Resolução de ano novo para o Supremo: negociação da culpa
O ano novo reacendeu o debate sobre a questão penitenciária a partir de mortes, rebeliões e desmandos em presídios brasileiros. Para parcela da mídia e da academia, a origem do problema estaria na cultura punitiva dos magistrados brasileiros. Segundo O Globo juízes brasileiros insistem na privação da liberdade, contrastando a aplicação de somente 30% de penas alternativas no Brasil com o uso destas medidas em 79% dos casos da Inglaterra. Em ensaio, a professora Carolina Haber culpa os juízes de primeiro grau e “uma cultura punitiva que se apossou do nosso judiciário” pelo alto índice de presos provisórios no sistema penitenciário brasileiro.
Essa narrativa ignora uma variável decisiva: a inexistência em nosso direito da figura da negociação da culpa ou plea bargain. Aqui, em contraste com diversos países, Ministério Público e defesa não podem negociar a aplicação imediata de penas mínimas ou alternativas numa audiência de custódia. O altíssimo índice de penas alternativas na Inglaterra precisa ser compreendido à luz desta possibilidade. Caso tivéssemos previsão para negociação da culpa, juízes poderiam aplicar imediatamente a pena alternativa, na audiência de custódia, sem a necessidade de enviar um acusado primário para a penitenciária, onde ele estará sob a influência das facções criminosas.
Pense, por exemplo, nos roubos qualificados pelo emprego de arma de fogo, crime violento comum na justiça brasileira. Nestes casos, a prisão preventiva costuma ser considerada necessária para assegurar a produção da prova testemunhal e a instrução processual. As circunstâncias de cada caso devem ser analisadas, mas normalmente o réu é processado preso, para evitar a perda do depoimento da vítima intimidada com a soltura daquele que a ameaçou com arma de fogo. Por outro lado, ao final do processo, se o acusado for primário e o crime tentado, pode ser o caso de condená-lo e soltá-lo em sursis penal sem cumprimento da pena de prisão. Ora, seria muito melhor que fosse feita a negociação de culpa e, caso o acusado concordasse com a pena mínima ou alternativa, fosse condenado e solto na audiência de custódia. Assim, seria evitada a prisão provisória em diversos processos.
O resultado prático seria uma economia processual radical, com inúmeros processos criminais se encerrando no início. Além disso, as experiências de outros países revelam que recursos economizados podem ser destinados para profissionalização da justiça e produzir prova qualificada de processos mais complexos, o que melhora a prestação da atividade jurisdicional. Ademais, os julgamentos costumam ser mais céleres devido à racionalização que desestimula processos eternizados e desencoraja a criminalidade. O processo atenderia a suas finalidades e aos anseios sociais.
Certamente que a negociação da culpa não pode ser vista como uma panacéia, que irá solucionar todos os males do sistema penitenciário. Na prática, seus efeitos benéficos podem inclusive ser neutralizados, caso penas sejam desproporcionalmente aumentadas, poderes de supervisão judicial sejam limitados e uma defesa técnica qualificada não seja assegurada, como revela a experiência estadunidense. Contudo, na Inglaterra e demais países, a negociação de culpa gerou redução do encarceramento, com o efetivo desconto na quantidade e na qualidade da pena de réus.
Em discurso de posse no ano passado, Cármen Lúcia enfatizou a necessidade de atender aos jurisdicionados através da eliminação de processos judiciais eternizados e do aumento da efetividade do poder judiciário. Para ela não bastaria a reforma, mas sim uma verdadeira transformação da justiça para o cidadão. Até recentemente reformas processuais eram feitas exclusivamente através de lei. Contudo, a audiência de custódia foi implantada através de uma resolução do CNJ. Talvez, a adoção do plea bargain pudesse seguir o mesmo modelo e ser feita através de uma reforma na Resolução n. 213/2015, que disciplina o procedimento da audiência de custódia. Até mesmo porque a principal mudança seria interpretativa, de substituir o princípio da obrigatoriedade da ação penal pela discricionariedade regrada. Por cautela, eventual resolução do CNJ poderia ser submetida ao plenário do Supremo. Nos Estados Unidos, país de origem do instituto, o plea bargain se iniciou pela prática dos tribunais sem que houvesse necessidade de lei específica autorizando.
Atualmente, em países como Estados Unidos, Inglaterra e Argentina, a imensa maioria dos processos criminais é resolvida sumariamente desta forma. No Brasil, ao contrário, os juízes não podem aplicar imediatamente penas mínimas ou alternativas para encerrar o processo sumariamente. Uma exceção ocorre nos casos de delação premiada, que tem beneficiado com descontos de pena criminosos de colarinho branco. Ora, se executivos da Odebrecht podem negociar a culpa, por que esta possibilidade não é admitida aos demais réus nos degraus inferiores da hierarquia social brasileira?
Não se pode afirmar, contudo, que a questão seja cultural, se falta o instrumento processual que permitiria modular a pena com maior flexibilidade e de forma negociada. Soltar e inocentar a todos indiscriminadamente também não seria o caminho adequado para reduzir encarceramento e criminalidade, tal como nos ensina o exemplo da Inglaterra. Diante da grave crise penitenciária de nosso país, uma excelente resolução de ano novo para a Presidente do Supremo seria adotar a negociação da culpa.
Pedro Fortes - Professor da FGV Direito Rio
(Transcrito do site JOTA).
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