terça-feira, 27 de março de 2018

Acesso à Justiça: Resolução de conflitos pela arbitragem

Número de processos em câmaras de arbitragem dobra em cinco anos

O número de ações abertas em câmaras de arbitragem no Brasil dobrou nos últimos cinco anos, alcançando a marca de 333 processos em 2017. O valor envolvido na forma privada de resolução de conflitos sobre questões contratuais, uma alternativa à Justiça comum, saltou de R$ 4,7 milhões para R$ 23,6 bilhões desde 2012, segundo levantamento do jornal O Globo.
Na arbitragem, regulada em lei desde 1996, mas considerada constitucional pelo Superior Tribunal de Justiça somente em 2001, as disputas são decididas por árbitros especialistas no assunto tratado, escolhidos pelas próprias partes.
Não há a figura do juiz, o que é visto como uma vantagem pela maioria. “O juiz é um generalista. Não está em sua rotina o tratamento de contratos complexos. Eles existem expertise específica”, diz Carlos Forbes, presidente do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil-Canadá (CAM-CCBC), maior câmara de arbitragem do país.
Outro principal ponto positivo para quem utiliza as câmaras é a agilidade com que o processo pode ser julgado. O tempo médio de tramitação nesse sistema é de 16 meses, diante dos mais de 5 anos previstos pelo Conselho Nacional de Justiça para que uma sentença seja proferida na Justiça. Além disso, a arbitragem tem também o sigilo absoluto como um diferencial.
Segundo o jornal, um ponto que pode ter ajudado no crescimento do número de ações privadas foi uma mudança na legislação que aconteceu em 2015. Desde então, os órgãos públicos diretos e indiretos entraram na lista de quem pode utilizar esse recurso. A disputa tramitando atualmente entre a Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp) e o grupo Lira é um exemplo.
“Com a crise econômica, tornou-se mais comum a dificuldade de cumprimento de contratos, e essas questões acabaram terminando em arbitragem. Isso é nítido em setores como os de energia e construção civil e em acordos como os de joint ventures”, disse a advogada Selma Lemes, especialista em arbitragens, ao apresentar outro possível argumento para o crescimento das ações em câmaras de arbitragem.
Queda no valor médio
Para Carlos Forbes, presidente da CAM-CCBC, uma das consequências da popularização da arbitragem é a queda nos valores em disputa — embora o sistema privado ainda seja considerado caro e compensatório apenas para disputas superiores a R$ 1 milhão. Em 2017, o valor médio das ações foi de R$ 84,5 milhões — 47% mais barato que em 2016 e o mais baixo dos últimos quatro anos. 
Revista Consultor Jurídico, 12 de março de 2018.

sexta-feira, 23 de março de 2018

Segundo grau esgota a questão de fato?

Por Lenio Streck
Consta que hoje estará em pauta o Habeas Corpus preventivo do ex-presidente Lula. Parece óbvio que a discussão envolve, inexoravelmente, aquilo que consta especialmente nas ADCs 43 e 44. Afinal, o artigo 283 é ou não é constitucional? Pelo que se viu, foi um parto esse “remédio heroico” entrar em pauta. Pensei que o HC tinha virado uma ação subsidiária. Isso é o que dá não pautar temas relevantes como esse da presunção da inocência. Tivessem já sido julgadas as ADCs e esse HC não teria se transformado em algo dramático.
Talvez eu tenha sido quem mais escreveu sobre esse tema. Só aqui na ConJur foram mais de 15 artigos e colunas (por todos, este texto). Não vou me repetir. Apenas quero contribuir com um ponto ainda pouco abordado por um ângulo jusfilosófico. Tem sido dito, para justificar o não cumprimento do artigo 283 do CPP e os dispositivos constitucionais que tratam da presunção da inocência, que a segunda instância esgota a discussão fática, restando ao STJ e ao STF discutirem as questões de direito. Isso é tão simples assim? Sustenta-se que o trânsito em julgado da facticidade já ocorreria após a segunda instância. Logo, “silogisticamente”, em não mais havendo nada a discutir sobre a prova, o cumprimento da pena deve ser iniciado. Simples assim. Ou não.
A questão é saber: é possível cindir questão de fato de questão de direito? Autores como Castanheira Neves (“toda questão de fato é sempre uma questão de direito e vice-versa, pois o direito é parte integrante do próprio caso; quando o jurista pensa o fato, pensa-o como matéria do direito, quando pensa o direito, pensa-o como forma destinada ao fato”),[1] Perelman, Sergi Guasch (“o problema dos fatos e o problema do direito é o resultado de um verdadeiro paralogismo processual que tem ocasionado desvios patológicos de ordem teórica”), Ovídio Baptista e uma infinidade de juristas já trataram dessa falsa dicotomia e a desmi(s)tificaram. Disseram um sono não.
Essa desmi(s)tificação ocorre a partir de vários ângulos: i) a cisão é uma decorrência da velha subsunção e do silogismo – portanto, inadequada em termos paradigmáticos; ii) a partir da filosofia, mostrando a impossibilidade de separar ser e ente (sempre chamei a isso de cisão metafisica de caráter ontoteológico); iii) sob outro ângulo, Friedrich Müller mostrou a impossibilidade de cindir texto e norma. De tanto que já escrevi sobre isso, inclusive em textos em homenagem a Castanheira Neves e a Friedrich Müller, penso não ser necessário me alongar.
O que quero dizer? Que, além de incindibilidade entre questão de fato e questão de direito, há toda a fragilidade da nossa operacionalidade. Ou seja, nossa “questão de fato” não é bem tratada. Por vezes, vejo brandirem o direito norte-americano para sustentar a tese da prisão imediata. Mas isso entra no Brasil como uma vulgata. O uso do direito norte-americano como modelo é tão vulgata quanto a história da ponderação importada de uma inadequada leitura de Alexy. É só vermos como isso é feito: “De um lado, o interesse tal; de outro, como se fosse uma maçã em cada mão, o interesse tal”, eis a caricatura da ponderação à brasileira. E, fiat lux, sai a decisão. Vão me dizer que, quando alguém é condenado em segundo grau com base em uma ponderação à brasileira (katchanga), o recurso especial consegue cindir fato e direito? Ora, se fazer ponderação sem ponderar é uma fraude, como dizer que o segundo grau esgota a discussão? Me enganem, que eu não gosto...
Na verdade, há que se admitir que a tese de que é possível prender a partir do segundo grau é uma tese moral. Não é uma tese jurídica. A tese moral é a de que “devemos combater a impunidade”. Ou devemos “atender o clamor das ruas” (o que é isto — o clamor?). Mas, pergunto: uma lei e a própria CF podem ceder a esses argumentos? Então podemos substituir a lei pela moral ou por argumentos de clamor social, que é tão fácil de captar como dizer que em 193 países a presunção da inocência não é como no Brasil? Sim? Não? Isso é verificável?
Com o declínio da doutrina, as práticas judiciárias institucionalizaram o uso de argumentos finalísticos, como aquilo que venho denominando de Target Effect (Fator Alvo): atira-se a flecha a esmo e depois pinta-se o alvo. Margem de erro: zero. Desculpem-me, mas um país que confunde direito penal com política social de controle de massas está com seríssimos problemas de compreensão sobre o próprio sentido do Direito. Pergunto: por que ainda temos cursos de pós-graduação ensinando coisas que vão na contramão do que se pratica todos os dias no judiciário? Hoje o professor de direito constitucional virou um subversivo, porque ensina coisas como “garantias que podem atrapalhar” o “combate à impunidade”. Defender a legalidade virou um ato revolucionário.
Mas existem argumentos que vão mais longe na ânsia de defender a prisão já a partir do segundo grau. Dia desses o advogado José Paulo Cavalcanti Filho disse que, dos 194 países do mundo, só o Brasil é que teria esse privilégio. Para começar, doutor José Paulo, talvez o Brasil tenha “isso” porque...está na Constituição (aliás, no referido texto ele nem fala no artigo 283 do CPP — por que será?). Como professor de Direito Constitucional, ele deve saber disso, pois não? Fico imaginando a pesquisa essa que constatou ser o Brasil o único que possui esse “privilégio”. Poxa: de 194, países, 193 prendem logo, já a partir do segundo grau? Como será o sistema do Butão? Dá bem para comparar o sistema processual do Afeganistão com o Brasil? O sistema da Arábia Saudita é que deve ser bom... E o que diz a Constituição do Nepal sobre “prisão após segundo grau”? Onde está essa pesquisa? Deve ser como a pesquisa que diz que todos os dentistas brasileiros preferem Colgate. E se eu colocar um “não”, o que muda?
E mesmo que existisse tal pesquisa, pergunto: como comparar ovos com caixa de ovos (me remeto a Bobbio)? E dizer que a Alemanha executa já em segundo grau não é bem assim. E, vamos lá: mesmo que fosse, há peculiaridades que o professor José Paulo desconhece ou não quis contar, como o modo como são julgados os processos em primeiro e segundo graus e os recursos e seu recebimento etc. Por que não falar de Portugal, cujos processos de primeiro grau já são julgados por três juízes? Dá para comparar ovos com caixa de ovos? E nos EUA? Quer comparar? Decisões de júri ou de segundo grau de lá com os julgamentos daqui, em que a denúncia é recebida em três linhas com base no in dubio pro societate (que deve estar na Constituição do Burundi, mas na nossa, não) e ainda se inverte o ônus da prova... Sem esquecer que o júri no Brasil (tem quem sustenta que decisão do júri já deve ser executada desde logo) decide por íntima convicção. Incrível. Intima convicção. O réu é condenado por íntima convicção (“porque sim”) e a matéria “de fato” está esgotada? E ainda vamos comparar os 193 (sic) países com o Brasil? Como será que funciona em Pasargada?
Eis o ponto. Enquanto no Brasil: a) termos julgamentos invertendo o ônus da prova, b) termos comportamentos como o juiz do Ceará que esculachou e fez bullying com a advogada, c) termos juízes que, de antemão, negam acesso da defesa às provas, e) termos conduções coercitivas até de testemunhas, f) quedarmo-nos silentes quando um juiz manda o advogado sair da sala na hora em uma testemunha for depor, g) um tribunal regional federal declarar que o MP não precisa ter isenção para processar alguém; h) membros do MP sustentarem, em peças processuais, que prova é uma questão de crença e probabilismo, i) e uma ex-ministra que foi corregedora do STJ diz que viu vazamentos e nada fez; j) não nos importarmos quando uma juíza — que faltou à aula sobre princípios — dizer não aplicar a insignificância porque não está na lei e... na sequência, o leitor pode acostar milhares de narrativas..., enquanto tivermos o quadro acima, esse ensino jurídico, esse tipo de interpretação de direitos e garantias, de que modo é possível sustentar que há uma cisão entre questão de fato-questão de direito?
Pergunto: é possível discutir, em recurso especial ou até mesmo extraordinário, uma questão jurídica desindexando a questão de fato que “já se esgotou”? Sim, sei que a Súmula 7 (muito antiga) já institucionaliza esse procedimento. Por ela, diz-se que não se pode examinar matéria de fato. Claro. Só que, para dizer isso, tem de se saber qual é a questão de fato. Dia desses, li uma decisão do STJ que aplicou a Súmula 7 dizendo que a decisão do conselho de sentença foi contrária à prova dos autos, sendo que a corte de segundo grau se baseou nos depoimentos colhidos durante a instrução probatória, assim como na causa mortis descrita no exame de corpo de delito... E não conheceu do recurso. Ou seja, para saber que a matéria tinha sido examinada e bem examinada, o STJ não examinou a matéria fática? Então: para dizer que algo não é, tenho que ver esse “algo”, pois não? A desindexação de fato e direito não passa de mera ficção.
Escrevi sobre a impossibilidade dessa cisão de há muito (20 anos, talvez). O intérprete não se depara com fatos desnudos para depois colocar o sentido. Do mesmo modo, o exame de um caso é impossível cindindo questão de fato de questão de direito. Por que o STF faz repercussão geral? Baseado na repercussão que a “questão de direito” tem sobre todo o sistema jurídico e a sociedade. Repercute onde e sobre o quê? Ou seja, essa análise de repercussão já é uma “questão de fato”, isto é, a questão de direito vem eivada de facticidade.
Vamos a um exemplo corriqueiro: prova ilícita é violação de lei federal e da CF. De que modo, em sede de recurso especial ou extraordinário, vamos discutir prova ilícita sem discutir se existiu ou não o seu uso? Isso é fato ou direito? Quanta ficção, pois não? E quando o tribunal diz que não há nulidade sem prejuízo (e dito em francês “pas de nullité"... fica mais chique ainda), pergunto: quando o STJ ou o STF dizem isso eles se baseiam em que tipo de “questão”?
Ficções da realidade e realidade das ficções. A dogmática jurídica parece que esqueceu que um homicídio é o nomen juris de tirar a vida. Entrar em uma casa dando pontapé na porta é o quê? Ora, quando o jurista pensa o fato, pensa-o como matéria do direito, quando pensa o direito, pensa-o como forma destinada ao fato. Portanto, pé na porta é abuso de direito. Onde está a questão de fato, senão jurisdicizada?
Portanto, a execução da pena já a partir do segundo grau necessita de outra justificativa. De todo modo, para quem defende a prisão em segundo grau como decorrência “lógica” da condenação em segundo grau, peço que se coloque no lugar de um réu cuja denúncia foi recebida em um formulário preenchido com x e um in dubio pro societate e teve invertido o ônus da prova, devidamente reconhecido em segundo grau. Isso acontece centenas ou milhares de vezes por dia. Como procurador de Justiça, a estatística de meu gabinete mostrou que, em regra, 80% dos processos que chegavam do segundo grau vinham “bichados”. Com extremo esforço, conseguia reverter, com parecer favorável ao réu, um percentual entre 30 e 40%. E o restante? O que acham?
Então: esgotou a matéria de fato? Que pena. A facticidade transitou em julgado? Que pena. Vai direto para o ergástulo. Como se está dizendo, a prisão em segundo grau é decorrência lógica...
Por tudo isso, fui um dos autores e subscritores da ADC 44 que a OAB levou ao STF. Por ela, pedimos apenas que o artigo 283 do CPP seja lido como está escrito. Afinal, o CPP não é como a Bíblia, toda escrita em parábolas, metáforas e metonímias. O CPP é uma lei. E leis têm limites interpretativos.

[1] A Súmula 7 do STF entra no mesmo patamar da crítica que Castanheira Neves fez aos assentos portugueses e à cisão “questão de facto-questão de direito”. Já no inicio dos anos 90 – logo após a CF/88 – fiz duras críticas a essa Súmula, exatamente por cindir fato e direito. Propunha, já então, a sua expunção do sistema.


 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados.

sexta-feira, 16 de março de 2018

Varas de violência doméstica chegam a todos os tribunais

No ano passado, uma importante meta foi atingida pelo poder judiciário brasileiro: todos os tribunais de Justiça passaram a contar com, ao menos, uma Vara exclusiva para julgamento de crimes contra a mulher. Hoje, em todo o Brasil, o número total é de 125 unidades.
Em 2006, havia apenas seis juizados especializados. Em 2007, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Recomendação CNJ n.9, que sugeria a criação desses juizados e a adoção de outras medidas para a implementação de políticas públicas capazes de garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares.
A promoção de cursos de capacitação multidisciplinar em direitos humanos/violência de gênero e a integração do Poder Judiciário aos demais serviços da rede de atendimento à mulher estavam entre as ações propostas pelo CNJ.
Ao longo de uma década, os tribunais passaram a instalar as varas exclusivas e a promover iniciativas para atender às determinações do CNJ. Para se ter uma ideia da relevância dessa questão, no ano passado, 1.273.398 processos referentes à violência doméstica contra a mulher tramitaram na Justiça estadual.
Em 2016, havia 111 varas especializadas e, no ano passado, o número subiu para 125, aumento de 11%. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios é, hoje, o primeiro em número de juizados especializados, com 16 unidades. Com 13 varas, o Tribunal de Justiça de São Paulo ocupa a segunda colocação e, com 11, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. O último estado a criar uma vara especializada foi o Paraná, em 2017.

 Meta 8

Em dezembro de 2016, durante o X Encontro Nacional do Poder Judiciário, foi aprovada a criação da Meta 8, destinada ao fortalecimento da rede de combate à violência doméstica e familiar contra as mulheres. A ação envolvia a adequação das estruturas físicas das unidades judiciárias, assim como a criação/ampliação de varas exclusivas e, também, o número de magistrados especializados nesse tema.
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No ano passado, levantamento feito pelo Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ apontou que todos os tribunais se esforçaram para cumprir a meta. Dez ultrapassaram os 100% do índice estipulado, a exemplo dos tribunais de Justiça do Amazonas e do Tocantins. No compilado de todos os estados, 97% da meta foi atingida.
 A região Sudeste conta 34 unidades voltadas exclusivamente para o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, enquanto o Nordeste tem 33. Os estados do Centro-Oeste concentram 31 varas exclusivas e os do Norte, 16. A Região Sul tem 11 juizados especializados. 
Thaís Cieglinski
Agência CNJ de Notícias








 

terça-feira, 13 de março de 2018

Aposentadoria do Trabalhador rural: possibilidades, requisitos e impedimentos

O regime geral da Previdência Social oferece um tratamento diferenciado aos trabalhadores que exercem atividade rural, em regime de economia familiar e sem empregados permanentes. Regulada pelo artigo 48parágrafos 1º e , e pelo artigo 143 da Lei 8.213/91, a concessão da aposentadoria rural, entretanto, nem sempre se dá de forma pacífica. Em muitos casos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) precisa intervir para que a norma infraconstitucional seja cumprida.
Todo trabalhador que comprove o exercício da atividade rural ou de pescador, de forma individual ou com auxílio da família, por 15 anos, além da idade mínima (55 anos para mulher e 60 para homem), tem direito de solicitar o benefício, que é de um salário mínimo.
Trabalho infantil
Apesar de a maioria dos trabalhadores rurais começar a trabalhar ainda na infância, não é todo o período que pode ser usado para o cálculo dos 15 anos exigidos. De acordo com a jurisprudência do STJ, “comprovada a atividade rural do trabalhador menor de 14 anos, em regime de economia familiar, esse tempo deve ser computado para fins previdenciários. ”
Por aplicação do princípio da universalidade da cobertura da seguridade social, o entendimento da corte é de que a proibição do trabalho ao menor de 14 anos foi estabelecida em benefício do menor e não em seu prejuízo. Dessa forma, no julgamento do REsp 573.556, a Quinta Turma do STJ admitiu o cômputo do período de serviço rural prestado a partir dos 12 anos como tempo de contribuição.
Tamanho da propriedade
O STJ também já se pronunciou a respeito da polêmica sobre a dimensão do imóvel rural, isto é, se ela descaracteriza ou não o regime de economia familiar. No julgamento do REsp 1.532.010, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF3) considerou que não foi devidamente comprovado o exercício da atividade rural, em regime de economia familiar, em razão do tamanho da propriedade.
Segundo o acórdão, “a extensão da propriedade, descrita na exordial (74,1 hectares), nas certidões (74,1 e 36,3 hectares), nas declarações cadastrais de produtor (36,3 e 46,4 hectares), bem como na escritura pública de divisão amigável (70,6286 hectares), descaracterizam a alegada atividade como pequeno produtor rural em regime de economia familiar”.
A decisão foi reformada no STJ. De acordo com o relator, ministro Sérgio Kukina, o entendimento do TRF3 contrariou a jurisprudência do tribunal, segundo a qual o tamanho da propriedade, por si só, não descaracteriza o regime de economia familiar, quando preenchidos os demais requisitos necessários à sua configuração, que são a ausência de empregados permanentes e a mútua dependência e colaboração do núcleo familiar nas lides no campo.
Aposentadoria híbrida
A aposentadoria rural híbrida é o benefício que considera tanto o tempo de trabalho urbano quanto o tempo rural. No STJ, A Segunda Turma manteve decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) que concedeu a uma mulher o benefício da aposentadoria híbrida ao permitir que o período de atividade rural fosse somado ao do trabalho urbano.
Para o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), a aposentadoria foi concedida de forma inadequada e sem fonte de custeio, mas o relator, ministro Mauro Campbell Marques, não acolheu a argumentação.
Segundo ele, a Lei 11.718/08, que deu nova redação ao artigo 11 e ao artigo 48 da Lei 8.213/91, criou a possibilidade de mesclar os requisitos das aposentadorias por idade urbana e rural, sem o direito à redução de cinco anos na idade exigida para a concessão.
“A Lei 11.718/08, em vigor desde 23/6/2008, deu nova redação aos artigos 1148 da Lei 8.213/91, acrescentando ao artigo 48 os parágrafos 3º e 4º, criando a possibilidade de concessão de aposentadoria por idade aos trabalhadores rurais que se enquadrem nas categorias de segurado empregado, contribuinte individual, trabalhador avulso e segurado especial, com observância da idade de 65 anos para o homem e 60 anos para a mulher”, explicou o ministro.
Ele observou que existem inúmeros segurados da Previdência Social que trabalharam no meio rural por longo tempo e, posteriormente, buscaram melhores condições de vida na área urbana. Segundo ele, esse passado de trabalho rural não pode ser ignorado.
“No período como trabalhador rural, diante da ausência de contribuições previdenciárias, deve ser considerado para fins de cálculo atuarial o valor do salário mínimo. Esta, no meu modo de sentir, é a inteligência do parágrafo 4º do artigo 48 da Lei de Benefícios”, argumentou o ministro (REsp 1.367.479).
Prova testemunhal
No site do INSS, é possível conferir alguns exemplos de documentos aptos a comprovar a atividade rural do trabalhador para a concessão da aposentadoria rural, como contrato de arrendamento, notas fiscais e título de eleitor.
Antes do julgamento do REsp 1.348.633, sob o rito dos recursos repetitivos (Tema 638), alguns tribunais consideravam como trabalho rural apenas o período posterior à data do documento mais antigo apresentado, mas a Primeira Seção do STJ modificou esse entendimento e firmou a tese de que é possível comprovar o período de trabalho rural anterior ao do registro material mais antigo, por meio de testemunhas.
O colegiado reconheceu que apesar de a Súmula 149 do STJ estabelecer que “a prova exclusivamente testemunhal não basta à comprovação da atividade rurícola para efeito da obtenção de benefício previdenciário”, é possível, mediante apresentação de um início de prova material, o reconhecimento do tempo de serviço rural, corroborado por testemunhos idôneos.
Imediatamente anterior
Outra tese firmada pela Primeira Seção em recurso repetitivo (REsp 1.354.908) foi a de que “o segurado especial tem que estar laborando no campo, quando completar a idade mínima para se aposentar por idade rural, momento em que poderá requerer seu benefício” (Tema 642).
No caso apreciado, uma segurada ajuizou ação contra o INSS para garantir o recebimento do benefício da aposentadoria rural por idade. A sentença, confirmada no acórdão de apelação, julgou o pedido procedente.
Para o tribunal de origem, a segurada reuniu todos os requisitos legais para concessão do benefício, assegurando ter sido demonstrado o exercício da atividade rural por início de prova material e testemunhos, no período imediatamente anterior ao requerimento.
O INSS, então, interpôs recurso especial sob o fundamento de que não foi apresentada prova documental de que a segurada exercia o trabalho na condição de rurícola no período imediatamente anterior ao requerimento do benefício.
Trabalho urbano
De acordo com o processo, a segurada, nascida em 1952, trabalhou na lavoura desde os seus 14 anos de idade. Em 1980, o marido ingressou como servidor público de uma prefeitura e ela continuou a exercer suas atividades rurais, tendo apenas exercido atividades urbanas entre os períodos sazonais de safras, como empregada doméstica.
Foram reconhecidos como início de prova material pelo tribunal de origem a certidão de nascimento da segurada, a certidão de casamento, a certidão de nascimento dos filhos, a ficha do sindicato dos trabalhadores rurais, a escritura pública de propriedade rural e a carteira de trabalho.
O fato de a segurada ter trabalhado como empregada doméstica no período da entressafra não descaracteriza sua condição de segurada especial, pois a Lei 8.213/91 garante o cômputo do período em que o trabalhador rural se encontre em período de entressafra ou do defeso, não superior a 120 dias.
No caso julgado, entretanto, a concessão da aposentadoria foi prejudicada porque ela estava trabalhando como doméstica quando completou a idade mínima. A jurisprudência do STJ exige que o conjunto probatório da atividade rural comprove a carência no período imediatamente anterior ao requerimento.
“O artigo 143 da Lei 8.213/91 contém comando de que a prova do labor rural deverá ser no período imediatamente anterior ao requerimento. O termo imediatamente pretende evitar que pessoas que há muito tempo se afastaram das lides campesinas obtenham a aposentadoria por idade rural. A norma visa agraciar exclusivamente aqueles que se encontram, verdadeiramente, sob a regra de transição, isto é, trabalhando em atividade rural, quando do preenchimento da idade”, explicou o relator, ministro Mauro Campbell Marques.

quarta-feira, 7 de março de 2018

A presunção de inocência na voz do decano do Supremo Tribunal Federal

Em entrevista concedida ao jornal O Globo[1], o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, voltou a defender enfaticamente o princípio constitucional da presunção de inocência e atacou veementemente a “esdrúxula execução provisória” da pena como insistem em defender alguns.
Na citada entrevista, o decano do STF salienta que:
Tive aqui o processo de um réu de São Paulo que foi condenado em primeiro grau, recorreu ao Tribunal de Justiça e perdeu. O tribunal mandou executar a pena provisoriamente, com base nessa jurisprudência. Ele recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e foi absolvido. Mas ele cumpriu durante um certo período de tempo com rigor penitenciário essa pena. A mim me basta que um inocente seja submetido a essa esdrúxula execução provisória para que eu me mantenha fiel à minha posição.
Conforme sustentamos há algum tempo, bastaria a comprovação de que uma única pessoa cumpriu, “provisoriamente”, parte da pena por crime pelo qual, posteriormente, o Superior Tribunal de Justiça ou o STF venha a declarar inocente para que ficasse evidenciado a insensatez da decretação da prisão-pena antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. A prisão-pena — que decorre de uma sentença condenatória definitiva — somente poderá ser decretada após o trânsito em julgado. Qualquer outra hipótese representa ultraje ao princípio constitucional da presunção de inocência.
Notadamente, em razão do princípio constitucional da presunção de inocência é que se verifica a excepcionalidade da prisão cautelar/provisória — em qualquer das suas modalidades —, conforme o STF já decidiu:
A prisão cautelar, que tem função exclusivamente instrumental, não pode converter-se em forma antecipada de punição penal. A privação cautelar da liberdade constitui providência qualificada pela nota da excepcionalidade somente se justifica em hipóteses restritas, não podendo efetivar-se, legitimamente, quando ausente qualquer dos fundamentos à sua decretação pelo Poder Judiciário (STF – 2ª T. HC 80.379-2 – Rel. Celso de Mello).
Em fevereiro de 2009, em entrevista concedida à ConJur (18/2/2009), o ministro Celso de Mello já se referia aos avanços da jurisprudência do STF em matéria de direitos e garantias individuais como “verdadeira jurisprudência das liberdades”.
ConJur — O Supremo decidiu há duas semanas que ninguém deve cumprir pena sem condenação definitiva e que advogados podem ter acesso aos autos de investigação criminal. As duas decisões provocaram muitas críticas do Ministério Público e de alguns setores da magistratura. Como o senhor encara essas reações?
Celso de Mello — Com a máxima naturalidade, notadamente porque vivemos em uma sociedade fundada em bases democráticas, sob cuja égide se mostra plenamente legítimo que qualquer pessoa exponha, com liberdade, as suas convicções e opiniões sobre qualquer matéria. Apenas entendo que essas reações contra os significativos avanços da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em matéria de direitos e garantias individuais — verdadeira jurisprudência das liberdades — emanam de setores certamente comprometidos com a doutrina da lei e ordem ou ideologicamente condicionados pelas formulações do direito penal do inimigo. Tenho para mim que o discurso e a ação daqueles que se apoiam, para efeito de justificar a prisão cautelar, em tópicos retóricos fundados em juízos conjecturais, de índole meramente especulativa, culminam por transgredir os princípios proclamados pela ordem democrática na qual se estrutura o Estado de Direito. Mais do que isso, essa concepção de mundo revela, com toda vênia, uma preocupante visão autoritária e nulificadora do regime das liberdades públicas consagrado em nosso sistema constitucional[2].
Não é demais lembrar, como bem já asseverou o ministro Celso de Mello, que:
O dever de proteção das liberdades fundamentais dos réus, de qualquer réu, representa encargo constitucional de que este Supremo Tribunal Federal não pode demitir‐se, mesmo que o clamor popular se manifeste contrariamente, sob pena de frustração de conquistas históricas que culminaram, após séculos de lutas e reivindicações do próprio povo, na consagração de que o processo penal traduz instrumento garantidor de que a reação do Estado à prática criminosa jamais poderá constituir reação instintiva, arbitrária, injusta ou irracional.
Por fim, não se podemos olvidar que, hodiernamente, o processo penal é voltado, principalmente, para a garantia e realização dos direitos fundamentais e que tem como objeto a limitação do poder punitivo estatal. O processo penal acusatório — único compatível com a democracia — deve ser balizado e interpretado conforme a Constituição da República.

[1] Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/celso-de-mello-todo-vapor-para-liberar-primeiras-acoes-da-lava-jato-22454347
[2] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2009-fev-18/entrevista-celso-mello-ministro-supremo-tribunal-federal.

 é advogado criminalista e professor de Direito Penal.
Revista Consultor Jurídico, 6 de março de 2018.

terça-feira, 6 de março de 2018

Divórcio Extrajudicial: como funciona?

A possibilidade de se realizar divórcio de modo extrajudicial existe há mais de 10 anos, mas ainda deixa dúvidas aos operadores do Direito e à população em geral.
Com isso, este artigo tem como escopo esclarecer alguns pontos sobre como é realizado este procedimento e por quem pode ser utilizado.
A Lei nº 11.441, publicada em 04 de Janeiro de 2007, surgiu como uma alternativa mais célere e menos burocrática aos casais que buscam a separação ou divórcio de forma consensual, sem que estes tenham que se sujeitar à aprovação (e lentidão) do Poder Judiciário.
Para tanto, além do consenso entre as partes quanto ao divórcio, à partilha e a eventual pensão alimentícia, a legislação estabelece como único requisito a inexistência de filhos menores ou incapazes para que o procedimento ocorra por escritura pública. Caso contrário, não será possível fugir do processo judicial.
Neste sentido, interessante expor a redação do artigo 1.124-A do Código Civil, que trata do assunto:
Art. 1.124-A. A separação consensual e o divórcio consensual, não havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos prazos, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento.
§ 1o A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para o registro civil e o registro de imóveis.
§ 2o O tabelião somente lavrará a escritura se os contratantes estiverem assistidos por advogado comum ou advogados de cada um deles, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.
§ 3o A escritura e demais atos notariais serão gratuitos àqueles que se declararem pobres sob as penas da lei.”
Embora seja autoexplicativo o dispositivo, importante ressaltar que na escritura pública de divórcio extrajudicial constará, minuciosamente, (i) a descrição dos bens comuns, (ii) a pensão alimentícia ao cônjuge (se houver), (iii) a opção do cônjuge em retomar seu nome de solteiro ou manter aquele adotado durante o casamento.
Neste passo, nota-se que o que traz celeridade ao processo se dá justamente em razão da não dependência da homologação judicial, isto é, independência de aprovação por um Juiz de Direito. Desta forma, a escritura pública confeccionada se torna o instrumento hábil para transferência dos bens para o nome de cada um dos cônjuges no Cartório de Registro de Imóveis (bens imóveis), no DETRAN (veículos), no Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas ou na Junta Comercial (sociedades), nos Bancos (contas bancárias), etc.
Ainda, o § 2º do mesmo dispositivo estabelece que tal procedimento somente será possível se assistido por advogado, podendo ser um para cada cônjuge ou apenas um para a realização de todo o procedimento.
Questões normalmente formuladas:

1. Já tenho um divórcio judicial em andamento que está demorando muito. Posso mudar para o divórcio extrajudicial?

R: Sim. Os interessados podem, a qualquer momento, desistir do processo judicial de separação/divórcio e optar pela modalidade em cartório, desde que preenchidos os requisitos legais, quais sejam, consenso entre as partes e inexistência de filhos menores ou incapazes.

2. Estou de acordo com o divórcio, mas não quero ter que olhar para a cara do meu ex-esposo ou esposa. Posso enviar alguém em meu lugar para o divórcio?

R: Sim. Os cônjuges podem ser representados por procuração pública com poderes especiais, feita em cartório de notas, com prazo de validade de 30 (trinta) dias. Ressalte-se, aqui, que o advogado responsável pelo procedimento não poderá atuar como advogado representante das partes no mesmo procedimento.

3. Casei há pouco tempo e ainda não estou separada. Posso me divorciar extrajudicialmente?

R: Sim, atualmente inexiste como requisito a separação de fato para que se realize o divórcio. O casal pode optar pelo divórcio direto, a qualquer tempo, independente do prazo mínimo de casamento ou de prévia separação.

4. Como é o procedimento do divórcio extrajudicial?

R: Inicialmente, é necessário definir se cada cônjuge terá seu advogado ou se haverá um advogado comum às partes. Com o (s) advogado (s) sendo nomeado, este elaborará uma minuta de divórcio, onde constará que inexistem filhos menores ou incapazes envolvidos. Feito isso, será descrita a necessidade ou não de ser paga pensão alimentícia, bem como serão descritos os bens a partilhar, observando-se o regime de bens adotado pelo casamento. Ainda, constará qual sobrenome será adotado por ambas as partes. Com isso, escolhendo-se um Cartório de Notas, o advogado irá indicar a lista de documentos necessários e agendará uma data com o tabelião para dar andamento ao caso.

5. Quais são os documentos necessários?

  • RG e CPF, informação sobre profissão e endereço dos cônjuges;
  • RG e CPF, informação sobre profissão e endereço dos filhos maiores (se houver) certidão de casamento (se casados);
  • Carteira da OAB, informação sobre estado civil e endereço do advogado;
  • Certidão de casamento (2ª via atualizada – prazo máximo de 90 dias);
  • Escritura de pacto antenupcial (se houver);
  • Descrição dos bens (se houver) e documentação relativa aos bens (documento do Detran e certidão de ônus e ações do Registro de Imóveis);
  • Comprovante de pagamento de eventuais impostos devidos em decorrência da partilha de bens.

6. Quanto custa um divórcio em cartório?

R: Os custos compreendem impostos, honorários advocatícios e custas de cartório.
No que tange aos honorários advocatícios, importante ressaltar que a OAB de cada Estado estipula um valor mínimo a ser cobrado, de acordo com cada tipo de serviço. É importante que este montante seja observado tanto pelos operadores de Direito, a fim de haver a valorização da profissão, quanto pelos clientes, que terão maior certeza em estar contratando um profissional mais ético. Você pode consultar a tabela da OAB/SP clicando aqui: http://www.oabsp.org.br/servicos/tabelas/tabela-de-honorarios
Espero ter contribuído positivamente com todos que buscam esclarecimentos básicos acerca dessa questão. Até a próxima ;)

* Bruna Simpionato Paifer, Advogada, pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil, atuante na advocacia desde 2008.
(Transcrito do site JusBrasil)

domingo, 4 de março de 2018

STJ: Defensores Públicos não precisam de inscrição na OAB

Defensores públicos não precisam de inscrição na OAB para trabalhar. De acordo com decisão desta quinta-feira (1º/3) da 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, embora a atividade de defensor seja “muito semelhante” à dos advogados, não são iguais, já que os defensores têm regime disciplinar próprio e dependem de concurso para ingressar na carreira.
Relator, ministro Herman Benjamin concordou com a Defensoria.
Por unanimidade, a turma reformou entendimento do Tribunal Regional Federal da 5ª Região. A corte havia decidido que defensores precisam de inscrição na OAB tanto como condição para prestar o concurso público quanto para “o exercício de suas funções”. A Defensoria Pública do Ceará recorreu, alegando que sua capacidade postulatória decorre diretamente da Constituição Federal, e não do Estatuto da Advocacia, como alega a OAB.
O ministro Herman Benjamin, relator do recurso, concordou com a Defensoria. Para ele, o fato de o Estatuto da Ordem dizer que a Defensoria Pública exerce “atividade de advocacia” não significa que os integrantes da carreira precisem de autorização da autarquia para trabalhar e muito menos que o exercício de suas atividades seja regulado por ela.
“Há inúmeras peculiaridades que fazem com que a Defensoria Pública seja distinta da advocacia privada e, portanto, mereça tratamento diverso”, escreveu Herman, no voto. Para ele, o parágrafo 1º do artigo 3º do Estatuto da Advocacia, que define a Defensoria Pública como órgão que exerce “atividade de advocacia”, precisa de “interpretação conforme a Constituição” para liberar os defensores de inscrição na Ordem, mas mantendo suas prerrogativas profissionais, típicas de advogados.
“A carreira está sujeita a regime próprio e a estatutos específicos; submete-se à fiscalização disciplinar por órgãos próprios, e não pela OAB; necessita aprovação prévia em concurso público, sem a qual, ainda que possua inscrição na Ordem, não é possível exercer as funções do cargo, além de não haver necessidade da apresentação de instrumento do mandato em sua atuação”, disse o ministro. “A Constituição não previu a inscrição na OAB como exigência para exercício do Defensor Público. Ao revés, impôs outras restrições, como a vedação à advocacia privada.”
Herman não afastou completamente a incidência do Estatuto da Advocacia sobre as atividades dos defensores públicos. Segundo ele, os membros da Defensoria ainda estão protegidos pelas prerrogativas da advocacia, como inviolabilidade por atos e manifestações e o sigilo das comunicações.
REsp 1.710.155
Leia a ementa do voto: 
EMENTA
ADMINISTRATIVO. CARREIRA DA DEFENSORIA PÚBLICA. DESNECESSIDADE DE INSCRIÇÃO NA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO DO ART. 3º, § 1º, DA LEI 8.906/1994. APLICAÇÃO DO ART. 4º, § 6º, DA LEI COMPLEMENTAR 80/1994.
1. Inicialmente, verifica-se que a argumentação em torno da condenação em honorários veio desacompanhada da indicação de qual dispositivo de lei federal teria sido violado, o que impede impossibilita o exame do recurso interposto com base na alínea "a" do art. 105, III, da Constituição.
2. O mérito do recurso gira em torno da necessidade de inscrição dos Defensores Públicos na Ordem dos Advogados do Brasil, questão notoriamente controversa nos Tribunais locais do País.
3. A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no RHC 61.848/PA, assentou que "os defensores não são advogados públicos, possuem regime disciplinar próprio e têm sua capacidade postulatória decorrente diretamente da Constituição Federal".
4. A Constituição de 1988 abordou expressamente a Defensoria Pública dentro das funções essenciais à Justiça, ao lado do Ministério Público, da Advocacia e da Advocacia Pública, com as quais não se confunde.
5. Defensores Públicos exercem atividades de representação judicial e extrajudicial, de advocacia contenciosa e consultiva, o que se assemelha bastante à Advocacia, tratada em Seção à parte no texto constitucional. Ao lado de tal semelhança, há inúmeras diferenças, pois a carreira está sujeita a regime próprio e a estatutos específicos; submetem-se à fiscalização disciplinar por órgãos próprios, e não pela OAB; necessitam aprovação prévia em concurso público, sem a qual, ainda que se possua inscrição na Ordem, não é possível exercer as funções do cargo, além de  não haver necessidade da apresentação de instrumento do mandato em sua atuação.
6. À vista dessas premissas, e promovendo o necessário diálogo das fontes, tem-se que o Estatuto da Advocacia não é de todo inaplicável aos Defensores Públicos, dada a similitude com a advocacia privada das atividades que realizam. Dessa forma, impensável afastar, por exemplo, a inviolabilidade por atos e manifestações (art. 2º, § 3º, da Lei 8.906/1994) ou o sigilo da comunicação (art. 7º, III). Entretanto, por todas as diferenças, aceita-se regime díspar previsto em legislação especial.
7. Em conclusão, o art. 3º, § 1º, da Lei 8.906/1994 merece interpretação conforme à Constituição para obstar a necessidade de inscrição na OAB dos membros das carreiras da Defensoria Pública, não obstante se exija a inscrição do candidato em concurso público. Ademais, a inscrição obrigatória não pode ter fundamento nesse comando em razão do posterior e específico dispositivo presente no art. 4º, § 6º, da Lei Complementar 80/1994.
8. Recurso Especial conhecido e provido, com inversão do ônus da sucumbência.
Revista Consultor Jurídico, 1º de março de 2018