terça-feira, 8 de novembro de 2011

Precatórios X Ineficácia do Judiciário

         A Emenda Constitucional nº 62/09, que entrou em vigor em dezembro de 2009, estabeleceu novas regras mais detalhadas sobre o pagamento de precatórios, como são denominadas as dívidas e obrigações do Poder Público reconhecidas oficialmente pela Justiça.

         Entre outras coisas, ela determina que a União, os Estados e os municípios reservem uma parcela de sua receita corrente líquida para o pagamento de dívidas judiciais, destinando, no mínimo, 50% do valor para quitação dos precatórios por ordem cronológica e até 50% para negociação com o credor ou por leilão ou venda a terceiros. Na lista dos credores foram incluídos detentores de créditos alimentícios (cidadãos que têm direito a receber dos cofres públicos diferenças salariais, aposentadorias e pensões atrasadas), cidadãos e empresas que contestaram com sucesso, na Justiça, os valores das indenizações geradas por desapropriação de imóveis.

          A partir da EC 62/09, também passou a ser dos tribunais a responsabilidade de controlar os pagamentos dos precatórios. Os órgãos públicos inadimplentes, entre outras sanções, ficam proibidos de receber repasses regulares ou extraordinários do governo federal.

          Embora seja muito baixa a parcela mínima da receita corrente líquida para pagamento de dívidas judiciais, prevista na EC/62, os prazos para pagamento vinham sendo estendidos ainda mais. Alguns estados e municípios, sob a justiticativa de que o texto constitucional não tinha sido regulamentado, continuaram atrasando os depósitos, o que levou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a instituir, por intermédio da Resolução nº 115, que dispõe sobre a Gestão de Precatórios no âmbito do Poder Judiciário, um Cadastro de Entidades Devedoras Inadimplentes e a criar um comitê gestor, integrado por um juiz estadual, um juiz federal e um juiz trabalhista para auxiliar os presidentes dos tribunais no controle dos pagamentos.

          Além de haver criado um registro nacional dos órgãos públicos que não cumprem, sistematicamente, as determinações judiciais, a resolução padronizou os formulários para a expedição de precatórios em todo o País. Visando organizar de forma mais eficiente e objetiva a lista de pagadores, a resolução também estabeleceu critérios e medidas práticas para a formalização de convênios entre tribunais e entidades públicas. Disciplinou, ainda, como gestor, o Sistema de Gestão dos Precatórios, exigindo dos tribunais diversas informações, entre elas as datas do trânsito em julgado da decisão que condenou a entidade de Direito Público a realizar o pagamento e a data da expedição do precatório, valor do precatório, data da atualização do cálculo, natureza do crédito, se comum, se alimentar, etc.

          Essa Resolução, posteriormente complementada pela Resolução nº 123 do CNJ, segundo próprio relator da matéria no CNJ, ministro Ives Gandra Martins Filho, será um rito de passagem para que novas regras possam ser postas em prática, sob pena de "que a emenda se transforme em mais um calote constitucional, ou numa moratória permanente, como dito em um dos considerandos".

          Para o presidente da OAB, Ophir Cavalcante, essa resolução do CNJ deve funcionar como uma regra de transição, enquanto não for proferida a decisão do Supremo Tribunal sobre a validade ou não da Emenda Constitucional 62, que é objeto da Adin 4357, ajuizada pelo Conselho Federal da OAB, sob o fundamento de que ao estabelecer novos mecanismos de pagamento das dívidas do setor público, a emenda impôs um verdadeiro calote no cumprimento dos precatórios.

          Dados recentes revelados pelo CNJ mostram que há 279.795 títulos existentes em 5.594 entidades devedoras em todo o País, cujo valor acumulado é de R$85 bilhões, dívida esta que chega a tramitar há mais de 20 anos em alguns estados e que ano a ano cresce cada vez mais. Conforme dados do CNJ, em São Paulo hoje o endividamento é de R$22.579 bilhões, o maior do Brasil. Depois de São Paulo, o maior estado devedor é o Paraná, com uma dívida de R$10.222 bilhões em precatórios. Em seguida, vem o Espírito Santo com R$10.220 bilhões. Em 4º lugar vem o Rio Grande do Sul com R$8.530 bilhões, seguido pelo Rio de Janeiro com R$5.683 bilhões.

          Para Joaquim Falcão, a alegação do Poder Público de que não nega a dívida, mas não pode pagá-la por não ter dinheiro não procede, pois no fundo o não pagamento de precatórios é uma escolha política. Questão de prioridade orçamentária. "Ou seja, a ordem de gastar do ministro da Fazenda, do governador ou de seu secretário da Fazenda prevalece sobre a ordem de pagar dada pelo Judiciário".

          Na verdade, o Poder Público, o maior demandante do Judiciário, é também aquele que mais contribui para desmoralizá-lo, quando deixa de pagar as dívidas por ele reconhecidas.

          Na ótica de Falcão, o não pagamento dos precatórios acarreta insegurança democrática, tornando o Judiciário não um Poder independente como determina a Constituição, mas, de fato, Poder dependente da escolha do secretário da Fazenda do dia. E o mais grave é que perante a população, que não distingue quem é o responsável tecnicamente pelo não pagamento, quem sai prejudicada é a imagem do Judiciário. Diante da opinião pública, a decisão do Judiciário não foi efetiva, pois a Justiça buscada não foi alcançada, ou seja, não se concretizou na prática. É como se fosse um Poder sem poder.

          Além da insegurança jurídica, o não pagamento de precatórios acarreta também insegurança econômica. Em debate sobre o Estado de Direito na América Latina, o Council of the Americas apontou o não pagamento pelo Estado de suas obrigações como um dos principais fatores de insegurança jurídica para os investidores estrangeiros.

          Como se vê, as consequências são gravíssimas, daí porque não de pode falar em reformar o Judiciário sem reformar o sistema de precatórios. O Estado não pode continuar imune diante de suas responsabilidades para com os cidadãos.

          Ao contrário, deveria ser o primeiro a dar o exemplo no cumprimento de suas obrigações.