domingo, 28 de fevereiro de 2016

Audiência de Custódia aponta quase 3.000 casos de tortura

Em um ano de funcionamento, o programa Audiência de Custódia registrou 2,7 mil denúncias de tortura e maus-tratos a pessoas presas em todo o país. De acordo com os relatos feitos por presos apresentados nas audiências de custódia, os episódios que envolvem violência policial teriam ocorrido geralmente entre o momento da prisão e a apresentação do preso a um juiz. Esse e outros dados do primeiro ano do programa do CNJ foram apresentados pelo presidente do Conselho e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Ricardo Lewandowski, na noite desta sexta-feira (26/2), em Salvador, no 2º Fórum Nacional de Alternativas Penais (Fonape).
“Já detectamos quase 3 mil casos de tortura e maus-tratos nesse ano que passou, devidamente repassados à apuração competente”, afirmou o ministro. Como o período entre o flagrante e a audiência não deve superar 24 horas, de acordo com as regras do programa, fica mais fácil a investigação dos responsáveis pela violência. De acordo com o ministro, o combate à tortura e maus-tratos no país gerou reconhecimento por parte de organismos internacionais de direitos humanos.
“Ontem, a Organização das Nações Unidas (ONU), através do chefe da delegação do Subcomitê de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, teceu duríssimas críticas ao sistema prisional brasileiro, sobretudo focalizando na tortura, que ainda é um flagelo que enfrentamos infelizmente no país. Nesse relatório, no entanto, essa autoridade ressaltou que a iniciativa do CNJ é uma aposta promissora para a redução da população carcerária e da violência nos estabelecimentos prisionais”, disse o ministro.
Publicado em janeiro, o relatório da organização não-governamental Human Rights Watch revelou que as audiências de custódia representam uma tentativa do Brasil de combater a violação dos direitos humanos, a submissão dos detentos a uma prisão superlotada e o combate também às torturas e maus-tratos no ato da apreensão. O ministro Lewandowski lembrou ainda a visita que fez em outubro do ano passado à sede da Organização dos Estados Americanos (OEA), em Washington, onde apresentou os resultados parciais do programa. “Fomos recebidos com muito entusiasmo e o presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o secretário-geral da OEA nos disseram que esse nosso modelo seria um paradigma para toda a América Latina”, afirmou.
Implantadas pelo CNJ nos tribunais das 27 unidades da Federação ao longo de 2015, as audiências de custódia inovaram no tratamento dado ao preso no país ao permitir que ele seja apresentado a uma autoridade judicial logo após ser detido. Nessa audiência, a Justiça decide se é necessário manter o preso sob custódia enquanto não é julgado. O procedimento está previsto em tratados internacionais assinados pelo Brasil, como a a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, como é conhecido o Pacto de San José.
Desde 24 de fevereiro de 2015, quando o programa do CNJ foi implantado no Tribunal de Justiça de São Paulo, 49.668 audiências foram realizadas em todo o país. A avaliação dos juízes sobre a necessidade e a legalidade das prisões dos detidos em flagrante evitou que 25 mil pessoas se juntassem aos mais de 600 mil presos que ocupam o superlotado sistema prisional brasileiro, o quarto maior do mundo em termos absolutos. “Quase metade (49,61%) das pessoas detidas em flagrante que passaram pelas audiências de custódia não tiveram suas prisões preventivas decretadas. O juiz compreendeu, olhando olho no olho, examinando a circunstância pessoal da pessoa que lhe foi apresentada, que ela não representava perigo para a sociedade. Se tem residência fixa, emprego lícito, família, pode ser ressocializado, por que vamos enviá-lo a uma cadeia insalubre, infecta, superlotada?”, afirmou o ministro.
Manuel Carlos Montenegro 
Agência CNJ de Notícias

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Celso de Mello: STF adotou posição regressista e conservadora

Ao permitir a prisão de réus cujo processo ainda não transitou em julgado, o Supremo Tribunal Federal adotou uma posição conservadora e regressista. Quem diz isso é o ministro que ocupa há mais tempo uma cadeira da corte, o decano Celso de Mello. O polêmico julgamento do último dia 17, diz o ministro, "perigosamente parece desconsiderar que a majestade da Constituição jamais poderá subordinar-se à potestade do Estado".
Em seu voto, o ministro é direto ao afirmar que nenhuma execução de condenação criminal no Brasil, "mesmo se se tratar de simples pena de multa", pode ser implementada sem a existência do título judicial definitivo, resultante do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. E não há fundamento jurídico (de caráter legal ou de índole constitucional) que possa mudar tal questão, prevista no inciso LVII do artigo 5º da Constituição.
Celso de Mello foi um dos quatro ministros que votaram contra a mudança de entendimento, ao deferir o Habeas Corpus 126.292. A maioria de seus colegas discordou dele, e a corte mudou sua jurisprudência, passando a permitir que, depois de decisões de segundo grau que confirmem condenações criminais, a pena de prisão já seja executada.
O ministro ressalta, em seu voto, que a presunção de inocência “representa uma notável conquista histórica dos cidadãos em sua permanente luta contra a opressão do Estado e o abuso de poder”. E essa garantia, continua, diferencia democracias de regimes autoritários. Como exemplo, o ministro lembra que, no Estado Novo (1937-1945), os brasileiros tinham que provar que eram inocentes.
O membro mais antigo do STF deixa claro que tal princípio não deixa a sociedade à mercê de acusados perigosos, pois estes podem permanecer encarcerados no curso de investigações e ações criminais por meio de prisões cautelares.
Essa regra, inclusive, não é uma anomalia brasileira, destacou Celso de Mello, rebatendo os argumentos de que tal garantia seria uma "jabuticaba". Ele lista alguns dos diplomas internacionais de direitos humanos que preveem a presunção da inocência, como a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana; a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia; a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos; a Declaração Islâmica sobre Direitos Humanos; e a Convenção Americana de Direitos Humanos.
De acordo com o magistrado, a culpa de um acusado só será declarada após a polícia e o Ministério Público demonstrarem-na e a Justiça concluir que a exposição desses órgãos reflete a realidade.
“Isso significa, portanto, que inquéritos policiais em andamento, processos penais ainda em curso ou, até mesmo, condenações criminais sujeitas a recursos (inclusive aos recursos excepcionais interpostos para o Superior Tribunal de Justiça e para o Supremo Tribunal Federal) não podem ser considerados, enquanto episódios processuais suscetíveis de pronunciamento absolutório, como fatores de descaracterização desse direito fundamental proclamado pela própria Constituição da República”, argumentou o ministro.
Com isso, Celso de Mello votou pela manutenção da jurisprudência do Supremo, acompanhando a divergência aberta por Marco Aurélio. Rosa Weber e o presidente da corte, Ricardo Lewandowski, também ficaram entre os vencidos.
17/02/2016 PLENÁRIO HABEAS CORPUS 126.292 SÃO PAULO
 V O T O
 O SENHOR MINISTRO CELSO DE MELLO: 
Registre-se, desde logo, Senhor Presidente, que a presunção de inocência representa uma notável conquista histórica dos cidadãos em sua permanente luta contra a opressão do Estado e o abuso de poder. Na realidade, a presunção de inocência, a que já se referia Tomás de Aquino em sua “Suma Teológica”, constitui resultado de um longo processo de desenvolvimento político-jurídico, com raízes, para alguns, na Magna Carta inglesa (1215), embora, segundo outros autores, o marco histórico de implantação desse direito fundamental resida no século XVIII, quando, sob o influxo das ideias iluministas, veio esse direito-garantia a ser consagrado, inicialmente, na Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia (1776). Esse, pois, na lição de doutrinadores – ressalvada a opinião de quem situa a gênese dessa prerrogativa fundamental, ainda que em bases incipientes, no Direito Romano –, o momento inaugural do reconhecimento de que ninguém se presume culpado nem pode sofrer sanções ou restrições em sua esfera jurídica senão após condenação transitada em julgado. A consciência do sentido fundamental desse direito básico, enriquecido pelos grandes postulados políticos, doutrinários e filosóficos do Iluminismo, projetou-se, com grande impacto, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, cujo art. 9º solenemente proclamava a presunção de inocência, com expressa repulsa às práticas absolutistas do Antigo Regime.  
Mostra-se importante assinalar, neste ponto, Senhor Presidente, que a presunção de inocência, legitimada pela ideia democrática – não obstante golpes desferidos por mentes autoritárias ou por regimes autocráticos que absurdamente preconizam o primado da ideia de que todos são culpados até prova em contrário (!?!?) –, tem prevalecido, ao longo de seu virtuoso itinerário histórico, no contexto das sociedades civilizadas, como valor fundamental e exigência básica de respeito à dignidade da pessoa humana. Não foi por outra razão que a Declaração Universal de Direitos da Pessoa Humana, promulgada em 10/12/1948, pela III Assembleia Geral da ONU, em reação aos abusos inomináveis cometidos pelos regimes totalitários nazi-fascistas, proclamou, em seu art. 11, que todos presumem-se inocentes até que sobrevenha definitiva condenação judicial. Essa mesma reação do pensamento democrático, que não pode nem deve conviver com práticas, medidas ou interpretações que golpeiem o alcance e o conteúdo de tão fundamental prerrogativa assegurada a toda e qualquer pessoa, mostrou-se presente em outros importantes documentos internacionais, alguns de caráter regional, como a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (Bogotá, 1948, Artigo XXVI), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (São José da Costa Rica, 1969, Artigo 8º, § 2º), a Convenção Europeia para Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (Roma, 1950, Artigo 6º, § 2º), a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (Nice, 2000, Artigo 48, § 1º), a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos/Carta de Banjul (Nairóbi, 1981, Artigo 7º, § 1º, “b”) e a Declaração Islâmica sobre Direitos Humanos (Cairo, 1990, Artigo 19, “e”), e outros de caráter global, como o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (Artigo 14, § 2º), adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1966.
Vê-se, desse modo, Senhor Presidente, que a repulsa à presunção de inocência – com todas as consequências e limitações jurídicas ao poder estatal que dessa prerrogativa básica emanam – mergulha suas raízes em uma visão incompatível com os padrões ortodoxos do regime democrático, impondo, indevidamente, à esfera jurídica dos cidadãos restrições não autorizadas pelo sistema constitucional. Torna-se relevante observar, neste ponto, a partir da douta lição exposta por ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO (“Presunção de Inocência e Prisão Cautelar”, p. 12/17, 1991, Saraiva), que esse conflito ideológico entre o valor do princípio democrático, que consagra o primado da liberdade, e o desvalor do postulado autocrático, que privilegia a onipotência do Estado, revelou-se muito nítido na Itália, a partir do século XIX, quando se formaram, em momentos sucessivos, três escolas de pensamento em matéria penal: a Escola Clássica, cujos maiores expoentes foram FRANCESCO CARRARA e GIOVANNI CARMIGNANI, que sustentavam, inspirados nas concepções iluministas, o dogma da presunção de inocência, a que se seguiram, no entanto, os adeptos da Escola Positiva, como ENRICO FERRI e RAFFAELE GAROFALO, que preconizavam a ideia de ser mais razoável presumir a culpabilidade das pessoas, e, finalmente, a refletir o “espírito do tempo” (“Zeitgeist”) que tão perversamente buscou justificar visões e práticas totalitárias de poder, a Escola Técnico-Jurídica, que teve em EMANUELE CARNEVALE e em VINCENZO MANZINI os seus corifeus, responsáveis, entre outros aspectos, pela formulação da base doutrinária que deu suporte a uma noção prevalecente ao longo do regime totalitário fascista – a noção segundo a qual não tem sentido nem é razoável presumir-se a inocência do réu!!!
 O exame da obra de VINCENZO MANZINI (“Tratado de Derecho Procesal Penal”, tomo I/253-257, item n. 40, tradução de Santiago Sentís Melendo e Mariano Ayerra Redín, 1951, Ediciones Juridicas Europa-América, Buenos Aires) reflete, com exatidão, essa posição nitidamente autocrática, que repudia “A chamada tutela da inocência” e que vê, na “pretendida presunção de inocência”, algo “absurdamente paradoxal e irracional” (“op. cit.”, p. 253, item n. 40). Mostra-se evidente, Senhor Presidente, que a Constituição brasileira promulgada em 1988 e destinada a reger uma sociedade fundada em bases genuinamente democráticas é bem o símbolo representativo da antítese ao absolutismo do Estado e à força opressiva do poder, considerado o contexto histórico que justificou, em nosso processo político, a ruptura com paradigmas autocráticos do passado e o banimento, por isso mesmo, no plano das liberdades públicas, de qualquer ensaio autoritário de uma inaceitável hermenêutica de submissão, somente justificável numa perspectiva “ex parte principis”, cujo efeito mais conspícuo, em face daqueles que presumem a culpabilidade do réu, será a virtual (e gravíssima) esterilização de uma das mais expressivas conquistas históricas da cidadania: o direito do indivíduo de jamais ser tratado, pelo Poder Público, como se culpado fosse. 
Vale referir, no ponto, a esse respeito, a autorizada advertência do eminente Professor LUIZ FLÁVIO GOMES, em obra escrita com o Professor VALÉRIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI (“Direito Penal – Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos/Pacto de San José da Costa Rica”, vol. 4/85-91, 2008, RT): “O correto é mesmo falar em princípio da presunção de inocência (tal como descrito na Convenção Americana), não em princípio da não-culpabilidade (…). Trata-se de princípio consagrado não só no art. 8º, 2, da Convenção Americana senão também (em parte) no art. 5º, LVII, da Constituição Federal, segundo o qual toda pessoa se presume inocente até que tenha sido declarada culpada por sentença transitada em julgado. Tem previsão normativa desde 1789, posto que já constava da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
 Do princípio da presunção de inocência (‘todo acusado é presumido inocente até que se comprove sua culpabilidade’) emanam duas regras: (a) regra de tratamento e (b) regra probatória. ‘Regra de tratamento’: o acusado não pode ser tratado como condenado antes do trânsito em julgado final da sentença condenatória (CF, art. 5º, LVII). O acusado, por força da regra que estamos estudando, tem o direito de receber a devida ‘consideração’ bem como o direito de ser tratado como não participante do fato imputado. Como ‘regra de tratamento’, a presunção de inocência impede qualquer antecipação de juízo condenatório ou de reconhecimento da culpabilidade do imputado, seja por situações, práticas, palavras, gestos etc., podendo-se exemplificar: a impropriedade de se manter o acusado em exposição humilhante no banco dos réus, o uso de algemas quando desnecessário, a divulgação abusiva de fatos e nomes de pessoas pelos meios de comunicação, a decretação ou manutenção de prisão cautelar desnecessária, a exigência de se recolher à prisão para apelar em razão da existência de condenação em primeira instância etc. É contrária à presunção de inocência a exibição de uma pessoa aos meios de comunicação vestida com traje infamante (Corte Interamericana, Caso Cantoral Benavides, Sentença de 18.08.2000, parágrafo 119).” (grifei)
 Disso resulta, segundo entendo, que a consagração constitucional da presunção de inocência como direito fundamental de qualquer pessoa – independentemente da gravidade ou da hediondez do delito que lhe haja sido imputado – há de viabilizar, sob a perspectiva da liberdade, uma hermenêutica essencialmente emancipatória dos direitos básicos da pessoa humana, cuja prerrogativa de ser sempre considerada inocente, para todos e quaisquer efeitos, deve prevalecer, até o superveniente trânsito em julgado da condenação criminal, como uma cláusula de insuperável bloqueio à imposição prematura de quaisquer medidas que afetem ou restrinjam a esfera jurídica das pessoas em geral. 
É por isso, Senhor Presidente, que ninguém, absolutamente ninguém, pode ser tratado como se culpado fosse antes que sobrevenha contra ele condenação penal transitada em julgado, tal como tem advertido o magistério jurisprudencial desta Suprema Corte: “O POSTULADO CONSTITUCIONAL DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA IMPEDE QUE O ESTADO TRATE, COMO SE CULPADO FOSSE, AQUELE QUE AINDA NÃO SOFREU CONDENAÇÃO PENAL IRRECORRÍVEL. – A prerrogativa jurídica da liberdade – que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) – não pode ser ofendida por interpretações doutrinárias ou jurisprudenciais que culminem por consagrar, paradoxalmente, em detrimento de direitos e garantias fundamentais proclamados pela Constituição da República, a ideologia da lei e da ordem. Mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, e até que sobrevenha sentença penal condenatória irrecorrível, não se revela possível – por efeito de insuperável vedação constitucional (CF, art. 5º, LVII) – presumir-lhe a culpabilidade. Ninguém pode ser tratado como culpado, qualquer que seja a natureza do ilícito penal cuja prática lhe tenha sido atribuída, sem que exista, a esse respeito, decisão judicial condenatória transitada em julgado. O princípio constitucional da presunção de inocência, em nosso sistema jurídico, consagra, além de outras relevantes consequências, uma regra de tratamento que impede o Poder Público de agir e de se comportar, em relação ao suspeito, ao indiciado, ao denunciado ou ao réu, como se estes já houvessem sido condenados, definitivamente, por sentença do Poder Judiciário. Precedentes.” (HC 96.095/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO) A necessária observância da cláusula constitucional consagradora da presunção de inocência (que só deixa de prevalecer após o trânsito em julgado na ação criminal) representa, de um lado, como já assinalado, fator de proteção aos direitos de quem sofre a persecução penal e traduz, de outro, requisito de legitimação da própria execução de sanções privativas de liberdade ou de penas restritivas de direitos.
 O fato, Senhor Presidente, é que o Ministério Público e as autoridades judiciárias e policiais não podem tratar, de forma arbitrária, quem quer que seja, negando-lhe, de modo abusivo, o exercício pleno de prerrogativas resultantes, legitimamente, do sistema de proteção institucionalizado pelo próprio ordenamento constitucional e concebido em favor de qualquer pessoa sujeita a atos de persecução estatal. Coerentemente com esse entendimento, tenho proferido decisões, no Supremo Tribunal Federal, que bem refletem a posição por mim ora exposta, como se vê, “p. ex.”, de decisão cuja ementa a seguir reproduzo: “– A privação cautelar da liberdade individual – qualquer que seja a modalidade autorizada pelo ordenamento positivo (prisão em flagrante, prisão temporária, prisão preventiva, prisão decorrente de decisão de pronúncia e prisão resultante de condenação penal recorrível) – não se destina a infligir punição antecipada à pessoa contra quem essa medida excepcional é decretada ou efetivada. É que a idéia de sanção é absolutamente estranha à prisão cautelar (‘carcer ad custodiam’), que não se confunde com a prisão penal (‘carcer ad poenam’). Doutrina. Precedentes. – A utilização da prisão cautelar com fins punitivos traduz deformação desse instituto de direito processual, eis que o desvio arbitrário de sua finalidade importa em manifesta ofensa às garantias constitucionais da presunção de inocência e do devido processo legal. Precedentes. – A gravidade em abstrato do crime não basta, por si só, para justificar a privação cautelar da liberdade individual do suposto autor do fato delituoso.
O Supremo Tribunal Federal tem advertido que a natureza da infração penal não se revela circunstância apta a legitimar a prisão cautelar daquele que sofre a persecução criminal instaurada pelo Estado. Precedentes. – A ausência de vinculação do indiciado ou do réu ao distrito da culpa não constitui, só por si, motivo autorizador da decretação da sua prisão cautelar. Precedentes. – A recusa em responder ao interrogatório policial e/ou judicial e a falta de cooperação do indiciado ou do réu com as autoridades que o investigam ou que o processam traduzem comportamentos que são inteiramente legitimados pelo princípio constitucional que protege qualquer pessoa contra a auto-incriminação, especialmente aquela exposta a atos de persecução penal. O Estado – que não tem o direito de tratar suspeitos, indiciados ou réus como se culpados fossem (RTJ 176/805-806) – também não pode constrangê-los a produzir provas contra si próprios (RTJ 141/512).
 Aquele que sofre persecução penal instaurada pelo Estado tem, dentre outras prerrogativas básicas, o direito (a) de permanecer em silêncio, (b) de não ser compelido a produzir elementos de incriminação contra si próprio nem constrangido a apresentar provas que lhe comprometam a defesa e (c) de se recusar a participar, ativa ou passivamente, de procedimentos probatórios que lhe possam afetar a esfera jurídica, tais como a reprodução simulada do evento delituoso e o fornecimento de padrões gráficos ou de padrões vocais, para efeito de perícia criminal. Precedentes. – O exercício do direito contra a auto-incriminação, além de inteiramente oponível a qualquer autoridade ou agente do Estado, não legitima, por efeito de sua natureza constitucional, a adoção de medidas que afetem ou restrinjam a esfera jurídica daquele contra quem se instaurou a ‘persecutio criminis’. Medida cautelar deferida.” (HC 96.219-MC/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJE 15/10/2008) Importante insistir na asserção, Senhores Ministros, de que o Supremo Tribunal Federal há de possuir a exata percepção de quão fundamentais são a proteção e a defesa da supremacia da Constituição para a vida do País, a de seu povo e a de suas instituições. A nossa Constituição estabelece, de maneira muito nítida, limites que não podem ser transpostos pelo Estado (e por seus agentes) no desempenho da atividade de persecução penal. Na realidade, é a própria Lei Fundamental que impõe, para efeito de descaracterização da presunção de inocência, o trânsito em julgado da condenação criminal. Veja-se, pois, que esta Corte, no caso em exame, está a expor e a interpretar o sentido da cláusula constitucional consagradora da presunção de inocência, tal como esta se acha definida pela nossa Constituição, cujo art. 5º, inciso LVII (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”), estabelece, de modo inequívoco, que a presunção de inocência somente perderá a sua eficácia e a sua força normativa após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. É por isso que se mostra inadequado invocar-se a prática e a experiência registradas nos Estados Unidos da América e na França, entre outros Estados democráticos, cujas Constituições, ao contrário da nossa, não impõem a necessária observância do trânsito em julgado da condenação criminal. Mais intensa, portanto, no modelo constitucional brasileiro, a proteção à presunção de inocência. Quando esta Suprema Corte, apoiando-se na presunção de inocência, afasta a possibilidade de execução antecipada da condenação criminal, nada mais faz, em tais julgamentos, senão dar ênfase e conferir amparo a um direito fundamental que assiste a qualquer cidadão: o direito de ser presumido inocente até que sobrevenha condenação penal irrecorrível. 330659. HC 126292 / SP 
Tenho para mim que essa incompreensível repulsa à presunção de inocência, Senhor Presidente, com todas as gravíssimas consequências daí resultantes, mergulha suas raízes em uma visão absolutamente incompatível com os padrões do regime democrático. Por isso mesmo, impõe-se repelir, vigorosamente, os fundamentos daqueles que, apoiando-se em autores como Enrico Ferri, Raffaele Garofalo, Emanuele Carnevale e Vincenzo Manzini, vislumbram algo “absurdamente paradoxal e irracional” na “pretendida presunção de inocência” (a frase é de Manzini). O Supremo Tribunal Federal, ao revelar fidelidade ao postulado constitucional do estado de inocência, não inviabiliza a prisão cautelar (como a prisão temporária e a prisão preventiva) de indiciados ou réus perigosos, pois expressamente reconhece, uma vez presentes razões concretas que a justifiquem, a possibilidade de utilização, por magistrados e Tribunais, das diversas modalidades de tutela cautelar penal, em ordem a preservar e proteger os interesses da coletividade em geral e os dos cidadãos em particular.
 A jurisprudência que o Supremo Tribunal vem construindo em tema de direitos e garantias individuais confere expressão concreta, em sua formulação, a uma verdadeira agenda das liberdades, cuja implementação é legitimada pelo dever institucional, que compete à Corte Suprema, de fazer prevalecer o primado da própria Constituição da República. Não custa rememorar que essa prerrogativa básica – a de que todos se presumem inocentes até que sobrevenha condenação penal transitada em julgado – está consagrada não só nas Constituições democráticas de inúmeros países (como o Brasil), mas, também, como anteriormente assinalado, em importantes declarações internacionais de direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana (1948), a Convenção Europeia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (1950), a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2000), a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (1981), a Declaração Islâmica sobre Direitos Humanos (1990), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969). Lembro-me de que, no passado, sob a égide autoritária do Estado Novo, editou-se o Decreto-lei nº 88/37, que impunha ao acusado o dever de provar, em sede penal, que não era culpado !!! Essa regra legal – como salientei no julgamento do HC 83.947/AM, de que fui Relator – consagrou uma esdrúxula fórmula de despotismo explícito, pois exonerou, absurdamente, o Ministério Público, nos processos por delitos contra a segurança nacional, de demonstrar a culpa do réu. O diploma legislativo em questão, com a falta de pudor que caracteriza os regimes despóticos, veio a consagrar, em dado momento histórico do processo político brasileiro (Estado Novo), a obrigação de o réu provar a sua própria inocência!!! Com efeito, o art. 20, n. 5, do Decreto-lei nº 88, de 20/12/1937, estabeleceu, nos processos por delitos contra a segurança do Estado, uma regra absolutamente incompatível com o modelo democrático, como se vê da parte inicial de seu texto: “presume-se provada a acusação, cabendo ao réu prova em contrário (...)” (grifei).
 É por isso que o Supremo Tribunal Federal tem sempre advertido que as acusações penais não se presumem provadas, pois – como tem reconhecido a jurisprudência da Corte – o ônus da prova referente aos fatos constitutivos da imputação penal incumbe, exclusivamente, a quem acusa. Isso significa que não compete ao réu demonstrar a sua própria inocência. Ao contrário, cabe ao Ministério Público comprovar, de forma  inequívoca, em plenitude, para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do acusado e os fatos constitutivos da própria imputação penal pertinentes à autoria e à materialidade do delito (RTJ 161/264-266, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.). É por tal motivo que a presunção de inocência, enquanto limitação constitucional ao poder do Estado, faz recair sobre o órgão da acusação, agora de modo muito mais intenso, o ônus substancial da prova, fixando diretriz a ser indeclinavelmente observada pelo magistrado e pelo legislador. O fato indiscutivelmente relevante, no domínio processual penal, é que, no âmbito de uma formação social organizada sob a égide do regime democrático, não se justifica a formulação, seja por antecipação ou seja por presunção, de qualquer juízo condenatório, que deve, sempre, respeitada, previamente, a garantia do devido processo, assentar-se – para que se qualifique como ato revestido de validade ético-jurídica – em elementos de certeza, os quais, ao dissiparem ambiguidades, ao esclarecerem situações equívocas e ao desfazerem dados eivados de obscuridade, revelam-se capazes de informar, com objetividade, o órgão judiciário competente, afastando, desse modo, dúvidas razoáveis, sérias e fundadas em torno da culpabilidade do acusado. Meras conjecturas – que sequer podem conferir suporte material a qualquer acusação penal – não se revestem, em sede processual penal, de idoneidade jurídica. Não se pode – tendo-se presente a presunção constitucional de inocência dos réus – atribuir relevo e eficácia a juízos meramente conjecturais, para, com fundamento neles, apoiar um inadmissível decreto condenatório e deste extrair, sem que ocorra o respectivo trânsito em julgado, consequências de índole penal ou extrapenal compatíveis, no plano jurídico, unicamente com um título judicial qualificado pela nota da definitividade, sempre importante advertir, na linha do magistério jurisprudencial e em respeito aos princípios estruturantes do regime democrático, que, “Por exclusão, suspeita ou presunção, ninguém pode ser condenado em nosso sistema jurídico-penal” (RT 165/596, Rel. Des. VICENTE DE AZEVEDO – grifei).
 Na realidade, os princípios democráticos que informam o modelo constitucional consagrado na Carta Política de 1988 repelem qualquer comportamento estatal transgressor do dogma segundo o qual não haverá culpa penal por presunção nem responsabilidade criminal por mera suspeita (RT 690/390 – RT 698/452-454). A jurisprudência desta Suprema Corte enfatiza, bem por isso, com particular veemência, que “Não podem repercutir contra o réu situações jurídico-processuais ainda não definidas por decisão irrecorrível do Poder Judiciário, especialmente naquelas hipóteses de inexistência de título penal condenatório definitivamente constituído” (RTJ 139/885, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Insista-se, pois, na asserção de que o postulado do estado de inocência repele suposições ou juízos prematuros de culpabilidade até que sobrevenha – como o exige a Constituição do Brasil – o trânsito em julgado da condenação penal. Só então deixará de subsistir, em relação à pessoa condenada, a presunção de que é inocente. Há, portanto, segundo penso, um momento, claramente definido no texto constitucional, a partir do qual se descaracteriza a presunção de inocência, vale dizer, aquele instante em que sobrevém o trânsito em julgado da condenação criminal. Antes desse momento, o Estado não pode tratar os indiciados ou os réus como se culpados fossem. A presunção de inocência impõe, desse modo, ao Poder Público um dever de tratamento que não pode ser desrespeitado por seus agentes e autoridades.
 Acho importante acentuar que a presunção de inocência não se esvazia progressivamente, à medida em que se sucedem os graus de jurisdição. Isso significa, portanto, que, mesmo confirmada a condenação penal por um Tribunal de segunda instância, ainda assim subsistirá, em favor do sentenciado, esse direito fundamental, que só deixará de prevalecer – repita-se – com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, como claramente estabelece, em texto inequívoco, a Constituição da República. Enfatizo, por necessário, que o “status poenalis” não pode sofrer – antes de sobrevir o trânsito em julgado de condenação judicial – restrições lesivas à esfera jurídica das pessoas em geral e dos cidadãos em particular. Essa opção do legislador constituinte (pelo reconhecimento do estado de inocência) claramente fortaleceu o primado de um direito básico, comum a todas as pessoas, de que ninguém – absolutamente ninguém – pode ser presumido culpado em suas relações com o Estado, exceto se já existente sentença transitada em julgado. Impende registrar, Senhor Presidente, que Vossa Excelência, no julgamento da ADPF 144/DF, de que fui Relator, bem destacou a importância de aguardar-se o trânsito em julgado da condenação criminal, demonstrando, à luz de dados estatísticos, uma realidade que torna necessário respeitar-se a presunção de inocência. Disse Vossa Excelência, então: “(...) trago, finalmente, nessa minha breve intervenção, à consideração dos eminentes pares, um dado estatístico, elaborado a partir de informações veiculadas no portal de informações gerenciais da Secretaria de Tecnologia de Informação do Supremo Tribunal Federal (...). De 2006, ano em que ingressei no Supremo Tribunal Federal, até a presente data, 25,2% dos recursos extraordinários criminais foram providos por esta Corte, e 3,3% providos parcialmente. Somando-se os parcialmente providos com os integralmente providos, teremos o significativo porcentual de 28,5% de recursos. Quer dizer, quase um terço das decisões criminais oriundas das instâncias inferiores foi total ou parcialmente reformado pelo Supremo Tribunal Federal nesse período.” (grifei) Não é por outro motivo que o Supremo Tribunal Federal tem repelido, por incompatíveis com esse direito fundamental, restrições de ordem jurídica somente justificáveis em face da irrecorribilidade de decisões judiciais. Isso significa, portanto, que inquéritos policiais em andamento, processos penais ainda em curso ou, até mesmo, condenações criminais sujeitas a recursos (inclusive aos recursos excepcionais interpostos para o Superior Tribunal de Justiça e para o Supremo Tribunal Federal) não podem ser considerados, enquanto episódios processuais suscetíveis de pronunciamento absolutório, como fatores de descaracterização desse direito fundamental proclamado pela própria Constituição da República. Essencial proteger a integridade desse direito fundamental (o direito de ser presumido inocente até o trânsito em julgado da condenação judicial) e destacar-lhe as origens históricas, relembrando – não obstante a sua consagração, no século XVIII, como um dos grandes postulados iluministas – que essa prerrogativa não era desconhecida pelo direito romano, como resultava de certas presunções então formuladas (“innocens praesumitur cujus nocentia non probatur”, p. ex.), valendo mencionar o contido no Digesto, que estabelecia, em benefício de quem era processado, verdadeiro “favor rei”, que enfatizava, ainda de modo incipiente, essa ideia-força que viria a assumir grande relevo com a queda do Ancien Régime. 
Finalmente, mesmo que não se considerasse o argumento constitucional fundado na presunção de inocência, o que se alega por mera concessão dialética, ainda assim se mostraria inconciliável com o nosso ordenamento positivo a preconizada execução antecipada da condenação criminal, não obstante sujeita esta a impugnação na via recursal excepcional (RE e/ou REsp), pelo fato de a Lei de Execução Penal impor, como inafastável pressuposto de legitimação da execução de sentença condenatória, o seu necessário trânsito em julgado. Daí a regra inscrita no art. 105 de referido diploma legislativo, que condiciona a execução da pena privativa de liberdade à existência de trânsito em julgado do título judicial condenatório: “Art. 105. Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução.” (grifei) Idêntica exigência é também formulada pelo art. 147 da LEP no que concerne à execução de penas restritivas de direitos: “Art. 147. Transitada em julgado a sentença que aplicou a pena restritiva de direitos, o Juiz da execução, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, promoverá a execução, podendo, para tanto, requisitar, quando necessário, a colaboração de entidades públicas ou solicitá-la a particulares.” (grifei) Vê-se, portanto, qualquer que seja o fundamento jurídico invocado (de caráter legal ou de índole constitucional), que nenhuma execução de condenação criminal em nosso País, mesmo se se tratar de simples pena de multa, pode ser implementada sem a existência do indispensável título judicial definitivo, resultante, como sabemos, do necessário trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Lamento, Senhores Ministros, registrar-se, em tema tão caro e sensível às liberdades fundamentais dos cidadãos da República, essa preocupante inflexão hermenêutica, de perfil nitidamente conservador e regressista, revelada em julgamento que perigosamente parece desconsiderar que a majestade da Constituição jamais poderá subordinar-se à potestade do Estado. Concluo o meu voto, Senhor Presidente. E, ao fazê-lo, peço vênia para acompanhar, integralmente, na divergência, os eminentes Ministros ROSA WEBER e MARCO AURÉLIO e deferir o pedido de “habeas corpus”, mantendo, em consequência, o precedente firmado no julgamento plenário do HC 84.078/MG, Rel. Min. EROS GRAU, reafirmando, assim, a tese de que a execução prematura (ou provisória) da sentença penal condenatória antes de consumado o seu trânsito em julgado revela-se frontalmente incompatível com o direito fundamental do réu, assegurado pela própria Constituição da República (CF, art. 5º, LVII), de ser presumido inocente.´
É o meu voto
Revista Consultor Jurídico, 23 de fevereiro de 2016.


segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

MPF reconhece incompetência de Moro para julgar fatos da Operação Lava Jato

Por Bruno Milanez
Há mais de dois anos, tudo o que se desenvolve no âmbito da 13ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Curitiba é noticiado como sendo decorrente da Operação Lava Jato.
Em realidade, no início dessa megaoperação, existiam quatro investigações paralelas – com nomes distintos -, cujo foco eram quatro supostos doleiros. Eram elas: Operação Bidione (investigado principal Alberto Youssef), Operação Dolce Vita(investigada principal Nelma Kodama), Operação Casablanca (investigado principalRaul Srour) e Operação Lava Jato (investigado principal Carlos Habib Chater).
Oportuno ressaltar que das supostas atividades delituosas desenvolvidas nestes quatro núcleos investigativos, apenas aquelas relativas à Alberto Youssef se passavam no Estado do Paraná. As demais atividades eram desenvolvidas em Brasília/DF e São Paulo/SP, sendo bastante duvidosa a existência de conexão ou continência entre elas, aptas a ensejar a reunião da investigação e do futuro e eventual processo parente um juízo único.
A propósito, tratando-se a conexão e a continência (arts. 76 e 77, do CPP) de causas de modificação de competência – e portanto, de exceção ao princípio do juiz natural -, suas regras devem ser interpretadas de forma restritiva.
Em outros termos, a conexão e continência devem estar demonstradas – e não apenas supostas – para que efetivamente se determine a formação do simultaneus processus. Caso contrário, havendo dúvida sobre a existência de causas conexas ou continentes, os casos penais devem ser investigados e processados separadamente, cada qual em seu juiz natural.
É por esta razão que o STJ somente reconhece a modificação de competência quando “evidenciada a conexão entre os crimes” (STJ – CC 114.841, Rel. Min. Gilson Dipp, DJe 17.8.2011). Ou seja, a conexão deve ser reconhecida quando forcristalina: “as provas encontram-se entrelaçadas e as infrações apresentam claro liame circunstancial, incidindo a regra inscrita no art. 76 do Código de Processo Penal.” – g. N. – (STJ – CC 125.503, Rel. Min. Alderita Ramos de Oliveira, DJe 30.8.2013)
Não é outra a solução adotada no direito comparado, que somente entende admissível o reconhecimento da conexão quando o vínculo seja cabalmente demonstrado e – mais! – a reunião de processos/inquéritos sejanecessária e não apenas possível:
“El nexo de unión: En todos estos casos aparece un material histórico que si bien no es simple, puede reducírselo procesalmente a una unidad, y aquí se descubre el objetivo de la competencia por conexión.
Pero planteados en esta forma los diversos casos, no se presenta con toda la precisión la conexidad; es necesario que efectivamente exista el vínculo de unión entre los diversos sujetos o hechosPara descubrirlo debemos remontarnos a las causas generadoras de los hechos y averiguar si no obstante la diversidad de personas y de acciones con variaciones en el tiempo y en el espacio, hay algún lazo que los une entre sí en forma que no sea sólo posible sino también necesaria la unificación de procedimientos. De otra manera no tendría objeto el apartamiento de las reglas generales y se crearía un sistema ilógico, perturbador de le administración de justicia.” (OLMEDO, 1945, p. 133) – g. N. –
Tudo o que se afirma serve de pano de fundo para concluir que no início da investigação dos fatos decorrentes das quatro operações inicialmente mencionadas (Casablanca, Dolce Vita, Bidione e Lava Jatonão havia liame concreto entre os fatos e os investigados que permitisse a reunião das investigações.
A propósito, essa questão foi reconhecida expressamente pelo Ministério Público Federal, que antes mesmo de oferecer denúncia em relação aos investigados naOperação Casablancareconheceu expressamente a incompetência territorial do Juiz Sérgio Moro (confira o parecer aqui), que ignorou a questão a até hoje segue competente para este caso penal.
Vale transcrever alguns trechos do parecer do MPF:
“Chama a atenção o fato de que todas as medidas de busca e apreensão ocorrerão emendereços situados no estado de São Paulo. Isso não ocorre à toa. Da investigação se infere que, se há crimes sendo praticados pelas pessoas físicas acima arroladas, esses crimes se estão consumando no estado de São Paulo. Se há operação sem autorização de instituição financeira (art. 16, da Lei 7.492/86), evasão de divisas (art. 22 da Lei 7.492/86) e lavagem de dinheiro (art.  da Lei9.613/98), tudo isso vem ocorrendo no estado de São Paulo, por meio de pessoas físicas e jurídicas com domicílios no estado de São Paulo. Não há um só endereço situado na área de Seção Judiciária Federal do Paraná. Não há notícia de qualquer crime praticado pelo grupo criminoso no Paraná.
(…) No presente caso, em que se caminha para o fim da investigação, já se percebe que os crimes investigados nos autos (…) vêm sendo praticados no estado de São Paulo. Este é o momento, portanto, de se analisar mais detidamente se esse Juízo é ou não competente territorialmente para a possível ação penal.
(…) [o encontro fortuito de provas], contudo, não implica que a competência para o caso fortuitamente encontrado seja do Juízo que autorizou a interceptação telefônica que resultou no encontro fortuito (…).
(…) Os autos mostram que os crimes aqui investigados vêm sendo praticadostodos no estado de São Paulo, então é na Seção Judiciária Federal de São Paulo que devem os crimes ser processados (…).
Não se verificar conexão ou continência necessária. Esse mesmo Juízo já reconheceu que as atividades do suposto grupo criminoso comandado por Raul Srour se desenvolvem de forma independente e não subordinada [autos 5047968-84.2013.404.7000, evento 3]. As atividades desse grupo podem ser provadas de maneira separada, sem que seja necessário recorrer às provas das atividades do grupo criminoso comandado por Nelma Kodama, tanto que foram instaurados autos apartados [autos 5049747-74.2013.404.7000] de interceptação telefônica e telemática específicos para as atividades do grupo criminoso comandado por Raul Srour. Também não há risco de decisões contraditórias, pois a prova da operação não autorizada de instituição financeira pelo grupo comandado por Raul Srour pode ser produzida e analisada de maneira autônoma, como tem ocorrido no final da investigação.
Ainda que houvesse conexão, este é o caso certo para a aplicação do art. 80 doCPP (…)
É interessante prever que, se todos as pessoas físicas e jurídicas investigadas têm domicílio no estado de São Paulo, e todas as provas nesse estado federado estão, então toda a instrução processual terá grande prejuízo, se realizada em Curitiba-PR (…). Não parece convir ao interesse público esse tipo de situação. (…).
(…) Observe-se que, se se considerar que há conexão pelo fato de na interceptação telefônica ou telemática um doleiro, atuante na cidade X, entrar em contato com outro doleiro, atuante na cidade Y, para efetuar alguma troca ou compensação de confiança no sistema dólar-cabo, então bastaria que o Juízo autorizador da interceptação deferisse prorrogações sucessivas da interceptação dos dois doleiros que por certo identificaria mais e mais doleiros e seria responsável, esse único Juízo, pelo processo e julgamento de todos os crimes de operação não autorizada da instituição financeira do Brasil envolvendo dólar-cabo, já que é próprio do sistema dólar-cabo o contato frequente entre doleiros (…) para trocas, compensações ou negócios informais.
(…)
A circunstância de os fatos supostamente delituosos haverem sido descobertos no mesmo procedimento investigatório (interceptação telefônica e telemática, por exemplo) não implica conexão entre eles, nem unidade de processo e julgamento.”
Uma palavra final: na qualidade de defensor do acusado Raul, espera-se sinceramente que o Tribunal Regional Federal, o Superior Tribunal de Justiça ou o Supremo Tribunal Federal cumpram a Constituição – notadamente no que se refere ao Juiz Natural – e reconheçam a incompetência territorial do juiz Sérgio Moro em relação a essa fatia da “Operação Lava Jato”. Afinal, não há, no Brasil – ainda que alguns queiram -, juiz com jurisdição universal!
REFERÊNCIAS
OLMEDO, Jorge A. Clariá. Competencia penal en la Republica Argentina. Buenas Aires: Deplama, 1945.
Transcrito do site JusBrasil de 22.02.2016.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Medidas do CNJ obriga juízes a investigar vazamento seletivo de inquéritos

O Conselho Nacional de Justiça aprovou, nesta terça-feira (16/2), uma série de medidas para tentar coibir o chamado “vazamento seletivo” de informações sigilosas colhidas em investigações criminais. A nova Resolução 217 altera artigos da regra do CNJ que trata de quebra de sigilo e interceptação telefônica e de endereços eletrônicos para obrigar o juiz a requerer a instauração de investigação, “sob pena de responsabilização”.
De acordo com o novo texto, o Judiciário é responsável por apurar a divulgação de informações sigilosas por qualquer um dos envolvidos em quaisquer ações que corram em segredo de Justiça. A resolução obriga o juiz a investigar os vazamentos mesmo que eles tenham partido do Ministério Público e da autoridade policial.
A resolução também cria uma série de obrigações ao juiz que determinar a quebra de sigilo ou que mandar grampear o telefone de investigador e acusados. O texto obriga o magistrado a escrever, na ordem, os indícios de autoria do crime, as diligências feitas antes do pedido de quebra de sigilo ou de grampo e os motivos pelos quais não seria possível obter a prova por outros meios.
O juiz também está obrigado a listar em sua decisão o nome dos policiais e membros do MP responsáveis pela investigação, bem como dos servidores, peritos, tradutores, escrivãos e demais técnicos que tenham acesso a ela.
A resolução repete o texto da Lei 9.296/1996, que trata da interceptação telefônica e de e-mail. Ou seja, a nova resolução do CNJ só permite os grampos por um período de 15 dias, renovável apenas uma vez, o que não estava descrito na redação da resolução original.
O processo em que foi discutida a nova resolução foi aberto pelo presidente do CNJ, ministro Ricardo Lewandowski, a pedido do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. O então presidente da OAB Marcus Vinícius Furtado Coêlho enviou ofício ao CNJ pedindo que a resolução que trata das interceptações fosse aperfeiçoada.
A petição de Marcus Vinícius foi enviada ao CNJ depois de queixas de políticos e advogados a respeito de vazamentos de trechos de investigações em que estão envolvidos, ou até de conversas telefônicas em que são citados, à imprensa e a adversários políticos.
Um dos casos que mais causou atritos em Brasília foi a divulgação de informações sigilosas dos inquéritos da operação acrônimo, que investiga o governador de Minas Gerais, Fernando Pimentel. O advogado de Pimentel, Pierpaolo Cruz Bottini, chegou a pedir ao relator do inquérito no Superior Tribunal de Justiça, ministro Herman Benjamin, que apurasse o vazamento, mas o inquérito ainda não foi concluído. 
Processo 0000467-47.2016.2.00.0000
Clique aqui para ler a nova resolução do CNJ.
Revista Consultor Jurídico, 16 de fevereiro de 2016.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Conciliação é a melhor alternativa para o Judiciário, diz ministro Marco Aurélio Buzzi

Entusiasta das práticas autocompositivas no Judiciário brasileiro, o ministro do Superior Tribunal de Justiça Marco Aurélio Buzzi participa do Movimento da Conciliação desde a criação do grupo, em 2006, pela então presidente do Conselho Nacional de Justiça, ministra Ellen Gracie. Recentemente, presidiu o grupo de trabalho instituído pelo presidente do CNJ, ministro Ricardo Lewandowski, que estabeleceu novos parâmetros curriculares para a formação de conciliadores e mediadores, buscando atender determinações do novo Código de Processo Civil.
Em entrevista sobre os cinco anos da Resolução 125, que instituiu a política judiciária nacional de solução de conflitos, o ministro do STJ faz uma avaliação da efetividade do ato normativo e as consequências de sua implantação para o Judiciário brasileiro. 
O Poder Judiciário brasileiro precisava de uma política nacional de solução de conflitos, quando da instituição da Resolução CNJ 125?
Marco Aurélio Buzzi — O Brasil é um dos países que, proporcionalmente, tem o maior número de processos no mundo. Quase um processo para cada dois habitantes. Temos também, proporcionalmente, o maior tribunal do mundo, que é o Tribunal de Justiça de São Paulo. Portanto, com esses dados todos, nós chegamos a uma conclusão de que, realmente com esse índice de litigiosidade, a nossa mentalidade precisa ser modificada. Na época, em 2010, quando foi criada a Resolução CNJ 125, uma das grandes preocupações do professor Kazuo Watanabe, que liderava o grupo de juristas e colaboradores que deu ensejo a essa resolução, era montar núcleos e centrais de conciliação que pudessem dar essa alternativa aos jurisdicionados e aos operadores do Direito. Uma alternativa mais rápida, muito mais barata e em que os próprios interessados procurassem construir uma solução para os seus problemas e, com isso, a pacificação social passasse a ser muito mais intensa, pois quando as partes constroem o acordo são elas mesmas que estão elaborando as condições de solução do conflito. Então, quando você faz o acordo, a chance de você resolver o conflito sociológico que existe por trás de toda a lide é muito maior.
E o senhor acha que nesses cinco anos a resolução cumpriu seu papel?
Marco Aurélio Buzzi —
 O processo judicial e a sentença, que são grandes conquistas da sociedade — e ninguém é contra o processo —, por via de regra solucionam a questão processual, e não o conflito que há por trás. Por exemplo, numa ação possessória, a sentença resolve aquele conflito que foi trazido à Justiça, mas não pacifica as pessoas. Eu fui juiz do interior e tive várias demandas em que eu, muito inábil naquela época, dei uma belíssima sentença confirmada por todas as instâncias superiores e que foram terríveis, muito inadequadas para o momento no aspecto do conflito sociológico. Mais tarde, eu aprendi que, antes de proferir uma sentença dessas, eu deveria chamar as pessoas não só para tentar compor quanto à lide em si, mas também para explicar as possíveis soluções consequentes e que as pessoas teriam que continuar convivendo como vizinhos de modo pacífico e civilizado. Não precisam se transformar em melhores amigos, mas conviver civilizadamente. Na história recente, a Resolução 125, a meu ver, veio como passo número um de mudança de mentalidade. Tanto é que eu creio firmemente que é em razão da Resolução 125 que está vindo a Lei 13.140, a lei da mediação, assim como o novo Código de Processo Civil.
O senhor que acompanha as mudanças nos tribunais do país, como avalia essa implementação?
Marco Aurélio Buzzi —
 Eu acho que temos dois enfoques a dar. O primeiro é que estamos em uma fase de mudança de mentalidade. Então, há quem esteja mais convicto de que esse é o caminho e há quem não esteja muito entusiasmado. O segundo enfoque é que realmente os números são muito bons. Temos em São Paulo, por exemplo, que é o carro-chefe da economia do país, aproximadamente 175 centros judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejuscs) já instalados. E, em todos os estados, já temos Cejuscs instalados, em alguns mais, outros menos, mas existem em todos. Minha avaliação é muitíssimo positiva. Estamos mudando a mentalidade e essas metas estão se concretizando. Em todo o Brasil, felizmente, estamos com operadores do Direito engajados nisso, os juízes, os promotores os advogados e, agora, estamos com duas leis tratando da questão, lei da mediação e o novo Código de Processo Civil.
O senhor presidiu o Grupo de Trabalho que criou novos parâmetros curriculares na formação de mediadores e conciliadores. Essa unificação também pode ser vista como avanço?
Marco Aurélio Buzzi —
 Todas as regiões do Brasil já receberam cursos de conciliação e mediação. Agora, com os novos parâmetros curriculares estabelecidos, fixados pelo grupo de trabalho criado pelo ministro Lewandowski exatamente para esse fim, será feita uma formação uniforme em todo o país. A vantagem é que agora há parâmetros para orientar, havendo liberdade para ajustes por parte dos tribunais, desde que obedeçam esses parâmetros básicos. Hoje, temos no Brasil métodos muito diferentes de formação, que chegam a ser divorciados em alguns lugares no país.
No que o Brasil precisa ainda avançar nesse quesito?
Marco Aurélio Buzzi —
 Eu creio que a mudança de mentalidade é a principal questão e penso que o caminho está nas universidades. No ano que vem, muito provavelmente, teremos que dar uma atenção especial ao currículo das faculdades de Direito. Porque, se antes era uma questão opcional, agora não. Para os alunos de faculdade temos de ensinar Direito, e o Direito agora diz que a solução de conflitos é lei. Não se trata só de uma política do CNJ. Será que as faculdades não vão ensinar a nova lei de mediação e o novo Código de Processo Civil? Essa fase inicial de mudança de mentalidade, com muita convicção, foi vencida, e as novas leis provam essa grande vitória. Em todos os tribunais, já existem os Núcleos Permanentes de Solução de Conflitos, também previstos com muito mérito na Resolução CNJ 125, que são a gerência dos Cejuscs de cada tribunal. O que precisamos agora é aperfeiçoar o sistema.
Qual o futuro da conciliação no Brasil?
Marco Aurélio Buzzi —
 Se ela não é a alternativa, é uma delas. Creio que essas práticas vão cada vez mais se aperfeiçoar, se instalar e ficar conhecidas. Porque é um método simples e barato para as partes e para o Estado em termos de tempo e de custos. Li em uma revista nesta semana uma reportagem muito interessante sobre as empresas que estão ouvindo os consumidores e modificando suas estruturas internas para atender os usuários. É isso. Precisamos ter mais diálogo, troca positiva de impressões, fazer às vezes troca de posições para que um pense com a perspectiva do outro. Dessa forma, teremos cada vez mais não só a solução da lide, mas também do conflito. Teremos a pacificação social que se busca. Nós precisamos chegar lá para reduzir esse número de processos que temos no país. 
Com informações da Assessoria de Imprensa do STJ.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Sistema de Justiça criminal: construído para não funcionar

Ronald Biggs, ao vir para o Brasil na década de 1970, após roubar o trem pagador na Inglaterra, sabia que aqui era um ótimo refúgio para permanecer impune. Passados mais de 40 anos e apesar do admirável trabalho feito na "lava jato", pouco mudou. Sério. Perguntem a Battisti, Maluf e Del Nero.
Ao se olhar o sistema de Justiça criminal brasileiro, tem-se a impressão de que ele foi meticulosamente desenhado para não funcionar. Nos diversos momentos em que se desdobra a persecução penal, ali e acolá se notam a distribuição inadequada de incentivos, a alocação ineficiente de recursos e o design irracional do sistema. Um curto tour permite mostrar as deficiências e imperfeições que o caracterizam.
a) Desigualdade material e simbólica
Embora vivamos numa sociedade em que o mercado produz constantes desigualdades econômicas, isso não deveria reproduzir-se no tratamento político-jurídico dos cidadãos. A desigualdade social gera dois tipos de clientes penais: os do andar de cima e os do andar de baixo. Os primeiros possuem automóvel, estudaram em escolas particulares e têm plano de saúde. O lumpemproletariado criminal faz uso do transporte coletivo, se frequentou, foram escolas públicas, e cuida da saúde no SUS. A diferenciação existente, por incrível que pareça, tem reconhecimento jurídico: foro privilegiado, suspensão de ação penal contra parlamentares, escolha de local, dia e hora para juízes e promotores deporem, prisão especial para advogados, isenção de serviço do júri para vereadores. Desde a Constituição do Império, o Supremo Tribunal de Justiça julgava seus ministros, os das relações, os empregados no corpo diplomático e os presidentes das províncias (artigos 163 e 164). Passados quase 200 anos, são apenas aparentes as alterações havidas no tratamento diferenciado de pessoas em nossa sociedade.
A prerrogativa de função, por jogo de palavras, oculta seu real papel: proteger determinadas pessoas, viscondes, duques e barões do século XXI. Ela se aplica a toda e qualquer infração praticada por ocupantes de determinados cargos públicos, tenham ou não relação com o exercício funcional, tal como o desembargador que cometa crime doloso contra a vida[1]. Mesmo que as infrações tenham sido praticadas anteriormente à assunção da função pública, emerge o foro privilegiado concomitantemente à diplomação ou à posse[2]. Se, por exemplo, parlamentares estiverem licenciados para o exercício de atribuições no Poder Executivo, como secretários de Estado ou ministros, e pratiquem infração penal, serão julgados em razão do mandato para o qual foram eleitos[3]. Protege-se o cargo, sem que a conduta ilícita guarde relação com ele.
Nenhum outro Estado possui leque de competências penais em razão do cargo tão amplo quanto o Brasil. A Constituição de 1988, querendo ser republicana, mostrou-se quão aristocrática é. A situação torna-se mais grave porque o STF percebeu que não tem condições de processar todas as grandes investigações em que estiver envolvido titular de foro especial e, como solução, repartiu o trabalho com as demais instâncias. A condução de inquéritos e ações em variados juízos, envolvendo fatos interdependentes, importa em duplo dispêndio de esforços, gera desencontros na decretação de sigilo nos autos, sem falar na falta de sintonia na determinação de prisões e medidas cautelares reais. Aprecia-se a mesma situação jurídica mais de uma vez por juízos distintos, tudo em nome do foro privilegiado.
A par da desigualdade simbólica, temos a material, que completa o panorama de iniquidade. Relatório confeccionado pelo Departamento Penitenciário Nacional, em junho de 2013, considerando o universo de 505.133 presos do sexo masculino, revela que apenas 1.868 possuem nível superior completo, o que representa 0,3698% do total[4]. É fato notório que réus hipossuficientes, como não possuem condições de arcar com honorários advocatícios, têm sua defesa patrocinada por defensores dativos ou públicos. O trabalho mal remunerado do primeiro e o excesso de demandas do segundo torna a defesa técnica uma tarefa que se vê rotineiramente prejudicada, fazendo com que condenações de réus de baixa renda sejam produzidas em larga escala. Em face desse quadro, a existência de Defensoria Pública apropriadamente estruturada, capaz de bem lidar com a demanda processual, contribuiria muito para a postergação da decisão final, tal como ocorre em processos patrocinados por advogados constituídos e regiamente pagos. É provável que o meio mais eficaz de se reduzir a população prisional brasileira seria assegurar defesa técnica competente a cada um dos réus do andar de baixo.
b) Presunção de inocência
O modelo brasileiro elegeu o trânsito em julgado como termo final da presunção de inocência, seguindo o mesmo tom de Portugal e Itália. Distanciou-se do padrão adotado por Alemanha, Espanha, França e Estados Unidos.
A confluência do tardio fim da presunção de inocência com a morosidade do processo penal tolhe atitudes que atinjam a esfera jurídica do acusado, de modo que a sensação de impunidade expande-se pela sociedade[5]. Exemplo emblemático dessa situação é o caso do homicídio praticado contra o juiz de Direito Alexandre Martins, em Vitória (ES). Um dos mandantes do crime saiu da sessão do Tribunal do Júri direto para o conforto do lar após ter sido condenado a 23 anos de reclusão[1]. O reconhecimento do direito de recorrer em liberdade permitirá que ele aguarde por mais alguns quinquênios — mais de 12 anos se passaram entre a prática do crime e o julgamento — até que a soberana decisão dos jurados seja ratificada e ele (possivelmente) se torne culpado. Diversamente do que ocorre em outros países, a sentença condenatória não afasta a presunção de inocência, que permanece hígida como se a condenação só tivesse valor quando reconhecida pelo STF. Ao estilo Goebbels, a sentença penal é como uma mentira que, se repetida várias vezes, convola-se em verdade.
c) Processo penal 3-D
O Habeas Corpus tem conotação universal, mas no Brasil, em razão das peculiaridades do extravagante sistema de Justiça penal, adquiriu estatura que não se tem notícia haja similar em outra parte do globo. Superficial pesquisa no banco de dados do STF permite aferir que tudo se resolve por meio de Habeas Corpus: aplicação do princípio da insignificância (HC 94.770), nulidade de interrogatório por videoconferência (HC 90.900), impedimento de magistrado (HC 92.893) e ordem de precedência de sustentação oral no julgamento de recurso (HC 87.926).
Hoje, ele é manejado antes mesmo de o processo se iniciar — para trancamento de inquérito policial — e independentemente de existir concreta ameaça ou restrição à liberdade de ir e vir. Atuando como juiz federal, foi-me possível notar como a defesa do acusado estrutura-se em estilo 3-D. Explicando melhor: contra a irrecorrível decisão que recebe a denúncia impetra-se Habeas Corpus. Negado, impetra-se outro, e assim por diante. Quando muito, em vez de novo Habeas Corpus, utiliza-se o recurso ordinário, em decorrência da virada jurisprudencial operada em 2012 no STF. Não admitido pelo juiz o desentranhamento de prova supostamente ilícita, durante o curso do processo, procura-se obter no tribunal a exclusão, por meio da ação constitucional. Condenado o réu em primeira instância, interpõe-se o writ sob o argumento de ilegalidade na fixação da pena. Dessa forma, o acusado consegue discutir em várias instâncias, simultaneamente, a mesma questão jurídica. A defesa tem, portanto, atuação bi ou tridimensional, contando com o mais rápido desfecho do julgamento do Habeas Corpus para influenciar e/ou alterar o resultado em primeira instância. Assim, antes mesmo que a sentença tenha sido proferida e a suposta prova ilícita analisada em caráter final, provavelmente a questão já foi submetida a todas as instâncias superiores, em autêntica multiplicação de dimensões defensivas.
d) Prescrição
Regra elementar de Economia prescreve que as pessoas reagem a incentivos[6]. No processo penal brasileiro, pessoas dotadas de mínima inteligência sabem que recorrer o maior número de vezes possível apresenta baixo custo e pode acarretar excelente benefício: impunidade. Logo, há verdadeiro incentivo para se recorrer.
A prescrição (statute of limitation) nos Estados Unidos apenas tem aplicação no período dentro do qual o processo penal ainda não se iniciou, pois seu propósito é assegurar a pronta persecução penal[7]. Iniciado o processo, não há espaço para prescrição superveniente, retroativa ou em perspectiva. Não há prescrição para terrorismo, por exemplo, mas, em regra, para a maioria dos crimes federais, o prazo para que se dê início à ação penal é de cinco anos. A regulamentação da prescrição geralmente requer que o agente permaneça no Estado onde o processo tramita, empregado e visível, isto é, que ele seja “capturável”. Ao contrário, se o agente vive como fugitivo, isso impede que o prazo prescricional tenha curso[8].
A situação é totalmente diversa no Brasil. O réu condenado definitivamente, que aguardou por anos o julgamento em liberdade, se optar por evadir-se após tomar conhecimento da expedição do mandado de prisão, permanecerá impune desde que expirado o prazo prescricional. Em Direito Civil, é antiga a regra de que ninguém pode beneficiar-se da própria torpeza. Esse preceito parece não incidir no Direito Penal. O acusado, caso fuja e permaneça em local incerto e não sabido, impedindo a execução da pena, beneficia-se ao furtar-se à aplicação da lei penal, por maior que sejam os esforços e os custos havidos pelo Estado para localizá-lo.
Não se tenciona eliminar a prescrição do sistema de Justiça penal porque, em boa parte das situações, ela é importante para estabilizar relações sociais. Porém, a única justificativa para mantê-la em toda e qualquer situação seria a busca de eficiência das autoridades encarregadas da persecução penal. Contudo, o que se observa na rotina forense é que a prescrição, se não exerce nenhum, tem muito pouco efeito intimidador, no sentido de obrigar as autoridades a zelar pela regular condução processual. Ao contrário, a ocorrência da prescrição muitas vezes tem efeito liberador. Jader Fontenelle Barbalho e Marta Teresa Suplicy, porque completaram 70 anos de idade, tiveram o prazo prescricional reduzido à metade e, em decorrência, foi extinta a punibilidade pelo reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva. No caso dele, as denúncias das ações penais 374, 397 e 398 haviam sido recebidas em 20/2/02, 17/9/02 e 1/12/04, respectivamente. Em 2015, os mais de dez anos de tramitação processual aliados ao redutor etário fizeram com que se chegasse a um único resultado: quatro processos a menos para serem julgados.
Tal como é hoje regulamentada, a prescrição conta com mais imperfeições do que predicados: a prescrição retroativa, que não possui congênere em nenhum lugar do mundo, foi limitada apenas à fase judicial, quando deveria ser abolida; crimes de extrema gravidade, tal como o homicídio qualificado, são prescritíveis; não há previsão de causas interruptivas na fase recursal; e assim como o acusado pode beneficiar-se, por agir proteladoramente ao interpor recursos temerários, também será favorecido com sua fuga após responder ao processo em liberdade.
e) Recursos
São célebres os casos de réus do andar de cima que conseguiram procrastinar o advento da condenação definitiva e mesmo afastá-la em razão da prescrição. Para isso, valeram-se de ampla gama de recursos durante o processo. O jornalista Pimenta Neves foi acusado de ter cometido homicídio contra sua namorada em 20/8/00. O processo transitou em julgado em 3/11/11, e o STF, na tentativa de fazer céleres os procedimentos, determinara a imediata prisão do acusado, o que ocorreu em 24/5/11. Ele utilizou os recursos processuais legalmente previstos e valeu-se da presunção de inocência para permanecer em liberdade por mais de uma década, porém não teve a mesma sorte do ex-jogador de futebol Edmundo, que teve todas as acusações atingidas pela prescrição. Edmundo foi acusado de ter cometido três homicídios culposos e três lesões corporais culposas quando dirigia seu automóvel. As infrações ocorreram em dezembro de 1995, e o Recurso Especial 302.636 permaneceu mais de nove anos tramitando no STJ. Em decorrência, todos os crimes prescreveram, considerando-se as penas isoladamente aplicadas.
Um especialista em engenharia de produção, que detém conhecimentos de administração, economia e engenharia e os aplica na racionalização do trabalho, não teria dúvida em nomear o sistema recursal brasileiro como absolutamente irracional. A possibilidade de submeter cada processo a quatro instâncias diferentes; a permissão de se manejar ações autônomas simultaneamente aos recursos interpostos; a consideração apriorística de que toda e qualquer decisão seja impugnável; o baixo custo em acessar as vias superiores, que se faz acompanhar pela inconsequente utilização delas, tudo isso mostra o alto grau de desorganização. Afora o caráter obtuso, parece não fazer parte do cálculo econômico o custo de se manter estrutura agigantada, como se recursos públicos fossem inesgotáveis, e a realidade nacional mais abonada do que a de nações nórdicas. Isso explica em parte porque o Brasil gasta 1,24% do PIB com o Poder Judiciário, ao passo que o Japão e Noruega despendem 0,065%[9].
Em síntese, só não se fecham as portas do sistema de Justiça penal porque os órgãos públicos, por mais deficientes que sejam, não estão sujeitos à falência. Existe um apagão judicial fruto de esgotamento. Não é à toa que oWorld Justice Project mostra os mais importantes indicadores da Justiça criminal brasileira bem abaixo da média da América Latina e Caribe[10]. Caso mudanças não sejam feitas, persistirá em vigor um sistema de Justiça criminal que constantemente viola direitos individuais, ao mesmo tempo em que é detentor de capacidade de punir crimes muito aquém do número de delitos cometidos. Em suma, continuará em atividade um sistema de Justiça, no mínimo, exótico e disfuncional.
Encerro aqui minha participação. Na próxima semana, retornam as imperdíveis colunas de Vladimir Passos de Freitas.

[1] HC 83.583/PE, rel. min. Ellen Gracie, 2ª Turma, DJ 7/5/04, p. 47.
[2] Inq. 571 QO/DF, rel. min. Sepúlveda Pertence, Pleno, DJ 5/3/93, p. 2897.
[3] Inq. 1070 QO/TO, rel. min. Sepúlveda Pertence, Pleno, DJ 11/10/01, p. 5.
[4] Disponível em http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/transparencia-institucional/estatisticas-prisional/anexos-sistema-prisional/total-brasil-junho-2013.pdf.
[5] HADDAD, Carlos Henrique Borlido.  A real dimensão da presunção de inocência. In A renovação processual penal após a constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 76.
[6] MANKIW, N. Gregory. Introdução à economia. Tradução da 5ª ed. São Paulo: Cengage Learning, 2012, p. 7.
[7] DOYLE, Charles. Statutes of Limitation in Federal Criminal Cases: An Overview. Disponível em https://www.fas.org/sgp/crs/misc/RL31253.pdf.
[8] “No statute of limitations shall extend to any person fleeing from justice...” (18 U.S.C. 3290). DOYLE, op. cit.
[9] PALUMBO, Giuliana et alli. Judicial performance and its determinants: a cross- country perspective. OECD Economic Policy Papers, n. 5, jun., 2013, p. 20.
[10] Disponível em http://data.worldjusticeproject.org/#/groups/BRA
 é juiz federal, professor adjunto da Faculdade de Direito da UFMG e pós-doutor pela Universidade de Michigan.

Revista Consultor Jurídico, 31 de janeiro de 2016.