presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
Revista Consultor Jurídico, 24 de janeiro de 2017.