segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Virtualização da Justiça mantém tendência histórica de crescimento

Apenas um em cada cinco processos que entraram na Justiça em 2017 era em papel. A virtualização das ações judiciais no país mantém a tendência histórica de crescimento. O percentual dos chamados casos novos eletrônicos atingiu no ano passado a marca de 79,7%. Em 2009, quando a série estatística foi iniciada, esse índice era de 11,2%. De acordo com o anuário estatístico Justiça em Números 2018, produzido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 88,4 milhões de casos foram apresentados em formato eletrônico nos nove anos do levantamento.
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No ano passado, oito em cada 10 casos novos originados na primeira instância começaram a tramitar em formato digital. O primeiro grau de jurisdição é considerado “a porta de entrada da Justiça”, pois quando a população precisa do Poder Judiciário, normalmente é atendida em um órgão do primeiro grau – foi à primeira instância que 85% das ações foram apresentadas nos últimos três anos. Hoje, quase todo o volume processual da justiça brasileira (94%), chamado de estoque ou acervo, tramita na primeira instância.
O maior usuário de processos eletrônicos no Poder Judiciário é a Justiça do Trabalho, onde 96% dos processos tramitam no ambiente virtual. Foi esse o ramo em que se notou o maior crescimento. Desde 2009, o percentual saiu de 2,8% para o patamar atual – 96,3%. Nos tribunais superiores, o percentual chega a 85% e, na Justiça Estadual, a 78%.
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Sem aumento de gastos

Outro fenômeno indicado pelo Justiça em Números 2018 é o de que o esforço do Poder Judiciário para modernizar seu funcionamento não resultou em um crescimento exponencial de despesas em informática. Embora os produtos e serviços em informática tenham consumido R$ 2,2 bilhões no ano passado, o valor praticamente estacionou nos últimos quatro anos. Em 2014, o valor investido em informática pelos tribunais era de R$ 2,19 bilhões, praticamente o mesmo investimento feito em 2017. No ano passado, houve uma queda de 4,1% do gasto em informática em relação ao ano anterior.

PJe

Um dos fatores que ajudaram a manter os custos sob controle foi a adesão de 71 dos 90 tribunais brasileiros ao Processo Judicial Eletrônico (PJe). O sistema de tramitação eletrônica de ações judiciais, desenvolvido e distribuído gratuitamente pelo CNJ, está em todos os órgãos da Justiça do Trabalho e praticamente toda a Justiça Eleitoral. O PJe é flexível e compatível com outros sistemas virtuais de processo eletrônico – só na Justiça Estadual, em 2017 operavam nove diferentes sistemas de tramitação eletrônica. Em 2013, quando o órgão editou a Resolução CNJ n. 185 para disseminar a plataforma digital, o índice de casos novos eletrônicos era de 30%.
Agência CNJ de Notícias

Tópicos: Processo Judicial Eletrônico (PJe),tecnologia e modernização

domingo, 23 de setembro de 2018

Cartórios debatem como adotar práticas de mediação e conciliação

O Fórum Nacional da Mediação e Conciliação (Fonamec) debateu, na quinta-feira (20/9) em Brasília, capacitação de instrutores e mediadores e como adotar práticas de mediação e conciliação pelos cartórios. Desde março, quando a Corregedoria Nacional de Justiça editou o Provimento n. 67, cartórios de todo o país estão autorizados a promover a solução pacífica de conflitos por meio de métodos consensuais, como a mediação e conciliação. Antes, nos processos judiciais, a prática era restrita aos órgãos do Poder Judiciário.
Na reunião, a coordenadora do Comitê Gestor da Conciliação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), conselheira Daldice Santana, enfatizou a importância da capacitação dos mediadores e conciliadores que atuarão nos cartórios. “Os cursos de capacitação tratam da forma de abordar duas partes que têm um conflito a resolver. É necessário obter uma habilitação para se exercer uma profissão, ainda mais esta, que pretende restabelecer o diálogo entre as partes. Como fazer isso sem técnica? Pode resultar em frustração para ambas as partes”, afirmou.
Ao responder questionamentos sobre a duração exigida da experiência prática dos futuros mediadores e conciliadores, a conselheira Daldice recomendou aos Núcleos Permanentes de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos (NUPEMECs) a priorização do planejamento das ações relacionadas à política de tratamento dos conflitos, por exemplo, identificando os maiores litigantes, promovendo reuniões interinstitucionais e incentivando a adoção de filtros para conter o grau de litigiosidade (melhoria do call center, ouvidoria, SAC, entre outros canais de relacionamento). Ao falar sobre os requisitos da formação de instrutores em mediação, a conselheira lembrou a lição de Paulo Freire segundo a qual “a teoria sem a prática vira 'verbalismo' ” e “a prática sem teoria, vira ativismo. No entanto, quando se une a prática com a teoria tem-se a práxis, a ação criadora e modificadora da realidade”.
Requisitos para atuar
A norma da Corregedoria Nacional de Justiça que autorizou cartórios a promover mediação e conciliação prevê que as serventias extrajudiciais empreguem apenas mediadores e conciliadores devidamente capacitados para o exercício da nova atividade. As corregedorias-gerais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal e dos Territórios listarão, em seus portais na internet, nomes de conciliadores e mediadores habilitados, que poderão ser escolhidos pelas partes para conduzir o processo de entendimento.
Uma das dúvidas levantadas na reunião desta quinta-feira (20/9) foi sobre quem pode exercer a mediação e conciliação nos cartórios. O juiz auxiliar da Presidência do CNJ Márcio Evangelista esclareceu que, caso decidam por usar escreventes na prática, os cartórios deverão custear a formação dos funcionários. Os cursos só poderão ser ministrados por escola judicial ou instituição formadora de mediadores judiciais, conforme previsto na Lei da Mediação (Lei n. 13.140/2015) e regulamentado pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam).
“Nós queremos que vocês contratem mediadores habilitados. Quando não houver disponibilidade, como me relataram durante uma visita ao Acre, um dos escreventes terá de ser habilitado para exercer a função”, disse o juiz Evangelista, que nos próximos dois anos também será secretário-geral-adjunto do CNJ.
Perfil do conciliador
Segundo Evangelista, o perfil da atividade é diferente do cotidiano de um cartório. “A ideia é que o mediador seja uma pessoa que receba bem as partes em litígio, em outro ambiente, lúdico, se possível com música, tudo para desarmar a disposição para a disputa que acompanha as partes. Muito do serviço cartorário é conferir a legitimidade de informações e redigir documentos. Mediação e conciliação é outro serviço, que envolve acolhimento”, disse o juiz. O potencial para a atuação dos cartórios é significativo dado o volume de demandas. Segundo o juiz Evangelista, há cerca de 400 mil processos de execução fiscal (dívidas de impostos e tributos) em tramitação no Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, corte de origem de Evangelista.
Execução fiscal
Dos 80,1 milhões de processos que ainda esperavam solução definitiva ao final de 2017, mais da metade (53%) estava na fase de execução, em que os valores são cobrados efetivamente. No ano passado, entraram 7,6 milhões de processos de execução fiscal no Poder Judiciário, dois milhões a menos que em 2010.
O juiz auxiliar da Corregedoria Nacional de Justiça Alexandre Chini lembrou que os tribunais de Justiça poderão instalar centros de solução de conflitos (Cejuscs) nos cartórios que ainda não possuem o serviço. Uma análise da viabilidade jurídica, técnica e financeira do serviço precederá a instalação do Cejusc. O Nupemec do estado fará o estudo, em parceria com o cartório que pretende adotar a mediação e a conciliação para resolver conflitos. 
Negociar para resolver
Vários tipos de disputas podem ser submetidos às práticas da mediação e da conciliação, não apenas dívidas: pensão alimentícia, acidentes de trânsito, demissão do trabalho, problemas entre vizinhos etc. A mediação e a conciliação propõem o diálogo como meio de alcançar uma saída negociada entre as partes para o conflito que as envolvem, com os princípios da informalidade, simplicidade, economia processual, celeridade, oralidade e flexibilidade processual. Até o Provimento n. 67, as partes precisavam se dirigir a uma unidade do Judiciário. A partir de agora, o serviço começará a ser oferecido por uma rede de cerca de 15 mil cartórios.
Manuel Carlos Montenegro
Agência CNJ de Notícias

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Drauzio aos juízes: "Visitem as cadeias"

“Os juízes encarregados de distribuir penas deveriam conhecer as cadeias para as quais mandam as pessoas”. Essa foi a recomendação dada por Drauzio Varella durante a palestra “Saúde como Direito” proferida na abertura da Reunião Preparatória do XII Encontro Nacional do Poder Judiciário, organizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na segunda-feira (27/8). O médico oncologista, reconhecido por seu prestigiado trabalho com presos, apresentou um panorama da saúde pública no País apontando a violência como uma das três maiores causas de morte no Brasil, juntamente com as doenças cardiovasculares e o câncer.
Ao abordar a desigualdade social e a falta de segurança nas periferias, Varella demonstrou como as facções do crime organizado usam o tráfico de drogas para oferecer ocupação e renda a jovens marginalizados, avançando no sistema penitenciário e ampliando seu controle em comunidades de baixa renda.
Somente no Estado de São Paulo há, segundo o autor de “Estação Carandiru”, 18 mil pessoas ligadas à facção Primeiro Comando da Capital (PCC), além de outras 12 mil no restante do território nacional, sem contar o contingente de outras facções. “Não atacamos o tráfico e criamos uma situação que vai agravando os problemas todos. Não é possível que não se tenha uma solução administrativa para isso”.
Ao referir-se à expansão da população carcerária, à superlotação das prisões e ao poder do crime organizado, Varella enfatizou que em 1989 o Brasil possuía cerca de 90 mil presos e que atualmente esse contingente passa de 600 mil. [Nos dados do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (BNMP) do CNJ, há 619.297 pessoas privadas de liberdade no País].
“Não é que não prendemos. Prendemos muito mais, pelo menos sete vezes mais do que em 1989 e a violência não diminuiu. Ao contrário, aumentou”, disse o médico. “Ou a gente encontra alternativas para o aprisionamento ou não haverá saída.”
Judicialização
Além da questão penal, o médico oncologista abordou a questão da judicialização dos temas da saúde pública. Lembrou que enquanto na década de 50 o Brasil era um país de endemias rurais e de alta mortalidade infantil, hoje é uma economia em desenvolvimento na qual a saúde pública é um direito garantido pela Constituição Federal.
Disse que muitos brasileiros não conhecem as qualidades do Sistema Único de Saúde (SUS) elencando uma série de programas de alto padrão: o programa de vacinação gratuita, o programa de combate à Aids, os serviços de resgate, o programa gratuito de transplante de órgãos, o sistema de garantia da qualidade do sangue nos estabelecimentos hospitalares e o programa de saúde da família.
O outro lado da universalização dos serviços de saúde, na visão de Drauzio Varella, é o risco de isso infantilizar o cidadão e de retirar dele a responsabilidade por sua saúde. “Saúde é um dever do cidadão, que deve cuidar da sua própria saúde. E se o cidadão não tem condições é aí que entra o papel do Estado”, comentou, defendendo que os serviços gratuitos sejam destinados à população que não tem condições de arcar com essas despesas.
Nesse sentido, abordou a judicialização dos temas da saúde apresentando sua visão de que é preciso definir o que será e o que não será responsabilidade do Estado e que o parâmetro central deve ser não conceder muito a poucos em detrimento da maioria.
Para Drauzio Varella, o Estado deveria priorizar a saúde básica por ser um segmento que, se funcionar bem, resolverá 90% dos casos de saúde pública.
Agência CNJ de Notícias
Luciana OtoniAgência CNJ de Notícias

quinta-feira, 13 de setembro de 2018

Juiz brasileiro é homem, branco, casado, católico e pai

Levantamento feito pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) revelou o perfil sociodemográfico da magistratura brasileira: majoritariamente formada por homens, brancos, católicos, casados e com filhos. Essa é a segunda vez que o CNJ faz uma pesquisa dessa natureza – a primeira foi em 2013. O trabalho contou com a participação de 11.348 magistrados (62,5%) de um total de 18.168 juízes, desembargadores e ministros dos tribunais superiores.
O Relatório Perfil Sociodemográfico dos Magistrados - 2018 demonstrou que a participação das mulheres no Judiciário ainda é menor que a de homens – 37% mulheres e 63% homens. Comparativamente com a década de 1990, porém, houve crescimento. Naquela época, a participação de mulheres era de 25%, contra 75% de homens.
A pesquisa revelou que as mulheres ainda progridem menos na carreira jurídica em comparação com eles. Elas representam 44% no primeiro estágio da carreira (juiz substituto), quando competem com os homens por meio de provas objetivas e passam a corresponder a 39% dos juízes titulares. No entanto, o número de juízas se torna menor de acordo com a progressão na carreira: representam 23% das vagas de desembargadores e 16% de ministros dos tribunais superiores. 
“É possível que haja uma dose de preconceito já que para entrar, mulheres e homens competem por meio de provas. No entanto, algumas progressões dependem de indicações. Mas não creio que seja só isso. As mulheres ainda têm muitas atribuições domésticas e isso gera impacto profissional. De qualquer forma, é um dado que precisa ser estudado, já que não fomos a fundo em relação aos motivos dessa diferença e ela pode ser observada também em outras carreiras”, diz Maria Tereza Sadek, diretora do Departamento de Pesquisas Judiciárias do CNJ.
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Parentes

Outro ponto considerado relevante para Sadek, é a diminuição do grau de endogenia da magistratura. Entende-se por endogenia, nesse caso, a entrada de parentes na magistratura. Pelos dados coletados, apenas 13% dos que ingressaram após 2011 possuíam familiares juízes ou desembargadores. Os dados até 1990 revelavam que o número, no passado, era bem maior: 30% dos juízes tinham familiares na magistratura. “São pessoas que chegam com outra cabeça. Isso é muito bom, democrático. E, acredito, também tem relação com o ingresso de mulheres. Antigamente, a entrada delas era bem mais complicada”, diz Sadek.
Na Justiça Estadual o número é maior (21% têm familiares na magistratura). Na Justiça do Trabalho esse percentual é de 17%, e na Justiça Federal, 15%. Quanto maior a posição na hierarquia da carreira, maior a proporção dos magistrados que têm familiares na magistratura: 14% entre os juízes substitutos, 20% entre os juízes titulares e 30% entre os desembargadores.

Idade

A idade média do magistrado brasileiro é 47 anos. Considerando a faixa etária por segmento de justiça, os magistrados mais jovens estão na Justiça Federal, com 13% no intervalo até 34 anos, 49% entre 35 e 45 anos e apenas 9% com 56 anos ou mais.

Brancos, casados e com filhos

A maior parte dos magistrados (80%) é casada ou possui união estável. Entre os homens, o percentual de casados é de 86%, e entre as mulheres, 72%. Os solteiros representam 10%; os divorciados, 9%; e os viúvos 1%. A maioria tem filhos (78%), sendo 74% das mulheres e 81% dos homens. A maioria se declarou branca (80,3%), 18% negra (16,5% pardas e 1,6% pretas), e 1,6% de origem asiática. Apenas 11 magistrados se declararam indígenas. Dos que entraram na carreira a partir de 2011, 76% se declararam brancos.
A maior parte dos magistrados que respondeu possuir religião (82%); 57,5% se declararam católicos, seguido de espíritas (12,7%), e 6% evangélicos tradicionais. Os que não possuem religião representam 18%.

Capacitação

A proporção de magistrados que completou algum curso de formação ou capacitação no período de 12 meses anteriores a data da pesquisa é de 43%. A Justiça do Trabalho é a que apresenta maior proporção de magistrados com capacitação recente: 54%, seguida da Justiça Federal (44%) e da Estadual (40%).
Em 19% dos casos a capacitação foi realizada na área de mediação ou conciliação; em 14% na área de Infância e Juventude; em 11% na área de violência doméstica contra a mulher e em 8% na área de justiça restaurativa. Grande parte dos magistrados (73%) realizou cursos de capacitação em outras áreas além dessas previamente definidas, como em gestão ou especialização em Direito Civil, incluindo atualização do novo Código de Processo Civil (CPC) e atualização no Direito do Trabalho.
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Perfil e Censo

Em 2013, o órgão realizou o primeiro Censo do Judiciário, que teve a participação de 10.796 dos 16.812 magistrados então em atividade, um percentual de 64,2% de resposta. A diferença entre os levantamentos é que o atual se refere apenas a informações objetivas de perfil demográfico, social e funcional dos magistrados, enquanto o Censo 2013 incluía informações subjetivas, de opinião de magistrados e, também, de servidores do Poder Judiciário. As duas pesquisas foram feitas de forma eletrônica, por meio do preenchimento de um formulário no site do CNJ. O próximo Censo será feito em 2020.

Agência CNJ de Notícias

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Preventivas indevidas ferem o Código de Processo Penal

Invocar a gravidade do fato sob investigação tem sido usado por alguns juízes como fundamento para decretar prisão preventiva, como garantia da ordem pública. Principalmente nos casos de grande repercussão, onde fatos e suposições são impulsionados pela mídia. A potencialização e o exagero estabelecem a noção de que é necessário prender o acusado. Não há um crivo sobre o cabimento da prisão, nem se a decisão é justa ou correta.
O ordenamento processual brasileiro prevê quatro motivos para que se decrete a medida extrema da prisão cautelar: a garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal.
Mas, sob o fundamento da “garantia da ordem pública”, usam-se questões de cunho emocional, como a gravidade do delito, a repercussão social, o número de vítimas ou a qualidade destas — idosos, crianças etc. Fatos que não guardam relação com o fundamento previsto no Código de Processo Penal. A garantia da ordem pública está relacionada aos casos em que a segregação cautelar é necessária para que não ocorram os chamados atos repetitivos, isto é, que o indivíduo, solto, continue cometendo crimes. Fora desses casos, a medida se torna despicienda e ilegal.
Distorcendo o que diz a lei, ou melhor, dando interpretação de “proteção social” ao fundamento da prisão por garantia da ordem pública, alguns julgadores decretam a medida excepcional como resposta à comoção social. Ou seja, para aplacar o sentimento de frustração da sociedade. A prisão preventiva serviria assim como um “remédio” à sociedade, que se sentiria mais tranquila porque houve a segregação do “malfeitor”. Não há, na maioria dos casos, indagação sobre os requisitos insertos no artigo 312 do Código de Processo Penal, mas tão-somente uma ideia de responder rapidamente aos anseios da população, como se o julgador pudesse de alguma forma medi-los.
É como se a segregação antecipada do investigado/acusado nos casos de comoção social, ainda que se fira frontalmente o princípio constitucional da presunção de inocência, servisse de exemplo da aplicação da lei. Nesses casos, o que vale é a gravidade do delito, ou a sua repercussão social, ainda que concretamente não se tenha nenhum indício de que o encarcerado, solto, possa representar um perigo à sociedade. Vale a presunção de perigo, ou melhor, a pronta resposta ao que o juiz entende por ser o reclame social.
Nessa linha de argumentação, algumas prisões decretadas na operação apelidada de “lava jato” estariam justificadas pelos atos possivelmente repetitivos, isto é, de que, soltos, os investigados pudessem seguir com as supostas atividades criminosas. Nesse primeiro tópico, observa-se que muitas vezes se trata de suposição sem qualquer suporte fático.
Outro fundamento comum é da preservação da prova. Em relação a esses casos, observa-se, na prática, que vem sendo aplicado esse motivo mesmo quando toda a prova já foi colhida, no momento da decretação. Mais estranha ainda a argumentação baseada na garantia de aplicação da lei penal, como se não houvessem outros meios menos gravosos, como retenção do passaporte ou até mesmo monitoramento eletrônico para garantir a sujeição à jurisdição brasileira. O mais grave, neste último caso, é que, na grande maioria das vezes, nem sequer existe indício de risco de evasão, prestando-se para isso a mera presunção baseada no “alto poder aquisitivo” do indivíduo.
Restaria, por fim, a garantia da ordem econômica, porém, no nosso ponto de vista, tal fundamento consiste em espécie de bis in idem da proteção da ordem pública, e, além disso, o sequestro de bens seria suficiente para evitar o dano à dita ordem econômica. Se há uma constrição de patrimônio do investigado, ou quando ele mesmo se dispõe a entregar como garantia ao Estado, não se justifica a restrição da liberdade com esse fundamento.
Ainda há resistência à previsão de aplicação das cautelares alternativas à prisão. Embora a lei que instituiu tais medidas como primárias seja de 2011. As cautelares permitem ao investigado ficar em liberdade no transcurso da investigação ou do processo, desde que atendidas as condições que lhe foram impostas, até que o mérito de eventual ação penal seja julgado.
A incompatibilidade da prisão preventiva com a presunção de inocência revela-se ainda mais grave quando se tem em conta a referência à função de alarme social. Como já mencionamos, parte-se de um dado emotivo, instável e sujeito a manipulações para impor, na verdade, a consciência do juiz em relação à necessidade da prisão, isso tudo de forma sumária, sem processo e sem os princípios que o norteiam.
A 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal tem corrigido as distorções e excessos desse ímpeto prisional — ainda que sob duras críticas —, superando, inclusive, a Súmula 691, por entender que os tribunais inferiores tardam muito em analisar o mérito do writ, o que alongaria a prisão preventiva por um prazo indeterminado.
É bem verdade que há uma divisão na suprema corte, onde as posições são contraditórias não só em relação à superação da Súmula 691, mas também em relação à manutenção da liberdade de investigados/processados que tiveram a liminar concedida anteriormente por decisão monocrática. A dita súmula termina por servir de fundamento para impedir o exame de mérito sobre a real necessidade da medida extrema, em outras palavras, se os requisitos ainda se encontram presentes. Esse preciosismo jurídico tem levado de volta ao cárcere pessoas que já se encontravam em liberdade por um bom período de tempo sem que fossem descumpridas as cautelares alternativas à prisão que lhes foram impostas.
Não é possível, nessa quadra da história, que tenhamos que esperar por meses a publicação de um acórdão para que se tenha a possibilidade jurídica de atacar o decreto prisional. Em muitos casos a superação da súmula é imperiosa para o restabelecimento da justiça. O critério para decretação da prisão cautelar não deve ser emocional, mas racional.
Revista Consultor Jurídico, 11 de setembro de 2018.

domingo, 9 de setembro de 2018

Ativismo do Judiciário impulsiona autoritarismo, diz José Roberto Batochio.

Em seu discurso na sessão solene de aniversário de 175 anos do Instituto dos Advogados Brasileiros, o orador oficial da entidade, José Roberto Batochio, criticou o fortalecimento exagerado do Judiciário no Brasil.
Batochio elogiou decisão de Gilmar Mendes proibindo as conduções coercitivas.
Zéca Guimarães/IAB
Segundo o Batochio — que já foi presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil —, o desequilíbrio entre os Poderes está impulsionando práticas autoritárias de magistrados.
“Juízes de primeiro grau, em espúrio contubérnio com a polícia judiciária — de quem deveriam guardar prudente distância funcional para preservar a imparcialidade — e açulados pelo onipotente Ministério Público, tomam decisões que afrontam o devido processo legal, desafiam o estado de direito, desrespeitam a Constituição, violam as leis ordinárias, como pudemos testemunhar, bem pouco tempo faz, na aberração teratológica das conduções coercitivas, em boa hora conjuradas pelo ministro Gilmar Mendes no STF — embora imediatamente substituídas pelo incremento das prisões temporárias cujo principal objetivo é surpreender, intimidar, quebrantar a dignidade e a resistência defensiva de quem nem se sabe investigado e muito menos réu”, declarou o criminalista.
Nesse cenário, o IAB continuará a lutar contra a injustiça e o arbítrio e pelo respeito ao direito de defesa, afirmou.
A seguir a íntegra do discurso:
IAB, 175 ANOS A sombria quadra do estado democrático de direito na atual conjuntura brasileira nos inspira para descrevê-lo ninguém menos que um luminoso estilista da tragédia grega. Mais que os jurisconsultos da atualidade, o imortal Ésquilo nos serve de referência para bem compreender o elenco de iniquidades que se acha em curso, encenado a céu aberto no proscênio da realidade nacional. Para julgar os mortais, concebeu ele o tribunal com a eternizada formação de causa, réu, acusador, defesa, testemunhas e juízes, além do coro que hoje podemos identificar como representação da opinião pública e também da publicada. Situando a ação por volta de 1.200 antes de Cristo, na sua obra As Eumênides, da trilogia A Orésteia, Apolo, segundo o genial autor grego, delegou à deusa Atena a tarefa de instituir “um tribunal incorruptível, venerável, inflexível, para guardar, eternamente vigilante, esta cidade, dando-lhe um sono tranquilo.” O réu era Orestes, acusado do crime de matar a própria mãe, Clitemnestra, e o amante dela, Egisto, por haverem ambos tramado e executado o assassinato de seu pai, o herói da Guerra de Troia, Agamenon. Segundo a tradição, aos filhos incumbia o justiçamento dos assassinos de seu genitor. Havendo ocorrido, no aludido julgamento, empate no voto dos oito jurados, Atena arbitraria o impasse e o fez imediatamente, proclamando: – “Os votos dividiram-se em somas iguais. Ele foi absolvido de um crime de morte!” Como sabido, a decisão de desempate, prerrogativa do presidente do conselho de sentença, veio a se tornar conhecida entre nós como Voto de Minerva, o nome latino da deusa grega que encarnava a sabedoria, o conhecimento e também a justiça. A ficção de Ésquilo legou, por volta de 500 antes de Cristo, um dos institutos mais sábios e, desde então, sólidos e imutáveis da Justiça Punitiva. O empate nos colegiados indica dúvida, e a dúvida beneficia, necessariamente e sempre, o réu. Cabe então ao presidente do tribunal fazer a justiça da absolvição com o voto de Minerva. Ó, nobre Ésquilo, tua sabedoria civilizou os séculos, mas, entre nós, hoje, parece haver sucumbido em face do coro das Fúrias. Em nossos tribunais superiores, especialmente no STF, parece já não haver lugar para a sabedoria de AtenaMinerva. A dúvida tangível que reforça o princípio da presunção de inocência, tem cedido passo à convicção líquida da punição. Parelha a votação dos ministros em cada um dos dois sentidos, já não prevalece o favor rei, senão a decisão presidencial sempre proferida contra libertatis... É o que se tem verificado na Suprema Corte. As Eríniasa banirem a serena sapiência de Atena. Nós operadores do direito sabemos que os tribunais não gestam ajustiça. São apenas a tribuna da razão onde o Direito vence o arbítrio. Boa é a lei quando executada com retidão, disse São Paulo, lembrado por Rui Barbosa na Oração aos Moços. O rol de iniquidades que se inscreve no cotidiano de nossos tempos tem numerosas fontes e variegadas matrizes, a despertar profunda inquietação sobre o futuro. A crise da democracia representativa, se ocorre em escala global, minando o governo do povo, pelo povo e para o povo, presentemente alcança entre nós elevado índice de desapreço a esse sistema político, de vez que a maioria dos cidadãos não se identifica em seus representantes. O Congresso Nacional não só se ajoelha, em genuflexão constrangedora, à invasão dos demais poderes em seu reservado território discricionário, como chega, por iniciativa própria, a abdicar de sua atribuição constitucional de elaborar as leis da República, substabelecendo tacitamente a legisladores ilegítimos a missão que lhe foi delegada pelo povo por meio do sufrágioque legitima o mandato. Partidos e congressistas derrotados nos debates democráticos de suas propostas, ou minimamente contrariados no jogo parlamentar em que a maioria supera (e deveria respeitar) a minoria, não hesitam em recorrer aos tribunais superiores para obter, por meio da concreta tutela jurisdicional, o que não lograram alcançar dialeticamente na democrática disputa no parlamento. É como certa ocasião deixou assentado o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Francisco Rezek, “só falta o camarada atravessar a praça para reclamar que lhe negaram um aparte.” E assim matérias constitucionalmente reservadas ao Legislativo, sobretudo as que dizem respeito às essenciais opções axiológicas, aos direitos fundamentais e aos usos e costumes da nacionalidade, são delegadas à indevida normatização judiciária, como estamos a assistir presentemente no trâmite de temas polêmicos, de que são exemplos a eliminação progressiva da presunção de não culpabilidade, a chamada descriminalização do aborto, simples revogação de indulto presidencial - não pelo critério da inconstitucionalidade formal ou material, mas de conveniência e oportunidade - e até mesmo a elaboração de normas sobre prescrição em matéria de improbidade administrativa... “The possible change discussed in the wrong place”(a mudança possível discutida no lugar errado), diriam os doutrinadores da “common law”, de referência tão frequente nos nossos pretórios nestes tempos que correm... Não bastasse o questionável poder normativo da Justiça Eleitoral, a gestar normas como se legislador fora, arrogando-se o poder de legislar paralelamente, até vaquejada, caros confrades, virou assunto regrado nos tribunais. Constitui um truísmo assinalar que poder se nutre de poder, forjando em suas entranhas e valendo-se da debilidade dos contrapesos e salvaguardas, um movimento de autofortalecimento, de acromegalia incessante – a ponto de erigir-se em suprapoder unipolar que elide a independência, a autonomia relativa e a equilibrada harmonia preconizada por Montesquieu há 270 anos. Com poderes assimetricamente desestruturados, a República claudica capenga nas pernas de pau do arbítrio e da vaidosa idiossincrasia de seus orgânicos estamentos. Juízes de 1.º grau, em espúrio contubérnio com a polícia judiciária - de quem deveriam guardar prudente distância funcional para preservar a imparcialidade - e açulados pelo onipotente Ministério Público, tomam decisões que afrontam o devido processo legal, desafiam o estado de direito, desrespeitam a Constituição, violam as leis ordinárias, como pudemos testemunhar, bem pouco tempo faz, na aberração teratológica das conduções coercitivas, em boa hora conjuradas pelo ministro Gilmar Mendes no STF – embora imediatamente substituídas pelo incremento das prisões temporárias cujo principal objetivo é surpreender, intimidar, quebrantar a dignidade e a resistência defensiva de quem nem se sabe investigado e muito menos réu. No rol das anomalias não menos maliciosas, decorrentes do poder que se agiganta como um neoplasmaa se expandir incontrolavelmente por todo tecido institucional, continua a pleno vaporo uso da malsinada e exótica colaboração premiada, importada de um sistema que definitivamente não se compatibiliza com o plexo de franquias elencadas no corpo permanente da nossa Lei Maior: melhor denominada estaria ela se chamada fora de “alcaguetagem induzida” (e obtida mediante extrusão) –
uma aberração no processo penal, que desde o areópago de Ésquilo tem de se fundamentaremsólidas provas materiais, jamais em invencionices gratificadas e remuneradas, em construções cerebrinas e utilitárias que, trazem na contraface a inaceitável impunidade daqueles que as industriam. Como a expressão está na moda, apesar de sua introdução espúria no idioma nacional, pode-se dizer que as tais delações recompensadas têm sido, nos últimos tempos, uma febril e produtiva usina de “fakenews”. A partir da exclusividade dessas malignidades, réus sem culpa provada têm sido arrastados às enxovias. Reputações são enlameadas com base em leviano “ouvir dizer”, ou “diz-que-diz” sussurrados pela sempre disponível legião de Calabares e Joaquins Silvérios dos Reis que o sistema penal produz e encaixa em uma fieira de vilanias. Como nada nunca é suficientemente ruim que não possa piorar, a própria Constituição da República foi ignorada para a prevalência de um entendimento esdrúxulo, elaborado à revelia de seu artigo 5º, inciso LVII, que nada mais faz que reassegurar o princípio da presunção do estado de inocência até a consideração da culpa em sentença passada em julgado, postulado claro, necessário, civilizado e racional Paradoxalmente, a própria Suprema Corte renunciou, por estreita maioria é certo, a seu papel histórico de garantir tal instituto, que remonta à sabedoria milenar, para admitir a prisão sumária de condenados em segundo grau de jurisdição, presumindo o permanente acerto do crivo revisional de pretórios que, francamente, hoje não são mais compostos como outrora... Já não prevalece a Lei Maior, já não importa a presunção de inocência, já não contam os recursos pendentes: o destino de um condenado em segunda instância é o cárcere puro e simples, duro e incabível, ainda que mais tarde, a seguir-se o devido e até então ignorado processo legal, o infeliz sacrificado seja absolvido... Se o desditoso for político, daqueles que vão ao prélio eleitoral disputar lícita e democraticamente a representação dos cidadãos, espera-o outra armadilha legal, qual seja, a intitulada Lei da Ficha-Limpa – esta em si um poço de contradições, pois se a princípio impõe o ostracismo eleitoral aos condenados por órgão colegiado, admite a suspensão da punição até o julgamento de recursos, ou seja, admite contraditoriamente o princípio da Constituição que está a violentar. Ora, temos o caso-bumerangue de uma lei que contraria a si mesma, porque já nasceu malformada e teve sua iniquidade ampliada por um “poder legislativo” de onze membros... Nessa opaca conjuntura, podemos imaginar, em boutade tão a seu gosto, que Rui Barbosa escreveria aos nossos tempos uma “Oração aos Velhos”, para assim advertir os justiceiros destes maus tempos: “Não sigais os que argumentam com o grave das acusações, para se armarem de suspeita e execração contra os acusados; como se, pelo contrário, quanto mais odiosa a acusação, não houvesse o juiz de se precaver mais contra os acusadores, e menos perder de vista a presunção de inocência, comum a todos os réus enquanto não liquidada a prova e reconhecido o delito. Não acompanheis os que, no pretório, ou no júri, se convertem de julgadores em verdugos, torturando o réu com severidades inoportunas, descabidas, ou indecentes; como se todos os acusados não tivessem direito à proteção dos seus juízes, e a lei processual, em todo o mundo civilizado, não houvesse por sagrado o homem, sobre quem recai acusação ainda inverificada.” Caros confrades, chegamos a um ponto da deformidade institucional derivada do desejo de punir e do denominado populismo judiciário em que não só os acusados em juízo precisam de defesa e proteção legal. Nós mesmos, os que exercemos a defesa técnica, estamos nos vendo obrigados a invocar, cada vez mais, as garantias individuais e as prerrogativas da advocacia para o desimpedido exercício do secular e sagrado ofício. A guerra santa contra supostos ilícitos na vida pública, ultrajada, como é praxe nesses movimentos, de desvios autoritários pelos Savonarolas e Torquemadas redivivos, não tem poupado o exercício da defesa técnica de tentativas de criminalização e ataques à dignidade profissional dos que, em nome de outrem, a exercem. Bancas têm sido violadas, telefones, censurados, audiências, truncadas pelo arbítrio de juízes. Como manobras de prestidigitação, florescem instrumentos processuais ilegítimos promanados de fontes legislativas espúrias, certo que ao Congresso Nacional, e somente a ele, está atribuída acompetência de legislar sobre tema instrumental penal. O acesso aos autos nem sempre é garantido, e até o conhecimento das acusações assestadas a seus patrocinados é vedado aos patronos, embora, a bem da verdade, sempre sobra, é claro, a possibilidade de se informarem a respeito pelas páginas dos jornais, que de tudo são informados e noticiam em primeira mão... Em certos tribunais, a defesa é havida como um estorvo a atrapalhara tramitação dos feitos, lavratura de sentenças pré-redigidas com a tinta acre da convicção dos investigadores, acusadores e julgadores que, por vezes, retratam a simbiose de todos. A invocação da lei, a exigência dos recursos e das garantias que ela prescreve, soam como notas desafinadas do coro uníssono da condenação e da pública execração. Em nome da democracia, da civilização, do ordenamento jurídico democrático arduamente construído ao longo de séculos, quem sabe teremos de idealizar um movimento para assegurar a sobrevivência do direito de defesa, que se mostra claramente um direito em extinção! Nesta hora e pela causa, este egrégio e vetusto Sodalício, agora pela voz firme e intimorata da presidente Rita Cortez, tem se pronunciado contra os constrangimentos que só os movimentos autoritários impõem às liberdades, às garantias democráticas e mesmo à advocacia – e nessa manifestação da Presidente relembro o pioneirismo do Instituto dos Advogados Brasileiros ao receber, em 1906, a primeira mulher a exercer a Advocacia no Brasil, Myrthes Gomes de Campos, filiando-a em seus quadros em época na qual as mulheres eram olvidadas por associações dessa nobre estirpe. Precursora da luta feminina, a Casa de Montezuma sempre se distinguiu e ainda se destaca por membros notáveis que não só dignificaram e engrandeceram o Direito e a Justiça como se distinguiram nas lutas mais amplas pela defesa do interesse nacional. Três deles estão especialmente reconhecidos pela cunhagem de medalhas honoríficas com que a instituição homenageia a outros integrantes ilustres, de idêntica linhagem, como um movimento de verso e reverso de tributo dado e correspondido, porque altamente merecido. Levi Carneiro, Luís Gama e Francisco Jê Acaiaba de Montezuma, se foram gigantes na Advocacia, não menos extraordinários se constituíram como paladinos do interesse coletivo. Estadistas, Carneiro e Montezuma cumpriram o antigo roteiro de quadros forjados como bacharéis em Direito, assim preparados desde o Primeiro Reinado. Para servirem ao progresso e a grandeza do Brasil. De Levi Carneiro se pode rememorar, em destaque, seus esforços para fundar e dela ser o primeiro presidente a Ordem dos Advogados do Brasil, além de presidir ao nosso Instituto. Consultor da Repúblicano governo ainda democrático de Getúlio Vargas, de 1930 a 1932, deputado constituinte em 1934, também representou o Brasil como juiz no Tribunal Internacional de Justiça, na Haia, de 1951 a 1954. Montezuma foi uma daquelas figuras históricas que, se não tivessem sido concebidas num momento de inspiração e de excelência da natureza biológica, teriam de ser inventadas. Nas lutas da Independência, adotou, como muitos brasileiros nativistas, nomes indígenas, vernaculizando a autoridade com que exerceu cargos da mais alta importância como os de Ministro da Justiça e dos Estrangeiros, na Regência do Padre Feijó, e "ministro plenipotenciário" junto ao Império Britânico, além de ser Conselheiro de Estado. Usou o prestígio dos cargos para uma aberração no processo penal, que desde o areópago de Ésquilo tem de se fundamentaremsólidas provas materiais, jamais em invencionices gratificadas e remuneradas, em construções cerebrinas e utilitárias que, trazem na contraface a inaceitável impunidade daqueles que as industriam. Como a expressão está na moda, apesar de sua introdução espúria no idioma nacional, pode-se dizer que as tais delações recompensadas têm sido, nos últimos tempos, uma febril e produtiva usina de “fakenews”. A partir da exclusividade dessas malignidades, réus sem culpa provada têm sido arrastados às enxovias. Reputações são enlameadas com base em leviano “ouvir dizer”, ou “diz-que-diz” sussurrados pela sempre disponível legião de Calabares e Joaquins Silvérios dos Reis que o sistema penal produz e encaixa em uma fieira de vilanias. Como nada nunca é suficientemente ruim que não possa piorar, a própria Constituição da República foi ignorada para a prevalência de um entendimento esdrúxulo, elaborado à revelia de seu artigo 5º, inciso LVII, que nada mais faz que reassegurar o princípio da presunção do estado de inocência até a consideração da culpa em sentença passada em julgado, postulado claro, necessário, civilizado e racional Paradoxalmente, a própria Suprema Corte renunciou, por estreita maioria é certo, a seu papel histórico de garantir tal instituto, que remonta à sabedoria milenar, para admitir a prisão sumária de condenados em segundo grau de jurisdição, presumindo o permanente acerto do crivo revisional de pretórios que, francamente, hoje não são mais compostos como outrora... Já não prevalece a Lei Maior, já não importa a presunção de inocência, já não contam os recursos pendentes: o destino de um condenado em segunda instância é o cárcere puro e simples, duro e incabível, ainda que mais tarde, a seguir-se o devido e até então ignorado processo legal, o infeliz sacrificado seja absolvido... Se o desditoso for político, daqueles que vão ao prélio eleitoral disputar lícita e democraticamente a representação dos cidadãos, espera-o outra armadilha legal, qual seja, a intitulada Lei da Ficha-Limpa – esta em si um poço de contradições, pois se a princípio impõe o ostracismo eleitoral aos condenados por órgão colegiado, admite a suspensão da punição até o julgamento de recursos, ou seja, admite contraditoriamente o princípio da Constituição que está a violentar. Ora, temos o caso-bumerangue de uma lei que contraria a si mesma, porque já nasceu malformada e teve sua iniquidade ampliada por um “poder legislativo” de onze membros... Nessa opaca conjuntura, podemos imaginar, em boutade tão a seu gosto, que Rui Barbosa escreveria aos nossos tempos uma “Oração aos Velhos”, para assim advertir os justiceiros destes maus tempos: “Não sigais os que argumentam com o grave das acusações, para se armarem de suspeita e execração contra os acusados; como se, pelo contrário, quanto mais odiosa a acusação, não houvesse o juiz de se precaver mais contra os acusadores, e menos perder de vista a presunção de inocência, comum a todos os réus enquanto não liquidada a prova e reconhecido o delito. Não acompanheis os que, no pretório, ou no júri, se convertem de julgadores em verdugos, torturando o réu com severidades inoportunas, descabidas, ou indecentes; como se todos os acusados não tivessem direito à proteção dos seus juízes, e a lei processual, em todo o mundo civilizado, não houvesse por sagrado o homem, sobre quem recai acusação ainda inverificada.” Caros confrades, chegamos a um ponto da deformidade institucional derivada do desejo de punir e do denominado populismo judiciário em que não só os acusados em juízo precisam de defesa e proteção legal. Nós mesmos, os que exercemos a defesa técnica, estamos nos vendo obrigados a invocar, cada vez mais, as garantias individuais e as prerrogativas da advocacia para o desimpedido exercício do secular e sagrado ofício. A guerra santa contra supostos ilícitos na vida pública, ultrajada, como é praxe nesses movimentos, de desvios autoritários pelos Savonarolas e Torquemadas redivivos, não tem poupado o exercício da defesa técnica de tentativas de criminalização e ataques à dignidade profissional dos que, em nome de outrem, a exercem. Bancas têm sido violadas, telefones, censurados, audiências, truncadas pelo arbítrio de juízes. Como manobras de prestidigitação, florescem instrumentos processuais ilegítimos promanados de fontes legislativas espúrias, certo que ao Congresso Nacional, e somente a ele, está atribuída acompetência de legislar sobre tema instrumental penal. O acesso aos autos nem sempre é garantido, e até o conhecimento das acusações assestadas a seus patrocinados é vedado aos patronos, embora, a bem da verdade, sempre sobra, é claro, a possibilidade de se informarem a respeito pelas páginas dos jornais, que de tudo são informados e noticiam em primeira mão... Em certos tribunais, a defesa é havida como um estorvo a atrapalhara tramitação dos feitos, lavratura de sentenças pré-redigidas com a tinta acre da convicção dos investigadores, acusadores e julgadores que, por vezes, retratam a simbiose de todos. A invocação da lei, a exigência dos recursos e das garantias que ela prescreve, soam como notas desafinadas do coro uníssono da condenação e da pública execração. Em nome da democracia, da civilização, do ordenamento jurídico democrático arduamente construído ao longo de séculos, quem sabe teremos de idealizar um movimento para assegurar a sobrevivência do direito de defesa, que se mostra claramente um direito em extinção! Nesta hora e pela causa, este egrégio e vetusto Sodalício, agora pela voz firme e intimorata da presidente Rita Cortez, tem se pronunciado contra os constrangimentos que só os movimentos autoritários impõem às liberdades, às garantias democráticas e mesmo à advocacia – e nessa manifestação da Presidente relembro o pioneirismo do Instituto dos Advogados Brasileiros ao receber, em 1906, a primeira mulher a exercer a Advocacia no Brasil, Myrthes Gomes de Campos, filiando-a em seus quadros em época na qual as mulheres eram olvidadas por associações dessa nobre estirpe. Precursora da luta feminina, a Casa de Montezuma sempre se distinguiu e ainda se destaca por membros notáveis que não só dignificaram e engrandeceram o Direito e a Justiça como se distinguiram nas lutas mais amplas pela defesa do interesse nacional. Três deles estão especialmente reconhecidos pela cunhagem de medalhas honoríficas com que a instituição homenageia a outros integrantes ilustres, de idêntica linhagem, como um movimento de verso e reverso de tributo dado e correspondido, porque altamente merecido. Levi Carneiro, Luís Gama e Francisco Jê Acaiaba de Montezuma, se foram gigantes na Advocacia, não menos extraordinários se constituíram como paladinos do interesse coletivo. Estadistas, Carneiro e Montezuma cumpriram o antigo roteiro de quadros forjados como bacharéis em Direito, assim preparados desde o Primeiro Reinado. Para servirem ao progresso e a grandeza do Brasil. De Levi Carneiro se pode rememorar, em destaque, seus esforços para fundar e dela ser o primeiro presidente a Ordem dos Advogados do Brasil, além de presidir ao nosso Instituto. Consultor da Repúblicano governo ainda democrático de Getúlio Vargas, de 1930 a 1932, deputado constituinte em 1934, também representou o Brasil como juiz no Tribunal Internacional de Justiça, na Haia, de 1951 a 1954. Montezuma foi uma daquelas figuras históricas que, se não tivessem sido concebidas num momento de inspiração e de excelência da natureza biológica, teriam de ser inventadas. Nas lutas da Independência, adotou, como muitos brasileiros nativistas, nomes indígenas, vernaculizando a autoridade com que exerceu cargos da mais alta importância como os de Ministro da Justiça e dos Estrangeiros, na Regência do Padre Feijó, e "ministro plenipotenciário" junto ao Império Britânico, além de ser Conselheiro de Estado. Usou o prestígio dos cargos para fundar nosso Instituto e também ser dele o primeiro presidente. Para completar essa trindade de figuras maiúsculas da nacionalidade, Luís Gama é a imagem comovente de nossa terceira medalha. Todo humanista medianamente informado da História do Brasil reverencia esse apóstolo da liberdade, ex-escravo que somente aos 17 anos superou as trevas do analfabetismo, tornou-se autodidata do vademécum jurídico, conquistou judicialmente a própria liberdade e dedicou o resto de sua abençoada existência a libertar irmãos cativos, merecendo o título de Patrono da Abolição da Escravidão do Brasil. Republicano exaltado, pregou, em um dos mais belos sonhos que se podia acalentar na época, “um país sem reis e sem súditos”. Uma plêiade de confrades, alguns já não entre nós, é merecidamente homenageada nesta cerimônia com medalhas que trazem na face a efígie de homens grandiosos, cuja obra os homenageados igualmente honraram e expandiram à frente deste heroico IAB. Poucas instituições no Brasil podem ter o imensurável orgulho de exibir em seus anais quadros de tal magnitude. Sabemos, contudo, que essa tem sido a missão civilizatória cumprida nesses 175 anos de história, em que atuamos com a crença inabalável de que, enquanto houver injustiça e iniquidade, enquanto a lei democrática for desrespeitada, enquanto se violarem direitos fundamentais da pessoa humana e se negarem os postulados do direito de defesa, enquanto se tiver de defender o fraco contra o forte, o desvalido contra o favorecido, o vulnerável contra o afluente, o inocente contra o arbitrário, enquanto, enfim, tal quadro de deformidades persistir, ainda que sob forma um só episódio como um grão de areia no deserto, continuaremos a serpresentes como avalistas das liberdades e fieis da legalidade. A ocasião é de luta pela reafirmação do estado democrático de direito, do respeito ao devido processo legal e ao exercício livre da defesa do perseguido. Não trilhamos o caminho do abatimento, do desalento. Nosso desânimo só serviria à causa dos que tentam nos abater. Nossa resignação seria a deserção da trincheira que o grande Ésquilo nos reservou há mais de trinta séculos para defender simples mortais num tribunal de deuses. À sombra desse venerável Instituto, 175 anos de dedicação e zelo ao direito nos contemplam e nos inspiram: nada mais sejamos além daquilo que devemos ser – apenas e tão somente, guardiões das liberdades, da legalidade democrática, do respeito ao ser humano, da democracia e do Direito, valores que não esqueceremos, jamais!
Revista Consultor Jurídico, 13 de agosto de 2018.