quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Processo penal de arrepiar

Desde os tempos do rei Hamurabi, há 3.800 anos, os códigos penais são voltados a um único protagonista: o culpado. A partir do século 20, mudou muito a forma com que as sociedades civilizadas encaram o processo -mais como garantidor de direitos de um possível inocente do que legitimador de uma condenação. O Brasil, contudo, ainda reluta em aderir a tais práticas penais modernas, de bases democráticas.

Os cidadãos, infelizmente, só se dão conta das falhas judiciais quando viram réus; aí descobrem a dificuldade que é provar sua inocência.
Quando o réu tem condições de contratar bons advogados, a chance de erro é menor, ainda que não inexistente. Mas, de fato, o problema ganha contornos preocupantes quando se julga o freguês usual da Justiça criminal: o pobre.
Médicos erram, engenheiros erram, jogadores de futebol erram, pilotos de avião erram. Não poderia ser diferente com a estrutura do Estado montada para combater o crime, que também erra. Quando o volume de erros é alto demais, porém, fica difícil aceitar a tese de falha humana, de exceção. No Brasil, infelizmente, o erro judiciário adquire contornos de tragédia social.
Identificação inexata por testemunha, falsa acusação, confissão inverídica ou má conduta de autoridade -os motivos variam. A consequência, contudo, é sempre a mesma: baixíssimos índices de certeza sobre a culpa.

Condenado, mas sem uma confirmação insuspeita de seu delito, o preso é abduzido pelos companheiros de cela mais antigos, convocado a engrossar as fileiras do crime organizado que domina o sistema prisional. Idêntico resultado ocorre quando réus primários acusados de crimes menos graves são obrigados a conviver com presos perigosos.

Seria ingênuo acreditar que um problema complexo como esse poderia ter soluções simples ou de aplicação imediata. Mas é desonesto não tentar combatê-lo, principalmente quando se sabe que aflige a camada mais carente da população.
Uma maneira eficaz de começar a discutir o assunto é jogar luz sobre o coração dos processos criminais, ou seja, sobre as provas. A Secretaria Nacional de Segurança Pública, órgão do Ministério da Justiça, preparou há alguns anos um diagnóstico sobre a perícia criminal no Brasil.

O resultado é de arrepiar. Seis Estados não possuem laboratório de DNA. Em quatro, só há Instituto de Medicina Legal na capital. Em nove, não há câmara de refrigeração para guardar os corpos.
Existem Estados em que unidades de medicina legal não possuem mesa de necropsia, aparelho de raio-X, mesas ginecológicas, macas ou mesmo máquinas fotográficas.
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Não alcançaremos resultados positivos nessa área enquanto não se aperfeiçoarem as técnicas de investigação e a qualidade das evidências levadas a julgamento.
Confiança absoluta e sem reservas no depoimento de policiais (a despeito de ainda termos uma polícia longe dos padrões exigidos pelas convenções internacionais), confissões obtidas na polícia e não confirmadas em juízo, testemunhos de ouvir dizer e reconhecimentos pessoais e fotográficos (de comprovada falibilidade e já abandonados em países civilizados) ainda são as provas mais usadas na Justiça criminal.

No júri, onde são julgados os crimes de homicídio, raramente se vê a realização de perícias além do exame cadavérico -ou, quando muito, um exame no local do crime, que pouco ou nada ajuda a esclarecer os fatos. Mesmo quando alguma perícia é solicitada, poucos são os cuidados com a preservação do local ou com a integridade da prova.

Um sistema judicial que não inspira confiança, no qual a possibilidade de condenação acomete tanto o culpado quanto o inocente, não está apto a inibir o crime.
Isso talvez ajude a explicar por que, apesar de ostentar uma das maiores taxas de encarceramento do mundo, o Brasil tem tanta dificuldade em diminuir seus índices de criminalidade.
FÁBIO TOFIC SIMANTOB, advogado criminalista, é presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD)
Transcrito do Jornal Folha de São Paulo, de 29 de setembro de 2016

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

STJ divulga 15 teses sobre apelação e recurso em sentido estrito

O Superior Tribunal de Justiça disponibilizou 15 teses sobre apelação e recurso em sentido estrito. O conjunto de entendimento está disponível na edição 66 do Jurisprudência em Teses, ferramenta de consulta à jurisprudência do tribunal. 
A publicação traz um conjunto de entendimentos sobre o assunto e, abaixo do enunciado referente a cada tese, são relacionados precedentes do tribunal.
Entre os destaques da nova edição está a tese de que “o efeito devolutivo amplo da apelação criminal autoriza o tribunal de origem a conhecer de matéria não ventilada nas razões recursais, desde que não agrave a situação do condenado”.
Também foram selecionados acórdãos nos quais o tribunal aplicou o entendimento de que “não cabe mandado de segurança para conferir efeito suspensivo ativo a recurso em sentido estrito interposto contra decisão que concede liberdade provisória ao acusado”. 
Veja as teses divulgadas:
Jurisprudência em Teses - Apelação e recurso em sentido estrito
1) O efeito devolutivo amplo da apelação criminal autoriza o Tribunal de origem a conhecer de matéria não ventilada nas razões recursais, desde que não agrave a situação do condenado.
2) A apresentação extemporânea das razões não impede o conhecimento do recurso de apelação tempestivamente interposto.
3) O conhecimento de recurso de apelação do réu independe de sua prisão. (Súmula 347/STJ)
4) Verificada a inércia do advogado constituído para apresentação das razões do apelo criminal, o réu deve ser intimado para nomear novo patrono, antes que se proceda à indicação de defensor para o exercício do contraditório.
5) Não cabe mandado de segurança para conferir efeito suspensivo ativo a recurso em sentido estrito interposto contra decisão que concede liberdade provisória ao acusado.
6) O efeito devolutivo da apelação contra decisões do Júri é adstrito aos fundamentos da sua interposição. (Súmula 713/STF)
7) A ausência de contrarrazões ao recurso em sentido estrito interposto contra decisão que rejeita a denúncia enseja nulidade absoluta do processo desde o julgamento pelo Tribunal de origem.
8) Aplica-se o princípio da fungibilidade à apelação interposta quando cabível o recurso em sentido estrito, desde que demonstrada a ausência de má-fé, de erro grosseiro, bem como a tempestividade do recurso.
9) A decisão do juiz singular que encaminha recurso em sentido estrito sem antes proceder ao juízo de retratação é mera irregularidade e não enseja nulidade absoluta.
10) O adiamento do julgamento da apelação para a sessão subsequente não exige nova intimação da defesa.
11) Inexiste nulidade no julgamento da apelação ou do recurso em sentido estrito quando o voto de Desembargador impedido não interferir no resultado final.
12) O acórdão que julga recurso em sentido estrito deve ser atacado por meio de recurso especial, configurando erro grosseiro a interposição de recurso ordinário em habeas corpus.
13) O julgamento de apelação por órgão fracionário de tribunal composto majoritariamente por juízes convocados não viola o princípio constitucional do juiz natural.
14) É nulo o julgamento da apelação se, após a manifestação nos autos da renúncia do único defensor, o réu não foi previamente intimado para constituir outro. (Súmula 708/STF)
15) A renúncia do réu ao direito de apelação, manifestada sem a assistência do defensor, não impede o conhecimento da apelação por este interposta. (Súmula 705/STF).

Informações da Assessoria de Imprensa do STJ

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Divergência sobre limites da Lava Jato

"Lava jato" não dá aval para juiz descumprir lei, diz desembargador do TRF-4

É no mínimo negligente o juiz que torna públicas conversas captadas entre investigados, inclusive envolvendo pessoas com prerrogativa de foro, pois o interesse público e a tentativa de evitar obstrução à Justiça não são motivos suficientes para permitir esse tipo de comportamento. Assim entendeu o desembargador federal Rogério Favreto, o único membro da Corte Especial do Tribunal Regional Federal da 4ª Região a votar pela abertura de processo disciplinar contra o juiz Sergio Moro.
Na quinta-feira (22/9), o colegiado considerou que a operação "lava jato" não precisa seguir as regras processuais comuns, por enfrentar fatos novos ao Direito. Por 13 votos a 1, a maioria considerou "incensurável" a conduta de Moro por ter divulgado conversa entre os ex-presidentes Dilma Rousseff e Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Segundo o acórdão, as investigações apresentam “situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico, destinado aos casos comuns”.
Ao assinar o voto divergente, Favreto declarou que "o Poder Judiciário deve deferência aos dispositivos legais e constitucionais, sobretudo naquilo em que consagram direitos e garantias fundamentais." "Sua não observância em domínio tão delicado como o Direito Penal, evocando a teoria do estado de exceção, pode ser temerária se feita por magistrado sem os mesmos compromissos democráticos do eminente relator e dos demais membros desta corte", escreveu.
Para ele, Moro "foi no mínimo negligente quanto às consequências político­-sociais de sua decisão". Favreto diz que o processo disciplinar seria necessário para analisar os atos do juiz, diante da "imparcialidade duvidosa do magistrado", e porque divulgar o grampo indica afronta às previsões do Estatuto da Magistratura e do Código de Ética da Magistratura.

Para Favreto, é "temerário" dar carta branca para o Judiciário violar leis.
U.Dettmar

Enquanto a maioria da Corte Especial disse que a “orientação clara e segura a respeito dos limites do sigilo das comunicações telefônicas” só surgiu depois que o Supremo Tribunal Federal determinou a retirada das interceptações entre Lula e Dilma, o desembargador disse que a lei "veda expressamente a divulgação do teor de diálogos telefônicos interceptados".
"Ante o regramento explícito, não cabe evocar o interesse público ou a prevenção de obstrução à justiça como fundamentos para publicizar conversas captadas", diz Favreto.
Situação inédita
O relator, desembargador federal Rômulo Pizzolatti, não viu indício de infração disciplinar. “É sabido que os processos e investigações criminais decorrentes da chamada operação 'lava jato', sob a direção do magistrado representado, constituem caso inédito (único, excepcional) no Direito brasileiro. Em tais condições, neles haverá situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico, destinado aos casos comuns.”
Já Favreto vê descumprimento à Resolução 59 do Conselho Nacional de Justiça. "Não será permitido ao magistrado e ao servidor fornecer quaisquer informações, direta ou indiretamente, a terceiros ou a órgão de comunicação social, de elementos contidos em processos ou inquéritos sigilosos, sob pena de legislação nos termos da legislação pertinente", determina o dispositivo.
O desembargador também ressaltou que o levantamento do sigilo dos áudios, alguns obtidos depois de uma decisão do próprio Moro que interrompia as gravações, foi feito sem o devido contraditório e teve "consequências sérias no cenário político brasileiro". "Cabe acentuar, ainda, que o levantamento do sigilo contemplou conversas que não guardam nenhuma relação com a investigação criminal, expondo à execração pública não apenas o investigado, mas também terceiras pessoas."

Teori disse que Moro não poderia ter levantado sigilo de interceptações que incluíram a então presidente Dilma.
Nelson Jr./SCO/STF

Favreto também cita como motivo para divergir do resto da corte a decisão do Supremo, que considerou ilegal o levantamento do sigilo. À época, o relator do caso na corte, ministro Teori Zavascki citou a incompetência do juízo da 13ª Vara Federal para analisar o material por haver ligação envolvendo a então presidente da República Dilma Rousseff.
"A divulgação pública das conversações telefônicas interceptadas, nas circunstâncias em que ocorreu, comprometeu o direito fundamental à garantia de sigilo, que tem assento constitucional [...] A lei de regência (Lei 9.269/1996), além de vedar expressamente a divulgação de qualquer conversação interceptada (art. 8º), determina a inutilização das gravações que não interessem à investigação criminal (art. 9º). Não há como conceber, portanto, a divulgação pública das conversações do modo como se operou, especialmente daquelas que sequer têm relação com o objeto da investigação criminal", argumentou Teori.
O desembargador divergente alegou que fatores externos ao processo podem ter influenciado na decisão de Moro, como "índole política". Por isso ele considerou necessário abrir procedimento disciplinar.
Rogério Favreto reconheceu a importância das investigações sobre os desvios em contratos na Petrobras e a dedicação de Moro sobre o caso, mas ressaltou que fazer um bom trabalho não imuniza ninguém. "Não pode o Poder Judiciário assumir postura persecutória. O Poder Judiciário 'não é sócio do Ministério Público e, muito menos, membro da Polícia Federal', bem anotou o Ministro Gilmar Mendes no precedente citado".
Justificativa
Em resposta ao Supremo, Moro havia declarado que o ato de divulgar as conversas poderia “ser considerado incorreto”, mas disse que em nenhum momento teve objetivo de “gerar fato político-partidário, polêmicas ou conflitos, algo estranho à função jurisdicional”.
A intenção foi simplesmente, de acordo com o juiz, atender pedido do Ministério Público Federal e dar publicidade ao processo e “especialmente a condutas relevantes do ponto de vista jurídico e criminal do investigado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva”. Numa ligação, Dilma disse que enviaria um “termo de posse” para o ex-presidente, que deveria ser usado “em caso de necessidade”.
O petista foi efetivamente nomeado chefe da Casa Civil dias depois, mas a posse foi suspensa pelo ministro Gilmar Mendes, do STF. Para ele, a medida tinha como objetivo apenas fazer com que eventual denúncia contra Lula fosse julgada pelo Supremo.
Moro também já autorizou o grampo do escritório de Roberto Teixeira, advogado do ex-presidente, que conta com 25 profissionais, alegando que era preciso confirmar o nível de relação entre os dois, apesar de Teixeira advogar para Lula desde a década de 1980.
Depois, ele argumentou que soube do episódio apenas depois que a ConJur noticiou o fato. O juiz disse que a informação “não foi percebida pelo Juízo ou pela Secretaria do Juízo até as referidas notícias extravagantes”.
Revista Consultor Jurídico, 22 de setembro de 2016.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

STF: Presunção de culpa X Presunção de inocência

STF quer fazer da Praça dos Três Poderes uma praça só sua

David  Teixeira de Azevedo

No relacionamento entre o cidadão e o Estado não há meio-termo: ou prevalece a presunção de culpa ou prevalece a presunção de inocência.Tertium non datur. A presunção de culpabilidade é característica de um regime totalitário. A presunção de inocência de um regime democrático. No regime de cariz totalitário, o processo não passa de um instrumento meramente técnico, politicamente comprometido com os valores de estado, cujo objetivo é o oferecimento de uma resposta estatal qualquer, sem compromisso com a justiça material mas vinculado a razões de estado.
Foi assim no regime nacional-socialista alemão e fascista italiano, repercutidos aqui no regime totalitário de Vargas de 10 de novembro de 1937, que já produzira a excrescência jurídica da criação do Tribunal de Segurança Nacional e gerou o Decreto-lei 88, de 20 de dezembro de 1937. Este decreto vetou o efeito suspensivo da apelação criminal (artigo 8º), ao tempo em que criou a figura do recurso  de ofício para decisões absolutórias (artigo 8º, parágrafo único) e estatuiu a inversão do ônus da prova (artigo 20, item 5).
Um Judiciário descomprometido com os valores da pessoa humana e descompromissado com a cidadania restringe de modo crescente os direitos fundamentais, eclipsa a ampla defesa e o contraditório, e trabalha na retirada do sistema dos recursos previstos para revisão de suas decisões.
Opera um raciocínio meramente burocrático, orientado por uma filosofia pragmático-utilitária; isto é, prestigiam-se números e estatísticas, a eficiência formal do sistema sem indagação de seu conteúdo de Justiça. 
Por suposto, os mecanismos para correção do erro judiciário estariam dentro do próprio sistema: revisão criminal. Por isso, pouco importa a injustiça da decisão, tendo-se por secundário ou desimportante o cidadão ver-se submetido a um rigor punitivo injusto e ilegal, sem merecimento, num arremedo de jurisdição em que distante  o devido processo legal. 
O processo degenera-se, deste modo, num instrumento para demonstração à sociedade da efetividade do sistema punitivo, cujo conhecido é previsível mau funcionamento resolve-se  em perdas e danos. O homem é assim quantificado, reificado, tornado coisa numa ideia de racionalidade instrumental. Vale o funcionamento do sistema. Seu equilíbrio homeostático, ou, visto de outra forma, o que vale é a reafirmação das expectativas normativas contrafáticas, a simples validez e equilíbrio do ordenamento jurídico, ainda que a custo da personalidade humana, ente considerado "inimigo".
No duelo "eficiência versus garantias", assiste-se nesta última década à crescente relativização dos valores da pessoa humana e à diluição do cidadão no todo social. Percebe-se um olhar favorecido para o funcionamento do sistema punitivo e uma subserviência do Judiciário às demandas sociais afetivas de punição. 
Aliás, o Supremo Tribunal Federal, em cuja frente está o granito da Justiça de Alfredo Ceschiatti, quer fazer da Praça dos Três Poderes uma praça só sua. Assim, pretende a prerrogativa não só de julgar mas também de legislar. Neste último aspecto, não hesita mesmo em fazer-se poder constituinte, e poder constituinte originário, para alterar cláusulas pétreas da Constituição e reescrever o texto constitucional a seu gosto.
O princípio do devido processo legal, da presunção de inocência, de par com a ideia da ampla defesa expressa nos recursos previstos no sistema não permitem um trabalho "hermenêutico" de perversão do texto legal e violação de seu espírito normativo manifesto.
Não é tolerável de um só golpe abater o princípio do devido processo legal (artigo 5º, LIV, da CF), da ampla defesa (artigo 5º, LV, da CF) e da presunção de inocência (artigo 5º, LVII, da CF).
Não pode o guardião da Constituição tornar-se seu algoz. De soldado avançado na luta das garantias democráticas, desertar e engrossar o exército poderoso daqueles que querem abater o cidadão em seus direitos fundamentais, negá-lo como pessoa humana, ratio e telos da constituição do estado; um ser tomado de invencível é insubstituível dignidade.
Nao se deve transigir com princípios constitucionais, normas estruturantes do sistema normativo, muito menos encaminhar-se um raciocínio de ponderação de princípios porque tais princípios, aqui, agasalham valores de diferentes natureza e densidade.
Espera-se que a Suprema Corte retome sua histórica proteção incondicional da pessoa humana, fim, não meio, ser intrinsecamente valente e não instrumento de satisfação de demandas emocionais, pulsionais e por isso irracionais de punição.
David Teixeira de Azevedo é advogado e professor de Direito Penal da USP.
Revista Consultor Jurídico, 20 de setembro de 2.016,

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Desjudicialização dos Conflitos

Suíça e Alemanha mostram eficiência de modelo de ombudsman bancário

Por Pedro Canário

Se o Judiciário brasileiro já é um dos maiores do mundo em quantidade de processos em trâmite, as causas envolvendo bancos e contratos bancários têm grande papel nisso. De acordo com levantamento da professora Maria Teresa Sadek, da USP, o Brasil hoje tem 106 milhões de ações em andamento, das quais 35% dizem respeito a bancos. E cerca de 10% dos casos novos são bancários.
Por isso, especialistas já estão quase em consenso de que a solução para esse problema não pode ser judicial. Os conflitos entre bancos e consumidores têm de ser resolvidos fora dos tribunais, sem acionar um juiz para impor uma solução. O caminho percorrido por Alemanha e Suíça, dois dos mercados bancários mais desenvolvidos do mundo, foi a instituição de sistemas de mediação entre consumidores e bancos. Nesses países, os mediadores são chamados de ombudsman.
De acordo com o professor Peter Sester, da Universidade Saint-Gallen, na Suíça, o sistema funciona muito bem em ambos os países. Nos dois sistemas, o ombudsman é uma ferramenta consensual: o consumidor, depois de ter uma reclamação formal não resolvida pelo banco, leva o seu caso aoombudsman, que propõe uma solução.
Tanto o banco quanto o cliente têm de concordar. Caso contrário, nada feito. Em ambos os países, o sistema é gratuito para o consumidor. Quem o mantém são os bancos, por meio de suas associações (a federação dos bancos, no caso alemão, e a associação nacional de bancos, no caso suíço).
E nos dois países, os ombudsman são pessoas não relacionadas aos bancos. Na Alemanha, costumam ser juízes aposentados. Na Suíça, advogados, professores de Direito ou economistas, desde que não tenha relações com o mercado financeiro e nem com entidades de defesa do consumidor.
“O modelo foi criado para essa grande massa de casos que não têm um valor financeiro muito grande e nem discutem questões juridicamente complexas”, explica o professor, em entrevista exclusiva à ConJur. “É um modelo que de certa forma protege a Justiça desses casos. Ao mesmo tempo, ele garante o funcionamento e a eficiência do Judiciário e fornece um mecanismo mais barato para resolver conflitos.”
O professor Peter Sester esteve no Brasil para apresentar seus estudos noSeminário Ombudsman como Forma de Desjudicialização dos Conflitos na Relação de Consumo, promovido pelo Superior Tribunal de Justiça e pela FGV Projetos. O evento foi organizado pela professora Juliana Loss, da FGV Direito Rio, e pelo ministro Luís Felipe Salomão, do STJ.
Caso de sucesso
O modelo foi criado na Suíça em 1993, conta o professor. Segundo ele, 13 mil casos foram levados ao ombudsman naquele país, dos quais, 96% resultaram em acordo, uma média que se mantém. Na Alemanha, a cifra cai para 40%. Isso porque, segundo Sester, a Suíça não tem a mesma tradição de litigância que a Alemanha. Prova disso é que 46% dos casos decididos por mediação na Suíça duram menos de um mês e 44% duram até seis meses. Na Alemanha, a média é de seis meses.

Justiça cara
Uma das razões de o ombudsman ter funcionado nos dois países, explica Sester, é o custo de se processar alguém e o risco que se corre ao entrar na Justiça. No tribunal de Zurique, por exemplo, em causas de até US$ 1 mil, as custas processuais chegam a 25% do valor da causa. Nas ações que discutem US$ 5 mil, as custas equivalem a 16% do custo total do processo.

De acordo com os dados apresentados pelo professor em sua palestra, só passa a valer a pena ir à Justiça em causas caras ou juridicamente realmente relevantes. Por exemplo, é só a partir dos US$ 300 mil que as custas processuais caem a 2% do valor da causa.
Isso se reflete nos valores em discussão nos casos levados aos ombudsman. Na Suíça, 60% das reclamações envolvem até US$ 10 mil. Só 4% passam dos US$ 500 mil. “Na Suíça, existe um incentivo para não ir à Justiça caso o valor da causa seja baixo”, comenta o professor.
Custo do advogado
Somado a isso, ainda há os honorários advocatícios. Sester critica o modelo brasileiro, que permite a advogados assinar contratos de honorários com cláusula de sucesso, em que o cliente só paga se ganhar a causa. Na opinião do professor, isso permite que escritórios se especializem em convencer clientes a ajuizar uma ação.

Tanto na Alemanha quanto na Suíça esses contratos são proibidos. O artigo 19 do Código de Ética da Associação dos Advogados da Suíça permite celebrar contratos com honorários fixos, mas proíbe “acordo de participação nos rendimentos decorrentes do processo com resultado favorável ao cliente como substituto dos honorários”. Na Alemanha, a proibição está na lei que trata da remuneração dos advogados.
“Ao contrário dos Estados Unidos ou do Brasil, o cliente é quem corre o risco de arcar com os honorários advocatícios no caso de um resultado desfavorável”, conclui Sester. E em Zurique, os advogados costumam cobrar entre US$ 250 e US$ 850 por hora, segundo o professor.
Sem advogado
Outra razão para o sucesso do ombudsman nos casos alemão e suíço é que ambos os sistemas proíbem a participação de advogados nas negociações. “Com advogados é muito mais difícil chegar a um acordo, porque eles têm os interesses deles. E como é uma negociação, uma mediação, a ideia é falar com as pessoas para ajudá-las a resolver seus problemas”, explica Sester.

E aí também está um dos pontos que “devem dar problema” caso o ombudsman bancário seja introduzido no Brasil. “Na minha opinião, chegar para uma negociação com dois advogados diminui drasticamente a possibilidade de se chegar a um acordo, porque advogados aumentam o confronto.”
Caso brasileiro
No Brasil ainda não há nada parecido com o ombudsman bancário, embora o ministro Sidnei Beneti, aposentado do STJ em 2014, tenha organizado alguns eventos para tratar do tema enquanto estava na ativa. O evento da FGV produziu uma proposta de autorregulação que deve ser levada aos bancos em breve.

Por enquanto, o máximo que o mercado bancário tem são as ouvidorias, que são praticamente desconhecidas do consumidor, conforme conta o procurador-chefe do Banco Central em São Paulo, César Camargo. Segundo ele, juntando a ouvidoria do BC com os Procons do país, são registradas cerca de 100 mil reclamações por ano, que são levadas aos bancos. “É um número quase irrelevante”, comenta.
E se forem considerados os dados da professora Sadek, de que 10% dos processos novos são bancários, “a ouvidoria não contribui para a redução de conflitos e de judicialização”. No STJ, o problema é semelhante. Segundo o ministro Ricardo Vllas Bôas Cueva, um terço de todo o volume de processos da 2ª Seção, que trata de Direito Privado, diz respeito a bancos.
Durante sua apresentação, ele mostrou alguns modelos de autorregulação para resolução extrajudicial de litígios. Camargo elogiou especialmente o modelo italiano, no qual levar uma queixa ao ombudsman é uma etapa anterior obrigatória ao processo judicial. “Embora tenhamos uma cláusula constitucional que diz que a nada será negada a apreciação do Poder Judiciário, não vejo problemas com esse modelo. Poderíamos adotar esse caminho aqui”, diz.
Revista Consultor Jurídico, 17 de setembro de 2017.

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Carta de Aragão para Janot

CARTA ABERTA

De Aragão para Janot: "Investigados não são troféus a serem expostos"

A atuação do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, não condiz com o que ele pregava antes de chegar ao cargo. Se antes ele era crítico da postura adotada pelo Ministério Público Federal durante a ação penal 470, o processo do mensalão, ele repete a fórmula de crucificar acusados na operação “lava jato”. A afirmação é  feita pelo ex-ministro da Justiça e colega de Janot no MPF, Eugênio Aragão.

"Não foi uma só vez que o senhor contou que seus antecessores sabiam da inocência de Genoíno", acusa Eugênio Aragão.
Reprodução

Em carta aberta ao seu “ex-amigo”, publicada pelo blog do jornalista Marcelo Auler, Aragão diz que antes de subir ao cargo máximo do MPF, Janot se indignava com “injustiças” cometidas, por exemplo, com o ex-presidente do PT José Genoino. “Não foi uma só vez que o senhor contou que seus antecessores sabiam da inocência de Genoíno, mas não o retiraram da ação penal porque colocaria em risco o castelo teórico do ‘mensalão’.” No entanto, depois de chegar ao cargo no qual ocupa, Janot passou a “monologar” com sua equipe “de inquisidores ministeriais ferozes”.
E Aragão alerta para os problemas na condução da "lava jato": "Investigados e réus não são troféus a serem expostos e não são 'meliantes' a serem conduzidos pelas ruas da vila 'de baraço e pregão' (apud Livro V das Ordenações Filipinas). São cidadãos, com defeitos e qualidades, que erraram ao ultrapassar os limites do permissivo legal. E nem por isso deixo de respeitá-los."

A carta traz diversas revelações sobre a indicação de Rodrigo Janot a PGR.
Fellipe Sampaio/SCO/STF

O ex-ministro conta como ele e Janot lutaram juntos para que ele ocupasse a PGR, em campanhas contra os ex-procuradores-gerais. No entanto, reclama, depois de atingido o objetivo, viu o colega mudar de lado. “Tinha-o como um amigo, companheiro, camarada. Amigo não trai, amigo é crítico sem machucar, amigo é solidário e sempre tem um ouvido para as angústias do outro”, desabafa.
A carta traz diversas revelações sobre a indicação do PGR: “Quando ouvimos boatos de que a mensagem ao Senado, com a indicação da doutora Ela [Wiecko, que estava na disputa pelo cargo], estava já na Casa Civil para ser assinada, imediatamente agi, procurando o ministro Ricardo Lewandowski, que, após recebê-lo, contatou a presidenta para recomendar seu nome. No dia em que o Senhor foi chamado para conversar com a presidenta, fui consultado pelo ministro da Justiça e pelo advogado-geral da União, pedindo que confirmasse, ou não, que seu nome era o melhor. Confirmei, em ambos os contatos telefônicos”.
As críticas de Aragão ao MP têm sido recorrentes. Em recente entrevista àConJur, ele afirmou que o órgão se ideologizou e se apaixonou pelo fetiche criminalista, relegando muitas de suas funções mais preciosas em nome de um fortalecimento da perseguição penal. (Clique aqui para ler a entrevista)
Leia a carta (com os grifos de sua publicação original):

Sobre a honestidade de quem critica a Lava Jato
Eugênio Aragão
“Praecepta iuris sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique  tribuere” (Ulpiano)
“Os preceitos do direitos são estes: viver honestamente, não lesar a outrem, dar a cada um o que é seu.” (Ulpiano)
“Disse o Senhor Procurador-Geral da República por ocasião da posse da nova presidente do STF, Ministra Carmen Lúcia, que se tem “observado diuturnamente um trabalho desonesto de desconstrução da imagem de investigadores e de juízes. Atos midiáticos buscam ainda conspurcar o trabalho sério e isento desenvolvido nas investigações da Lava Jato”.
Visto a carapuça, Doutor Rodrigo Janot. E lhe respondo publicamente, por ser esse o único meio que me resta para defender a honestidade de meu trabalho, posta em dúvida, também publicamente, pelo Senhor, numa ocasião solene, na qual jamais alcançaria o direito de resposta.
O Senhor sabe o quanto tenho sido ostensivamente crítico da forma de agir estrambólica dos agentes do Estado, perceptível, em maior grau, desde a Ação Penal 470, sob a batuta freisleriana do Ministro Joaquim Barbosa.
Aliás, antes de ser procurador-geral, o Senhor compartilhava comigo, em várias conversas pessoais, minha crítica, dirigida, até mesmo, ao Procurador-Geral da República de então, Doutor Gurgel. Lembro-me bem de suas opiniões sobre a falta de noção de oportunidade de Sua Excelência, quando denunciou o Senador Renan Calheiros em plena campanha à presidência do Senado.
Lembro-me, também, de nossa inconformação solidária contra as injustiças perpetradas na Ação Penal 470 contra NOSSO (grifo do original) amigo José Genoíno.
“Não foi uma só vez que o Senhor contou que seus antecessores sabiam da inocência de Genoíno, mas não o retiraram da ação penal porque colocaria em risco o castelo teórico do “Mensalão”, como empreitada de uma quadrilha, da qual esse nosso amigo tinha que fazer parte, para completar o número”.
Por sinal, conheci José Genoíno em seu apartamento, na Asa Sul, quando o Senhor e eu dirigíamos em parceria a Escola Superior do Ministério Público da União. Àquela ocasião, já era investigado, senão denunciado, por Doutor Antônio Fernando.
Admirei a sua coragem, Doutor Rodrigo, de não se deixar intimidar pelos arroubos midiáticos e jurisdicionais vindas do Excelso Sodalício. Com José Genoíno travamos interessantes debates sobre o futuro do País, sobre a necessidade de construção de um pensamento estratégico com a parceria do ministério público.
Tornou-se, esse político, então, mais do que um parceiro, um amigo, digno de ser recebido reiteradamente em seu lar, para se deliciar com sua arte culinária. De minha parte, como não sou tão bom cozinheiro quanto o Senhor, preferia encontrar, com frequência, Genoíno, com muito gosto e admiração pela pessoa simples e reta que se me revelava cada vez mais, no restaurante árabe do Hotel das Nações, onde ele se hospedava. Era nosso point.
Cá para nós, Doutor Rodrigo Janot, o Senhor jamais poderia se surpreender com meu modo de pensar e de agir, para chamá-lo de desonesto. O Senhor me conhece há alguns anos e até me confere o irônico apelido de “Arengão”, por saber que não fujo ao conflito quando pressinto injustiça no ar. Compartilhei esse pressentimento de injustiça com o Senhor, já quando era procurador-geral e eu seu vice, no Tribunal Superior Eleitoral.
Compartilhei meus receios sobre os desastrosos efeitos da Lava Jato sobre a economia do País e sobre a destruição inevitável de setores estratégicos que detinham insubstituível ativo tecnológico para o desenvolvimento do Brasil. Da última vez que o abordei sobre esse assunto, em sua casa, o Senhor desqualificou qualquer esforço para salvar a indústria da construção civil, sugerindo-me que não deveria me meter nisso, porque a Lava Jato era “muito maior” do que nós.
Mas continuemos no flash-back.
Tinha-o como um amigo, companheiro, camarada. Amigo não trai, amigo é crítico sem machucar, amigo é solidário e sempre tem um ouvido para as angústias do outro.
Lutamos juntos, em 2009, para que Lula indicasse Wagner Gonçalves procurador-geral, cada um com seus meios. Os meus eram os contatos sólidos que tinha no governo pelo meu modo de pensar, muito próximo ao projeto nacional que se desenvolvia e que fui conhecendo em profundidade quando coordenador da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão da PGR, que cuidava da defesa do patrimônio público.
Ficamos frustrados quando, de última hora, Lula, seguindo conselhos equivocados, decidiu reconduzir o Doutor Antônio Fernando.
Em 2011, tentamos de novo, desta vez com sua candidatura contra Gurgel para PGR.
Na verdade, sabíamos que se tratava apenas de um laboratório de ensaio, pois, com o clamor público induzido pelos arroubos da mídia e os chiliques televisivos do relator da Ação Penal 470, poucas seriam as chances de, agora Dilma, deixar de indicar o Doutor Gurgel, candidato de Antônio Fernando, ao cargo de procurador-geral.
Ainda assim, levei a missão a sério. Fui atrás de meus contatos no Planalto, defendi seu nome com todo meu ardor e consegui, até, convencer alguns, mas não suficientes para virar o jogo.
Mas, vamos em frente.
Em 2013, quando o Senhor se encontrava meio que no ostracismo funcional porque ousara concorrer com o Doutor Gurgel, disse-me que voltaria a concorrer para PGR e, desta vez, para valer.
Era, eu, Corregedor-Geral do MPF e, com muito cuidado, me meti na empreitada. Procurei o Doutor Luiz Carlos Sigmaringa Seixas, meu amigo-irmão há quase trinta anos, e pedi seu apoio a sua causa.
Procurei conhecidos do PT em São Paulo, conversei com ministros do STF com quem tinha contatos pessoais. Enquanto isso, o Senhor foi fazendo sua campanha Brasil afora, contando com o apoio de um grupo de procuradores e procuradoras que, diga-se de passagem, na disputa com Gurgel tinham ficado, em sua maioria, com ele.
Incluía, até mesmo, o pai da importação xinguelingue ( Gíria paulista: produto barato que vem da China, geralmente de baixíssima qualidade) da teoria do domínio do fato, elaborado por Claus Roxin no seu original, mas completamente deturpada na Pindorama, para se transmutar em teoria de responsabilidade penal objetiva.
Achava essa mistura de apoiadores um tanto estranha, pois eu, que fazia o trabalho de viabilizar externamente seu nome, nada tinha em comum com essa turma em termos de visão sobre o ministério público.
Como o Senhor sabe, no início de 2012, publiquei, numa obra em “homenagem” ao então Vice-Presidente da República, Michel Temer, um artigo extremamente polêmico sobre as mutações disfuncionais por que o ministério público vinha passando.
Esse artigo, reproduzido no Congresso em Foco, com o título “Ministério Público na Encruzilhada: Parceiro entre Sociedade e Estado ou Adversário implacável da Governabilidade?”, quando tornado público, foi alvo de síncopes corporativas na rede de discussão @Membros.
Faltaram querer me linchar, porque nossa casa não é democrática. Ela se rege por um princípio de omertà muito próprio das sociedades secretas. Mas não me deixei intimidar.
Depois, ainda em 2013, publiquei outro artigo, em crítica feroz ao movimento corporativo-rueiro contra a PEC 37, também no Congresso em Foco, com o título “Derrota da PEC 37: a apropriação corporativa dos movimentos de rua no Brasil”.
(N.R. A PEC 37, derrotada na Câmara em junho de 2013, determinava que o poder de investigação criminal seria exclusivo das polícias federal e civis, retirando esta atribuição de alguns órgãos e, sobretudo, do Ministério Público (MP).
Sua turma de apoio me qualificou de insano, por escrever isso em plena campanha eleitoral do Senhor. Só que se esqueceram que meu compromisso nunca foi com eles e com o esforço corporativo de indicar o Procurador-Geral da República por lista tríplice.Sempre achei esse método de escolha do chefe da instituição um grande equívoco dos governos Lula e Dilma.
Meu compromisso era com sua indicação para o cargo, porque acreditava na sua liderança na casa, para mudar a cultura do risco exibicionista de muitos colegas, que afetava enormemente a qualidade de governança do País.
No seu caso, pensava, a coincidência de poder ser o mais votado pela corporação e de ter a qualidade da sensibilidade para com a política extra-institucional, era conveniente, até porque a seu lado, poderia colaborar para manter um ambiente de parceria com o governo e os atores políticos.
Não foi por outro motivo que, quando me deu a opção, preferi ocupar a Vice-Procuradoria-Geral Eleitoral a ocupar a Vice-Procuradoria-Geral da República que, a meu ver, tinha que ser destinada à Doutora Ela Wiecko Volkmer de Castilho, por deter, também, expressiva liderança na casa e contar com boa articulação com o movimento das mulheres. Este foi um conselho meu que o Senhor prontamente atendeu, ainda antes de ser escolhido.
Naqueles dias, a escolha da Presidenta da República para o cargo de procurador-geral estava entre o Senhor e a Doutora Ela, pendendo mais para a segunda, por ser mulher e ter tido contato pessoal com a Presidenta, que a admirava e continua admirando muito.
Ademais, Doutora Ela contava com o apoio do Advogado-Geral da União, Doutor Luís Inácio Adams. Brigando pelo Senhor estávamos nós, atuando sobre o então Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo e o amigo Luiz Carlos Sigmaringa Seixas.
Quando ouvimos boatos de que a mensagem ao Senado, com a indicação da Doutora Ela, estava já na Casa Civil para ser assinada, imediatamente agi, procurando o Ministro Ricardo Lewandowski, que, após recebê-lo, contatou a Presidenta para recomendar seu nome.
No dia em que o Senhor foi chamado para conversar com a Presidenta, fui consultado pelo Ministro da Justiça e pelo Advogado-Geral da União, pedindo que confirmasse, ou não, que seu nome era o melhor. Confirmei, em ambos os contatos telefônicos.
Na verdade, para se tornar Procurador-Geral da República, o Senhor teve que fazer alianças contraditórias, já que não aceitaria ser nomeado fora do método de escolha corporativista.
Acendeu velas para dois demônios que não tinham qualquer afinidade entre si: a corporação e eu.
Da primeira precisou de suporte para receber seus estrondosos 800 e tantos votos e, de mim, para se viabilizar num mundo em que o Senhor era um estranho. Diante do meu receio de que essa química poderia não funcionar, o Senhor me acalmou, dizendo que nós nos consultaríamos em tudo, inclusive no que se tinha a fazer na execução do julgado da Ação Penal 470, que, a essa altura, já estava prestes a transitar.
O dia de sua posse foi, para mim, um momento de vitória. Não uma vitória pessoal, mas uma vitória do Estado Democrático de Direito que, agora, teria um chefe do ministério público enérgico e conhecedor de todas as mazelas da instituição. Sim, tinha-o como o colega no MPF que melhor conhecia a política interna, não só pelos cargos que ocupara, mas sobretudo pelo seu jeitão mineiro e bonachão de conversar com todos, sem deixar de ter lado e ser direto, sincero, às vezes até demais.
Seu déficit em conhecimento do ambiente externo seria suprido com o exercício do cargo e poderia, eu, se chamado, auxiliá-lo, assim como Wagner Gonçalves ou Claudio Fonteles.
Meu susto se deu já no primeiro mês de seu exercício como procurador-geral. Pediu, sem qualquer explicação ou conversa prévia com o parceiro de que tanto precisou para chegar lá, a prisão de José Genoíno. E isso poucos meses depois de ele ter estado com o Senhor como amigo in pectore.
Eu não tenho medo de assumir que participei desses contatos. Sempre afirmei publicamente a extrema injustiça do processo do “Mensalão” no que toca aos atores políticos do PT. Sempre deixei claro para o Senhor e para o Ministro Joaquim Barbosa que não aceitava esse método de exposição de investigados e réus e da adoção de uma transmutação jabuticaba da teoria do domínio do fato.
Defendi José Genoíno sempre, porque, para mim, não tem essa de  abrir seu coração (e no seu caso, a sua casa) a um amigo e depois tratá-lo como um fora da lei, sabendo-o inocente.
Tentei superar o choque, mas confesso que nunca engoli essa iniciativa do Senhor.
Acaso achasse necessário fazê-lo, deveria ter buscado convencer as pessoas às quais, antes, expressou posição oposta. E, depois, como José Genoino foi reiteradamente comensal em sua casa, nada custava, em último caso, dar-se por suspeito e transferir a tarefa do pedido a outro colega menos vinculado afetivamente, não acha?
Como nosso projeto para o País era maior do que minha dor pela injustiça, busquei assimilar a punhalada e seguir em frente, sabendo que, para terceiros, o Senhor se referia a mim como pessoa que não podia ser envolvida nesse caso, por não ter isenção.
E não seria mesmo envolvido. Nunca quis herdar a condução da Ação Penal 470, para mim viciada ab ovo, e nunca sonhei com seu cargo. Sempre fui de uma lealdade canina para com o Senhor e insistia em convencer, a mim mesmo, que sua atitude foi por imposição das circunstâncias. Uma situação de “duress”, como diriam os juristas anglo-saxônicos.
Mas chegou o ano 2014 e, com ele, a operação Lava Jato e a campanha eleitoral. Dois enormes desafios. Enquanto, por lealdade e subordinação, nenhuma posição processual relevante era deixada de lhe ser comunicada no âmbito do ministério público eleitoral, no que diz respeito à Lava Jato nada me diziam, nem era consultado.
O Senhor preferiu formar uma dupla com seu chefe de gabinete, Eduardo Pelella, que tudo sabia e em tudo se metia e, por isso, chamado carinhosamente de “Posto Ipiranga”. Era seu direito e, também por isso, jamais o questionei a respeito, ainda que me lembrasse das conversas ante-officium de que sempre nos consultaríamos sobre o que era estratégico para a casa.
Passei a perceber, aos poucos, que minha distância, sediado que estava fora do prédio, no Tribunal Superior Eleitoral, era conveniente para o Senhor e para seu grupo que tomava todas as decisões no tocante à guerra política que se avizinhava.
Não quis, contudo, constrangê-lo. Tinha uma excelente equipe no TSE. Fazia um time de primeira com os colegas Luiz Carlos Santos Gonçalves, João Heliofar, Ana Paula Mantovani Siqueira e Ângelo Goulart e o apoio inestimável de Roberto Alcântara, como chefe de gabinete. Não faltavam problemas a serem resolvidos numa das campanhas mais agressivas da história política do Brasil. Entendi que meu papel era garantir que ninguém fosse crucificado perante o eleitorado com ajuda do ministério público e, daí, resolvemos, de comum acordo, que minha atuação seria de intervenção mínima, afim de garantir o princípio da par conditio candidatorum.
Quando alguma posição a ser tomada era controversa, sempre a submeti ao Senhor e lhe pedi reiteradamente que tivesse mais presença nesse cenário. Fiquei plantado em Brasília o tempo todo, na posição de bombeiro, evitando que o fogo da campanha chegasse ao judiciário e incendiasse a corte e o MPE. As estatísticas são claras. Não houve nenhum ponto fora da curva no tratamento dos contendentes.
Diferentemente do que o Senhor me afirmou, nunca tive briga pessoal com o então vice-presidente do TSE. Minha postura de rejeição de atitudes que não dignificavam a magistratura era institucional.
E, agora, que Sua Excelência vem publicamente admoestá-lo na condução das investigações da Lava Jato, imagino, suas duras reações na mídia também não revelam um conflito pessoal, mas, sim, institucional. Estou certo? Portanto, nisso estamos no mesmo barco, ainda que por razões diferentes.
Passada a eleição, abrindo-se o “terceiro turno”, com o processo de prestação de contas da Presidenta Dilma Rousseff que não queria e continua não querendo transitar em julgado apesar de aprovado à unanimidade pelo TSE e com as ações de investigação judicial e de impugnação de mandato eleitoral manejadas pelo PSDB, comecei, pela primeira vez, a sentir falta de apoio.
Debitava essa circunstância, contudo, à crise da Lava Jato que o Senhor tinha que dominar. As vezes que fui chamado a assinar documentos dessas investigações, em sua ausência, o fiz quase cegamente. Lembrava-me da frase do querido Ministro Marco Aurélio de Mello, “cauda não abana cachorro”.
Só não aceitei assinar o parecer do habeas corpus impetrado em favor de Marcelo Odebrecht com as terríveis adjetivações da redação de sua equipe. E o avisei disso. Não tolero adjetivações de qualquer espécie na atuação ministerial contra pessoas sujeitas à jurisdição penal.
Não me acho mais santo do que ninguém para jogar pedra em quem quer que seja. Meu trabalho persecutório se resume à subsunção de fatos à hipótese legal e não à desqualificação de Fulano ou Beltrano, que estão passando por uma provação do destino pelo qual não tive que passar e, por conseguinte, não estou em condições de julgar espiritualmente.
Faço um esforço de me colocar mentalmente no lugar deles, para tentar entender melhor sua conduta e especular sobre como eu teria agido. Talvez nem sempre mais virtuosamente e algumas vezes, quiçá, mais viciadamente.
Investigados e réus não são troféus a serem expostos e não são “meliantes” a serem conduzidos pelas ruas da vila “de baraço e pregão” (apud Livro V das Ordenações Filipinas). São cidadãos, com defeitos e qualidades, que erraram ao ultrapassar os limites do permissivo legal. E nem por isso deixo de respeitá-los.
Fui surpreendido, em março deste ano, com o honroso convite da senhora Presidenta democraticamente eleita pelos brasileiros, Dilma Vana Rousseff, para ocupar o cargo de Ministro de Estado da Justiça.
Imagino que o Senhor não ficou muito feliz e até recomendou à Doutora Ela Wiecko a não comparecer a minha posse. Aliás, não colocou nenhum esquema do cerimonial de seu gabinete para apoiar os colegas que quisessem participar do ato. Os poucos (e sinceros amigos) que vieram tiveram que se misturar à multidão.
A esta altura, nosso contato já era parco e não tinha porque fazer “mimimi” para exigir mais sua atenção. Já estava sentindo que nenhum de nossos compromissos anteriores a sua posse como procurador-geral estavam mais valendo.
O Senhor estava só monologando com sua equipe de inquisidores ministeriais ferozes. Essa é a razão, meu caro amigo Rodrigo Janot, porque não mais o procurei como ministro de forma rotineira. Estive com o Senhor duas vezes apenas, para tratar de assuntos de interesse interinstitucional.
E quando voltei ao Ministério Público Federal, Doutor Rodrigo Janot, não quis mais fazer parte de sua equipe, seja atuando no STF, seja como coordenador de Câmara, como me convidou. Prontamente rejeitei esses convites, porque não tenho afinidade nenhuma com o que está fazendo à frente da Lava Jato e mesmo dentro da instituição, beneficiando um grupo de colaboradores em detrimento da grande maioria de colegas e rezando pela cartilha corporativista ao garantir a universalidade do auxilio moradia concedida por decisão liminar precária.
Na crítica à Lava Jato, entretanto, tenho sido franco e assumido, com risco pessoal de rejeição interna e externa, posições públicas claras contra métodos de extração de informação utilizados, contra vazamentos ilegais de informações e gravações, principalmente em momentos extremamente sensíveis para a sobrevida do governo do qual eu fazia parte, contra o abuso da coerção processual pelo juiz Sérgio Moro, contra o uso da mídia para exposição de pessoas e contra o populismo da campanha pelas 10 medidas, muitas à margem da constituição, propostas por um grupo de procuradores midiáticos que as transformaram, sem qualquer necessidade de forma, em “iniciativa popular”.
Nossa instituição exibe-se, assim, sob a sua liderança, surfando na crise para adquirir musculatura, mesmo que isso custe caro ao Brasil e aos brasileiros.
Vamos falar sobre honestidade, Senhor Procurador-Geral da República.
A palavra consta do brocardo citado no título desta carta aberta.
O Senhor não concorda e não precisa mais concordar com minhas posições críticas à atuação do MPF.
Nem tem necessidade de uma aproximação dialógica. Já não lhe sirvo para mais nada quando se inicia o último ano de seu mandato.
Mas , depois de tudo que lhe disse aqui para refrescar a memória, o Senhor pode até me acusar de sincericídio, mas não mais, pois a honestidade (honestitas), que vem da raiz romana honor, honoris, esta, meu pai, do Sertão do Pajeú, me ensinou a ter desde pequeno. Nunca me omiti e não me omitirei quando minha cidadania exige ação.
Procuro viver com honra e, por isto, honestamente, educando seis filhos a comer em pratos Duralex, usando talheres Tramontina e bebendo em copo de requeijão, para serem brasileiros honrados, dando valor à vida simples.
Diferentemente do Senhor, não fiquei calado diante das diatribes políticas do Senhor Eduardo Cunha e de seus ex-asseclas, que assaltaram a democracia, expropriando o voto de 54 milhões de brasileiros, pisoteando-os com seus sapatinhos de couro alemão importado. Não fui eu que assisti uma Presidenta inocente ser enxovalhada publicamente como criminosa, não porque cometeu qualquer crime, mas pelo que representa de avanço social e, também, por ser mulher.
O Senhor ficou silente, apesar de tudo que conversamos antes de ser chamado a ser PGR. E ficou aceitando a pilha da turma que incendiava o País com uma investigação de coleta de prova de controvertido valor.
Eu sou o que sempre fui, desde menino que militou no Movimento Revolucionário 8 de Outubro. E o Senhor? Se o Senhor era o que está sendo hoje, sinto-me lesado na minha boa fé (alterum non laedere, como fica?). Se não era, o que aconteceu?
“A Lava Jato é maior que nós”?
Esta não pode ser sua desculpa. Tamanho, Senhor Procurador-Geral da República, é muito relativo. A Lava Jato pode ser enorme para quem é pequeno, mas não é para o Senhor, como espero conhecê-lo. Nem pode ser para o seu cargo, que lhe dá a responsabilidade de ser o defensor maior do regime democrático (art. 127 da CF) e, devo-lhe dizer, senti falta de sua atuação questionando a aberta sabotagem à democracia. Por isso o comparei a Pilatos. Não foi para ofendê-lo, mas porque preferiu, como ele, lavar as mãos.
Mas fico por aqui. Enquanto trabalhei consigo, dei-lhe o que lhe era de direito e o que me era de dever: lealdade, subordinação e confiança (suum cuique tribuere, não é?). E, a mim, o Senhor parece também ter dado o que entende ser meu: a acusação de agir desonestamente. Não fico mais triste. A vida nos ensina a aceitar a dor como ensinamento. Mas isso lhe prometo: não vou calar minha crítica e, depois de tudo o que o Senhor conhece de mim, durma com essa.
Um abraço sincero daquele que esteve anos a fio a seu lado, acreditando consigo num projeto de um Brasil inclusivo, desenvolvido, economicamente forte e respeitado no seio das nações, com o ministério público como ativo parceiro nessa empreitada. 


Revista Consultor Jurídico, 15 de setembro de 2016, 1

segunda-feira, 12 de setembro de 2016

Advocacia precisa aprender a lidar com os fatos

Em prol do direito de defesa, a advocacia precisa mudar para acompanhar quem investiga e acusa seus clientes. Na opinião do advogado Rodrigo Mudrovitsch, com o avanço da tecnologia e da informatização do Judiciário, os órgãos de investigação e acusação estão muito mais bem preparados para lidar com volumes enormes de informação. Por isso, a defesa precisa estar pronta para enfrentar uma realidade em que todo o aparelho de Estado trabalha em conjunto em prol da apuração de fatos.
Para Mudrovitsch, isso quer dizer que o advogado deve estar preparado para lidar com fatos e dados, e não mais apenas com questões teóricas do Direito. As denúncias, por exemplo, explica, costumam ser um pedaço de uma apuração muito maior, e a defesa que desconhecer esse contexto pode acabar pega num contrapé e prejudicar seu cliente.
“Não dá mais para querer tocar uma ação no piloto automático”, afirma, em entrevista à revista Consultor Jurídico. Segundo ele, a defesa que empurra o processo para deixar a briga para os tribunais superiores está perdendo espaço. “Num processo cada vez mais calcado em questões factuais, a margem de reversão nos tribunais superiores diminui.”
Ele fala por experiência. Doutor em Direito do Estado pela USP e mestre em Direito do Estado e Constituição pela UnB, ele tem clientes envolvidos em grandes operações Brasil afora, tanto políticos quanto empresas. Entre os mais proeminentes, os senadores Lindbergh Farias (PT-RJ), Humberto Costa (PT-PE) e Gleisi Hoffmann (PT-PR), todos investigados na operação “lava jato”.
Na opinião de Mudrovitsch, a delação premiada deu ao advogado um duplo papel. “Ele pode ao mesmo tempo ser um contraponto à acusação”, diz, “e pode também virar um parceiro da acusação, caso o cliente passe a ser colaborador”. “A chave é compreender que o advogado jamais vai ser uma barreira para o processo. Ele vai ser alguém que está defendendo o cliente dele da melhor maneira possível.”
Leia a entrevista:
ConJur – A “lava jato” mudou a forma de advogar?
Rodrigo Mudrovitsch –
 A “lava jato” é um exemplo. Não acho que ela seja a razão, mas ela exemplifica uma série de novidades para as quais a advocacia precisa se adaptar. A primeira é uma coordenação mais sólida entre os órgãos de investigação e de acusação. O que a gente percebe hoje quando olha para o Paraná é uma relação muito estreita e muito bem concatenada e com poucas vaidades entre a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, e a sensação que a "lava jato" passa é que esses núcleos vão se replicar em outros locais. A gente vê isso hoje no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Goiás e essa concatenação dá um apuro técnico e factual para as investigações muito grande.
ConJur – A defesa acaba sendo mais difícil?
Rodrigo Mudrovitsch –
 A advocacia fica muito mais complexa, porque não basta lidar com a acusação apenas juridicamente. Tem que lidar também com ela factualmente. Então os escritórios têm que saber fazer frente ao que esse bloco investigativo traz. Eu, por exemplo, faço muitas reuniões com técnicos que examinam e-mails, que examinam chamadas feitas e recebidas. A gente acaba tendo que sofisticar o nosso trabalho de inteligência para, dentro do mar de dados que eles têm, também saber rebater. Hoje a Receita, PF, MPF etc. trabalham em bloco, cada qual com a sua expertise de inteligência, e o resultado disso muitas vezes é uma denúncia que trata só de um pedaço de tudo o que eles têm. Se eu não souber compreender o todo, não vou saber identificar as fragilidades da denúncia. Isso é uma novidade.
ConJur – A informatização desses dados também contribui, não?
Rodrigo Mudrovitsch –
 Claro. A informatização do Judiciário tem feito com que o julgamento tenha uma agilidade enorme. Um processo que começa em agosto é sentenciado em fevereiro, e você tem que se organizar para não deixar passar oportunidades e para fazer impugnações muito bem medidas, porque senão acaba deixando o processo passar. Não existe mais aquilo de querer tocar diversas ações ao mesmo tempo e só se envolver com elas na véspera. Tem que usar um pouco da técnica que a magistratura mais moderna tem usado, chamada de early involvement: você se envolve com o processo desde o começo para saber onde quer chegar com ele. O advogado tem que fazer isso também.
ConJur – Não é esquisito o Judiciário usar dessa técnica de envolvimento? É normal o Ministério Público, órgão que faz a ação, ter uma estratégia e definir onde quer chegar. Mas o juiz pode querer chegar a algum lugar numa ação?
Rodrigo Mudrovitsch –
 Vejo isso com bons olhos. Imagine uma vara com 7 mil processos. Se você deixar o processo te conduzir, acaba deixando também com que os advogados te conduzam. Então para que você saiba se uma diligência é protelatória, se uma testemunha é necessária, o que perguntar pra testemunha, ou que cuidados tomar ao analisar uma resposta de acusação, por exemplo, precisa se envolver rápido com o processo.
ConJur – A “lava jato” também pode ser exemplo desse tipo de envolvimento?
Rodrigo Mudrovitsch –
 Talvez este seja um dos grande diferenciais de Sergio Moro: o envolvimento meticuloso com os processos em todas as decisões dele. O juiz tem que ter domínio dos casos da vara dele desde o começo. Se não fizer isso, naturalmente quem tiver mais domínio do caso vai conduzi-lo.
ConJur – Mas se o MP, Receita, PF etc. chegam com um mar de dados para o juiz, isso evidentemente o influencia, não?
Rodrigo Mudrovitsch –
 Não é que o juiz vá formar a convicção dele cedo. Se ele faz isso antes de ouvir a versão da defesa, está prejulgando a causa, e aí acaba tornando o processo desnecessário, o que é inaceitável. Eu me refiro ao juiz que se envolve com os limites da controvérsia.
ConJur – Como assim?
Rodrigo Mudrovitsch –
 É muito comum que o processo caminhe no automático até a hora em que os autos são conclusos para a prolação da sentença. Muitas vezes nessa fase o juiz percebe fragilidades na instrução que ele não soube suprir, ou que a acusação não supriu ou a defesa não supriu. Quando ele se envolve com a questão desde o começo, acaba deixando o processo mais eficiente.
ConJur – Isso é um problema para a defesa?
Rodrigo Mudrovitsch –
 Evidentemente impõe desafios para o advogado. Não dá mais para querer tocar uma ação penal, ou de improbidade, ou qualquer outra no piloto automático. Às vezes até o próprio cliente imagina que pode começar o processo em marcha lenta e que o advogado vai resolver nas instâncias superiores. Num processo cada vez mais calcado em questões factuais, a margem de reversão nos tribunais superiores diminui. Muitas vezes a sentença vai estar embasada numa multiplicidade de elementos e dados que os tribunais superiores não podem revisar.
ConJur – Os escritórios, então, devem se especializar menos? 
Rodrigo Mudrovitsch –
 A advocacia passa por um momento de maior interdisciplinariedade. A defesa mais eficaz, hoje, exige que o advogado saiba lidar com facilidade em distintas áreas. Você não consegue chegar ao final da defesa do seu cliente da melhor maneira possível se você for um advogado que se limite a uma área do conhecimento. O advogado precisa necessariamente saber pular do criminal para a improbidade, da improbidade para a legislação anticorrupção etc. Mas vejo também um momento de transposição da lógica da atuação.
ConJur – Como seria isso?
Rodrigo Mudrovitsch –
 O momento atual é o da conformidade. Essas operações têm revelado fragilidades dentro da gestão de contratações, e as empresas têm dado saltos de governança e de conformidade que a advocacia precisa dar. Hoje eu preciso carregar comigo as regras de conformidade que os meus clientes têm e isso passa também por uma advocacia mais cuidadosa.
ConJur – Conformidade em que sentido?
Rodrigo Mudrovitsch –
 Em termos éticos. Mas ética no sentido de conflito, não em termos de moralidade. Nos Estados Unidos, por exemplo, a lógica de um único escritório defender duas pessoas que possam ter envolvimento direto ou até indireto num dado tema é muito mais rígida. Os escritórios têm comitês de ética que são bastante duros.
ConJur – Aqui isso não existe?
Rodrigo Mudrovitsch –
 Aqui a gente percebe que, dentro da mesma operação, uma mesma pessoa pode advogar para interesses antagônicos sem que haja nenhum problema nisso. É uma questão ética que precisa ser analisada. A própria colaboração é um bom exemplo. Dentro de uma operação é complicado um advogado se permitir se transformar em parceiro da acusação por mais de duas pessoas que possam ter interesses antagônicos, ou fazer a colaboração de quem corrompeu e de quem foi corrompido. Ou, ao mesmo tempo, advogar para a empresa e para o empresário.
ConJur – Então aquele advogado que tem uma salinha num prédio de escritório, com uma placa na porta escrito “Cível, Família e Trabalhista”, está condenado a sumir?
Rodrigo Mudrovitsch –
 O Brasil é muito grande. Há espaço para todos os tipos de profissional e a nossa sociedade tem muito conflito. Mas, pelo menos nesses processos mais intrincados, nessas questões que chamam a atenção dos tribunais, ou que chegam aos tribunais superiores e mexem com interesses mais relevantes, a advocacia “mais moderna” acaba se tornando inevitável.
ConJur – Voltando à sua fala sobre os advogados estarem preparados para lidar com o imenso volume de dados e o envolvimento de todos com fatos desde o início de grandes operações. Isso quer dizer que as discussões processuais ficaram em segundo plano?
Rodrigo Mudrovitsch –
 Não vou dizer que ficou em segundo plano, mas não acredito mais numa advocacia que prega a teoria das nulidades como sua bandeira única. O advogado tem que descer no factual, até para poder fazer uma análise verossímil e honesta com o cliente dele sobre as reais chances de ele chegar ao final do processo com um resultado positivo.
ConJur – Essa visão se opõe um pouco ao discurso tradicional da advocacia, de que o rito a seguir é tão ou mais importante que a conclusão.
Rodrigo Mudrovitsch –
 Isso é de uma tradição mais romano-germânica da nossa formação jurídica, mas eu sou partidário de um Direito mais pragmático. Isso não significa defender que o advogado abdique das garantias processuais penais, mas, além de saber o que significa uma garantia processual penal e o que significa o processo, o advogado precisa compreender como o sistema funciona como um todo. Não estou dizendo que menosprezo as garantias e direitos processuais penais, mas, dentro de uma teoria constitucional, parto do pressuposto de que temos que ter um sistema que funcione bem. Essa é a mentalidade que está posta na magistratura e no Ministério Público e nós, advogados, temos que entender e saber lidar com ela.
ConJur – Mas isso não tem se traduzido em flexibilização do direito de defesa, ou da relativização de garantias?
Rodrigo Mudrovitsch –
 Há exemplos isolados. Mas também percebo que, principalmente nos tribunais superiores, há juízes que compreendem o papel real do advogado.
ConJur – E qual é o papel real do advogado?
Rodrigo Mudrovitsch –
 Hoje é duplo. O advogado pode ao mesmo tempo ser um contraponto duro à acusação nas hipóteses em que houver algum direito do cliente dele sendo ultrapassado, e pode também virar parceiro da acusação, caso o cliente dele passe a ser colaborador. A chave é compreender que o advogado jamais vai ser uma barreira para o processo. Ele vai ser alguém que está defendendo o cliente dele da melhor maneira possível. Todos os lados eventualmente podem cometer abusos, mas eu não diria que estamos num momento de antagonismo ferrenho. Há debates de alto nível. Há abusos, mas abusos sempre vão existir.
ConJur – A delação premiada, então, entraria nessas estratégias de defesa?
Rodrigo Mudrovitsch – Sim, claro. A delação ainda é um tabu, mas ela não pode ser execrada nem banalizada. Os extremos não ajudam. Não pode ser nem o advogado que, antes de ler a capa do processo, já diz pro cliente que ele tem de fazer delação, e nem o advogado que se recusa a fazer. Com isso, ele se recusa a dar para o cliente uma opção que a própria legislação deu. A gente tem que fazer uma análise fria. Se, em determinada situação factual ou processual, o cliente precisar deixar de ser um opositor à acusação e passar a ser um colaborador, o advogado precisa saber explicar quando isso deve acontecer e como ele deve proceder.
ConJur – Mas temos visto o surgimento de uma especialização em delação premiada.
Rodrigo Mudrovitsch – Isso não existe. O que existe é o advogado que sabe avaliar quais são as opções que o cliente dele tem. Senão a delação é banalizada e fica a impressão de que não houve qualquer raciocínio ali. E os dois trabalhos, tanto a defesa clássica quanto a delação, exigem alta dedicação do advogado, porque você tem que ir até o fim nas duas situações. Se você está fazendo uma defesa clássica, tem que exaurir as possibilidades de enfrentamento factual e processual. Se você está fazendo uma colaboração, tem que se transformar num verdadeiro auxiliar da acusação para que possa fazer com que o seu cliente tenha os melhores benefícios possíveis. É um trabalho altamente complexo.
Rodrigo Mudrovitsch, doutor em Direito do Estado
Revista Consultor Jurídico, 11.09.2016

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Pequenas Causas: Resolução de disputas online

Em Michigan, já é possível resolver disputas judiciais online

Por João Ozório de Melo
Se o conceito de “pequenas causas” for, hipoteticamente, estendido da área civil para outras áreas do Direito, incluindo a criminal, as estatísticas dão uma ideia mais esclarecedora do que se passa nos tribunais dos EUA: metade dos processos que tramitam pelos tribunais americanos pode ser assim caracterizada.
São apenas “pequenas causas”, mas consomem os recursos dos tribunais e o tempo dos juízes, funcionários da corte e das partes. Para se ter uma ideia da perda de tempo, uma pessoa pode passar quatro horas dentro de um tribunal, à espera de uma audiência para contestar uma multa de trânsito, disse o professor da Faculdade de Direito da Universidade de Michigan J.J. Prescott, ao site Legal Rebels, que faz parte do Journal da ABA (American Bar Association).
Prescott sabe disso por experiência própria. Ele passou exatamente quatro horas na sala de espera de um tribunal, fora o tempo com deslocamentos, e prejudicou seu trabalho, tudo para ter uma audiência que durou apenas alguns minutos. Isso o estimulou a criar uma “plataforma online”, que permite aos cidadãos resolver pequenas questões judiciais de qualquer lugar, a qualquer hora — sem nunca ir ao tribunal.
Com a ajuda de seu ex-estudante Ben Gubernick, Prescott criou o softwareMatterhorn, que permite ao cidadão interagir com a corte “do sofá de sua casa, às 23h, da mesma forma que entra na internet para pedir um aumento do limite do cartão de crédito. As pessoas prestam as informações solicitadas, submetem seu lado da história, respondem a perguntas e, no final, recebem uma comunicação da decisão judicial.
Ele defende as vantagens de seu modelo versus o modelo tradicional: “Há uma economia significativa de recursos e de tempo para todos os envolvidos; remove barreiras ao acesso ao tribunal, tais como as criadas por deficiência física, dificuldades pessoais por causa do trabalho e pela falta de dinheiro; evita a intimidação e o medo que algumas pessoas sentem dentro de um tribunal; e contorna a possibilidade de a aparência da pessoa gerar preconceitos percebidos ou reais”.
O professor recebeu as bênçãos e o apoio formal da Universidade de Michigan para desenvolver seu projeto, por meio do programa chamadoOffice of Technology Transfer, que ajuda acadêmicos a construir uma empresa a partir de suas ideias. Ele criou a startup Court Innovations Inc., para dar um endereço ao empreendimento e comercializar a tecnologia.
Mais importante que isso, o apoio formal da universidade ajudou Prescott a “vender” seu projeto a tribunais de Michigan. Para viabilizar o softwarecomo uma plataforma de resoluções judiciais, era preciso ter acesso a dados de cada tribunal.
Um tribunal do Condado de Washtenaw foi o primeiro a adotar a tecnologia. Ele convidou, então, a executiva M.J. Cartwright para assumir o cargo de CEO da Court Innovations e trazer para o projeto expertise em negócios. Com ela, a empresa vendeu seu produto a 15 tribunais de Michigan. E já começa a contatar tribunais em outros estados.
O administrador do Judiciário do condado, Bob Ciolek, disse ao Legal Rebelsque os processos que demoravam de 30 a 60 dias para serem encerrados, no sistema tradicional, passaram a ser resolvidos em cerca de sete dias.
“É uma grande vantagem para todos os executores da lei e para os cidadãos, em termos de economia de tempo, de recursos e de formalidades/burocracia (como a de enviar intimações pelo correio etc.). Está sobrando mais tempo para os juízes cuidarem de outras coisas, porque processos que tomavam o dia todo agora estão tomando alguns minutos”, disse.
Além de professor de Direito, Prescott, 42, tem doutorado em economia pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts. Em seu currículo, está o cargo que exerceu como assistente jurídico do juiz que se tornou famoso em 2016, o presidente do Tribunal de Recursos do Distrito de Colúmbia, juiz Merrick Garland, que foi indicado pelo presidente Obama para ocupar a vaga na Suprema Corte dos EUA deixada pelo ex-ministro Antonin Scalia.
Revista Consultor Jurídico, 07 de setembro de 2016