domingo, 21 de dezembro de 2014

Revisão do modelo do Judiciário Brasileiro

Do Controle Externo à Participação Cidadã: Por uma revisão do modelo do Judiciário Brasileiro

O CNJ mostra-se apenas como o pálido início de um processo de transformação, para outra agenda de democratização e abertura normativa do Judiciário.


Andrei Koerner & Roberto Fregale Filho
Michael Coghlan / Flickr
Quando o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) foi criado, houve expectativas otimistas quanto às suas potencialidades para a construção da boa governança judicial. Nesse momento em que se celebra uma década do CNJ, é hora de analisar as tendências de sua composição e atuação. Pensamos que o CNJ constitui um primeiro e ainda tímido passo de mudanças e que seus limites estão inscritos no seu modelo em que falta a participação cidadã.

No início dos anos 1990, o problema da democratização do Poder Judiciário foi, desde logo, focado no tema do “controle externo” e os diversos aspectos do problema que mereceriam ser enfrentados e debatidos foram colocados de lado. Esse rumo resulta da confluência de dois processos políticos distintos. A Constituição de 1988 reconheceu ampla autonomia funcional, institucional e financeira para o Judiciário, sem a ampliação da participação, da transparência e controle democrático. Desde o Governo Geisel os militares buscaram instrumentalizar o Judiciário para a abertura controlada e, para isso, instituíram a centralização da direção e controles jurisprudenciais, políticos e disciplinares sobre os juízes. Em contraposição, o movimento associativo de juízes e outras carreiras jurídicas aliaram-se à oposição ao regime e suas demandas corporativas passaram a ser associadas à redemocratização. Isso assegurou a continuidade das formas de organização, das práticas e dos juízes que serviram ao regime. Eles tinham novas bases para rejeitar questionamentos e poderiam adaptar a instituição à sua maneira.

O contexto político a partir do governo Collor era de “crise de governabilidade e reforma neoliberal do Estado” associado à própria “crise do Judiciário”. Decisões judiciais de promoção de direitos baseadas na Constituição eram questionadas e o Judiciário era visto como leniente face aos escândalos de corrupção, que por vezes incluíam os próprios juízes. O modelo institucional existente não admitia questionamentos e as propostas de reforma, simplificadas como “controle externo”, apareciam como ameaças à autonomia do Judiciário e dos juízes.

Mas o tema da participação cidadã no Judiciário não é sinônimo de controle externo e nem é contrário à democratização. Ele é constitutivo das instituições representativas contemporâneas, nas quais, desde as revoluções burguesas rejeitava-se a magistratura togada como expressão do Antigo Regime e se demandava que os cidadãos fossem julgados pelos próprios pares, que se traduzia nas instituições do tribunal do júri e da justiça de paz. Nas últimas décadas, verificou-se a pluralização dos modelos institucionais e formas de participação para compatibilizar a profissionalização dos juízes com a democracia representativa.

No Brasil, a participação cidadã no Judiciário é coetânea à própria formação do Estado nacional, desde os conselhos locais da Colônia, os projetos de Constituição e o Código de Processo Criminal de 1832, mas foi bastante limitada pela reação conservadora. A justiça de paz e os jurados foram mantidos, mas passaram a ser identificados às fragilidades do Judiciário, propugnando-se o monopólio da jurisdição para os juristas e, a partir dos anos trinta, a participação no molde corporativista.

Sob qualquer ângulo que se adote, o Judiciário brasileiro é mais insulado e exclusivo de juristas em comparação com os seus congêneres em outros países. Neles, cidadãos leigos ou especialistas atuam como juízes não só em pequenas causas, mas em vários tribunais, inclusive de segunda instância. Para evitar a homogeneização dos magistrados, adotam-se várias formas de seleção, em várias fases da carreira, bem como reservas de vagas e representantes de comunidades, movimentos políticos ou associações profissionais. Outros pontos visam diminuir a competição interna entre os juízes e aumentar o tempo de sua permanência nas varas.

Os conselhos da magistratura foram moldados para assegurar a autonomia jurisdicional do juiz e evitar ingerências dos outros poderes. Eles concentram as funções de política judiciária (administração da justiça, governo dos juízes), mas não têm funções judiciais (segunda instância, controle do governo e do legislativo). No Judiciário brasileiro, ocorre o contrário, pois a direção do Judiciário concentra poderes e é controlada externamente apenas pelos efeitos de sua atuação.

A ADI nº 3.367, proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), questionou a constitucionalidade do CNJ por suposta ofensa ao princípio da separação de poderes. A ação foi rejeitada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), mas ela consagrou o CNJ como órgão interno do Judiciário, de natureza exclusivamente administrativa, submetido ao controle jurisdicional do STF. A decisão abriu espaço para a magistratura capturar o CNJ e nele defender a constitucionalidade de sua atividade normativa, questionar o alcance de sua atividade disciplinar e manejar uma plêiade de procedimentos administrativos em seu favor.

Ao longo dos dez anos de existência do CNJ, sua composição tem sido predominantemente masculina. Na representação dos juízes, os vínculos com a cúpula revelam-se mais importantes do que qualquer traço de representação profissional. Nos últimos anos, os representantes da sociedade civil – eles mesmos bacharéis em direito – vieram de serviços técnicos de assessoria parlamentar e consultoria legislativa. Na prática, tudo isso significa que a sociedade civil não tem uma efetiva representação no CNJ.

A agenda do CNJ tem sido gerada endogenamente, com papel relevante da liderança exercida pelo seu Presidente, ele mesmo Presidente do STF. Seu processo decisório é prisioneiro da representação corporativa e centralizada da sua composição. O CNJ não exerce o controle externo sobre a magistratura e mantém intactas as estruturas de poder que se exercem no interior de cada tribunal. Suas decisões sobre os juízes revelam uma concepção burocrática, individual e isolada da função judicial, e criam obstáculos à sua participação em espaços associativos. O foco dos debates sobre o CNJ deslocou-se, ao longo da década, do controle externo e políticas judiciais para o controle disciplinar e a gestão administrativa.

A atuação do CNJ com foco e propósitos internos ao Judiciário é explicada por aqueles fatores de organização e representação. É a apropriação interna que empresta inteligibilidade à sua fala, mesmo quando ele parece falar para fora do Judiciário. Não se trata de uma fala construída de fora para dentro, mas de uma fala construída de dentro para dentro, ainda que mais atenta às demandas externas.

O CNJ mostra-se apenas como o pálido início de um necessário processo de transformação, para outra agenda de democratização e abertura normativa do Judiciário. Horizontalizar o CNJ, aproximando-o realmente da sociedade civil, é um primeiro passo para a ampliação da comunidade deliberativa, o que certamente ajudará os tribunais a darem conta da crescente accountability que lhes está sendo exigida. Na ausência de uma figura emblemática como o velho Sobral Pinto, que, em abril de 1984, no comício da Candelária, reafirmava que “todo poder emana do povo e em seu nome é exercido”, é a voz coletiva e anônima da sociedade civil que deve contribuir para a construção de um Judiciário de proximidade, de um Judiciário transparente, enfim, de um Judiciário democrático.

Transcrito da Revista Carta Maior
Créditos da foto: Michael Coghlan / Flickr

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Advogado que estimula cliente à delação presta serviço útil para a Justiça

A virada para o século XXI trouxe, no campo penal, um nítido rebaixamento do direito de defesa em nome do combate ao crescimento do crime organizado. Assim como nos Estados Unidos, os direitos civis foram relativizados depois do atentado contra as torres gêmeas, no Brasil o que se vê é uma releitura do que sejam as garantias individuais e os direitos fundamentais de cada um. 
Independentemente das críticas de criminalistas — que enxergam nesse tipo de voluntarismo um terreno propício para condenações sem provas — o fato é que os juízes que dão curso ao combate incondicional ao crime organizado ganham cada vez mais espaço. E o movimento prospera, como se viu no julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão, no Supremo Tribunal Federal, ou nas manchetes recentes sobre a operação “lava jato”.
O trabalho do juiz Sergio Moro, maestro da “lava jato”, tem um precedente no noticiário recente e no campo ideológico: os processos julgados pelo juiz federal paulista Fausto De Sanctis, atualmente desembargador.
Em defesa do colega, hoje sob holofotes, De Sanctis afirma que não se contém a corrupção com luvas de pelicas. “Juiz que não é firme jamais pode atuar, quanto mais em se tratando de crimes econômico-financeiros, como lavagem de dinheiro, corrupção e fraudes em licitação”, diz o desembargador, lembrado pela atuação nas operações satiagraha e castelo de areia, em entrevista exclusiva à revista Consultor Jurídico
Especialista na área de crimes financeiros e famoso por sua atuação em operações de combate à lavagem de dinheiro, De Sanctis vive hoje com a agenda cheia — foi preciso insistir para que concordasse expor seu pensamento na entrevista abaixo. Suas ideias têm sustentação internacional. Em 2012, ele deu 14 palestras só nos Estados Unidos. Ano passado, dezenas. Neste ano, falou duas vezes na França, duas vezes em Harvard, outras duas na American University e na American Bar Association. 
Há outras: Georgetown University; George Washington University; Massachusets Division of Banks; Yale University World Bank; IADB (Banco Interamericano); Federal Judicial Center; International Law Institute; Washington Foreign Law Society; OCDE/Paris e no Gafi/Mônaco (Grupo de Ação Financeira, órgão encarregado de implementar as políticas de combate ao crime financeiro determinadas pelo G8).
Para dar conta da demanda sem faltar com suas obrigações, De Sanctis em geral vai a eventos quando o TRF não funciona ou então usa seus dias de férias. O trabalho vai bem. Do estoque de 14 mil processos que encontrou ao assumir na turma previdenciária em que está, já baixou para 7,3 mil, enquanto resolve os novos casos. 
Seus livros e artigos são citados em publicações como The New York Times eFinancial Times, entre outros. Gentil e emotivo, o desembargador tem dois filhos: Thomaz e Theodoro. Gosta de ir a shows, como o de Elton John, que foi ver recentemente. Aprecia arquitetura e diz acreditar fervorosamente no futuro do país.
Leia a entrevista:
ConJur — Como o senhor vê as críticas à lentidão do Judiciário?
Fausto De Sanctis — 
Participei recentemente de encontro na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em Paris, onde palestrei sobre o assunto. Uma das questões levantadas era a falta de credibilidade da Justiça em razão de sua morosidade e difícil cumprimento das decisões judiciais. O Brasil apresenta dados negativos assustadores em razão da complexidade desnecessária do sistema, do exaustivo e injustificado número de recursos, pelo número de instâncias, pela prescrição consagrada apenas aqui. Além disso, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça, ao considerar inadequada a fixação da pena, tem devolvido os processos para os tribunais inferiores para nova fixação, em vez de fazê-lo, permitindo, com isso, mais recurso e mais reconhecimento de prescrição. A prescrição intercorrente, ou mesmo as tradicionais existentes (punitiva e executória), são excessivas, porque os casos criminais têm resultado na sua extinção e no não cumprimento das sentenças criminais condenatórias — já esparsas nos casos de crime econômico. Logo, há impunidade e desconfiança porquanto a instituição descumpre função essencial.
ConJur — O que o senhor pensa sobre o chamado “ativismo judicial”?
Fausto De Sanctis —
 A igualdade deve ser considerada um plus ao Estado-social, aquele que deseja e consagra o bem-estar de todos. Quando os demais poderes silenciam em questões que deviam atuar, o juiz é chamado a fazê-lo, não porque deseja se substituir aos demais poderes, mas em razão de garantir o mínimo existencial, a igualdade. Cabe ao juiz, limitar-se a esse mínimo para não se convolar em poder absoluto.
ConJur — Como o senhor vê a jurisprudência restritiva em relação ao manejo do Habeas Corpus? Isso ajuda no combate à impunidade?
Fausto De Sanctis —
 O Habeas Corpus é um remédio constitucional da mais alta valia. É consagrado em vários países como um direito a uma agressão institucional indevida. No exterior, é usado em hipóteses concretas de abuso do direito de réus presos. No Brasil, porém, ganhou uma extensão tal que, hoje, esse remédio pode ser utilizado contra toda e qualquer decisão judicial, estando o réu solto ou não, convolando esse instituto em verdadeira fraude ao devido processo legal. Isso ocorre porque muitas vezes o Habeas Corpus na verdade visa retirar do juiz natural o caso, quando não evitar que seja prolatada uma sentença. É o que denomino de “doutrina brasileira do Habeas Corpus”, assim como “doutrina brasileira do princípio da não culpabilidade, da algema, dos recursos sem sentido, da pena branda ao crime econômico, da tentativa de evitar a publicidade da decisão judicial, da prerrogativa do foro, do não sigilo de inquéritos em que a investigação ainda esteja em curso etc.”
ConJur — O STF deveria parar de julgar HCs para ser apenas uma corte voltada a questões constitucionais propriamente ditas?
Fausto De Sanctis —
 Não necessariamente. Deveria realmente se tornar Corte Constitucional e decidir apenas questões de real relevância nacional no que tange a constitucionalidade das leis, decisões e julgados que ofenderiam normas de caráter nacional e universal, além de tratados e convenções internacionais.
ConJur — O que o senhor acha da delação premiada?
Fausto De Sanctis — 
A delação premiada, existente no Brasil desde as Ordenações Filipinas, é ética, útil e estratégica. Ética porque atende às finalidades político-criminais e à proteção do bem jurídico. Quando se ataca esse instituto alegando não ético, na verdade está se invocando a “ética” do criminoso, que não aceita ser apontado por um comparsa. Útil pelo fato de permitir a descoberta precoce de crimes e seus autores ou partícipes, facilitando o trabalho de todos. Por fim, estratégica para as partes, inclusive à defesa, já que o cliente se vê beneficiado com uma pena relativizada sem o custo do processo. O advogado que estimula o cliente à delação presta serviço útil e valioso para a Justiça porquanto a ele está vedado expor fatos falseando deliberadamente a verdade ou estribando-se na má-fé, conforme estabelece o Código de Ética da OAB. Esse é o sentido real de se compreender a função advocatícia como essencial à Justiça.
ConJur — Como o senhor encara as reações contra a atuação firme do seu colega Sergio Moro?
Fausto De Sanctis —
 Desconheço as atuações contra a atuação firme do juiz federal Sérgio Moro. O juiz que não é firme jamais pode atuar, quanto mais em se tratando de crimes econômico-financeiros, como lavagem de dinheiro, corrupção e fraudes em licitação. Firmeza atende às expectativas socioculturais no sentido de esperar que o juiz seja convicto, imparcial e que apresente cabal demonstração das razões de seus argumentos. O Judiciário se legitima apenas quando há solidez, clareza e credibilidade de suas decisões, permitindo a sua compreensão e propiciando a reflexão crítica.
ConJur — O que o senhor acha das novas leis anticorrupção e de lavagem de dinheiro?
Fausto De Sanctis — 
As novas leis trouxeram um ganho instrumental enorme ao Brasil, que se nivela com a legislação mais avançada existente sobre o tema. A Lei de Lavagem de Dinheiro, encerrando com a lista de delitos antecedentes para sua existência, alargando o rol de obrigados, para que nenhum setor fique de fora, permitindo a alienação antecipada etc., veio contribuir para prevenção e combate de crimes graves. É a luz apagada que se acende e faz com que todo o conjunto de luzes permaneça funcionando. A Lei Anticorrupção, tal qual a da lavagem de dinheiro, atende a compromissos internacionais, mormente Convenção da OCDE, e se traduz num instrumento vital para evitar que alguém responda por atos da empresa. Esta pode agora ser responsabilizada civilmente e solidariamente, e não somente o particular. Adam Smith já dizia que as corporações são marcadas pela negligência e esbanjamento. Ora, é necessário combater a corrupção a partir do corruptor e não apenas do setor público, já que não resolveria o problema.
ConJur — O senhor concorda que o acordo de leniência, como proposto, não atrai as empresas, uma vez que o acordo possibilita posteriores investidas do Ministério Público, Tribunal de Contas da União, Conselho Administrativo de Defesa Econômica e Fisco?
Fausto De Sanctis —
 A lei brasileira, como a lei inglesa, ao contrário da americana, apenas permite o acordo em relação à primeira empresa que tomar essa iniciativa. Não saberia dizer como está sendo proposto, mas a norma brasileira determina apenas o afastamento da publicidade da decisão condenatória, redução de multa e vedação de subsídios e empréstimos públicos em caso de leniência. O acordo não evita, porém, a perda de bens, suspensão ou encerramento das atividades ou mesmo das empresas.
ConJur — Delegado de polícia deve poder requisitar dados de clientes de companhias telefônicas sem ordem judicial?
Fausto De Sanctis —
 Segundo a lei brasileira de lavagem, pode. Tratam-se de dados apenas e não de quebra do sigilo telefônico que depende de ordem judicial.
ConJur — O que acha do fim da especialização de varas em crimes financeiros?
Fausto De Sanctis —
 Seria um verdadeiro retrocesso, já que essa foi a grande e única recente mudança positiva que permitiu e tem permitido revelar o país e suas instituições. A verdade está vindo à tona graças a essas varas, que contam com pessoas qualificadas e focadas na depuração de fatos que são, por natureza, complexos e tortuosos.
ConJur — O juiz Baltazar Garzón pode ser considerado pioneiro no movimento mais ousado de interpretação da norma penal?
Fausto De Sanctis — 
O juiz Baltazar Garzón foi corajoso e pioneiro na questão da interpretação do Direito Penal quanto à violação de direitos humanos, adotando a teoria da competência universal para firmar a competência penal de fatos graves ocorridos no exterior. Existem muitos juristas importantes que têm dado interpretações compatíveis com a realidade atual, no sentido de proteção dos direitos humanos. Tanto quanto as liberdades, a segurança deve ser conquistada e isso se faz com instituições úteis e fortes.

ConJur — Leis internacionais recentes, como a Foreign Account Tax Compliance Act, formulada para combater a evasão fiscal dos Estados Unidos, relativizam o sigilo de dados. Alguns setores da academia no Brasil, seguindo o exemplo, começam a flertar com o fim do sigilo para pessoas jurídicas. A privacidade deve morrer em prol da segurança?
Fausto De Sanctis —
 Não existe relativização do sigilo bancário. Está havendo um equívoco. A lei brasileira (Lei Complementar 105/2001) permite que o indivíduo abra mão desse direito. A intimidade é inviolável, mas a privacidade é um bem disponível e se o indivíduo desejar ocultar das autoridades americanas valores recebidos, teriam que fazer por outros caminhos e não mais depositando-os em instituições financeiras no exterior. O direito à privacidade é protegido, mas, hoje, aceita-se, por exemplo, sermos filmados em elevadores, ruas, bancos etc. sem que haja o expresso consentimento, mas, que, em verdade, este é implícito e aceito em prol da segurança pública.
ConJur — O compliance se tornou obrigatório para as empresas. Isso indica que a máxima está se invertendo e agora é o cidadão, em geral, quem precisa provar que é inocente?
Fausto De Sanctis — 
O compliance constitui a avaliação e orientação permanente das atividades das empresas para verificar se elas cumprem as normas sociais e, o que é novo, as normas legais. Trata-se de contribuição do particular para a apuração de fatos graves que podem evitar o próprio fim da empresa, em caso de punição futura. Por isso é que ele ganhou um protagonismo único e essencial. Não há Estado honesto sem sociedade honesta.
ConJur — Qual é o poder do juiz sobre o processo? Ele escolhe o que e quando julgar? Pode negar informações a outros magistrados, mesmo de instâncias superiores?
Fausto De Sanctis —
 Claro que o juiz não escolhe o processo, já que a distribuição é feita eletronicamente. O juiz não nega informações a outros magistrados também competentes para a apreciação dos fatos. Ele apenas preserva o sigilo para evitar que se fulminem investigações em curso e usa da cautela para dar conhecimento a quem de direito sobre a integralidade dos fatos. Importante é que o Judiciário constitua um todo — não sendo dividido entre primeira, segunda, terceira ou quarta instâncias. A sua eficácia depende da colaboração, experiência e compreensão de seus atores.
ConJur — Qual é o dever do juiz de informar às partes sobre o processo? Em que ponto deve ser franqueado o acesso a dados investigados?
Fausto De Sanctis —
 O juiz sempre informa às partes sobre o processo. Entretanto, por exigências legais e fáticas, o contraditório é diferido como, por exemplo, numa interceptação telefônica ou telemática, numa delação premiada etc., evitando a ineficácia do que está ainda sendo apurado.
ConJur — Qual é o limite do direito à defesa dentro de um processo de investigação criminal? O que o advogado deve ou não deve fazer?
Fausto De Sanctis — 
Ao advogado cumpre contribuir com a verdade. Apenas lhe cabe referendar o que o acusado alegar, caso ele não silencie. Acompanhei várias audiências nos Estados Unidos e na França e sempre ou quase sempre a defesa admitia os fatos, invocando dever de ética, mas pleiteando uma resposta condizente com a pessoa daquele que era defendido.
ConJur — Quais são os limites do MP e da Polícia? O que podem ou não fazer?
Fausto De Sanctis — 
O Ministério Público tem função diversa da Polícia e um não se submete a outro. Se existe algo criticável nos Estados Unidos é o fato de a atividade policial estar vinculada à do Ministério Público, num país em que, mudando a orientação ideológica (partido dominante), todas as chefias do Ministério Público são alteradas e, aí, muitas investigações podem ser suspensas. Aqui, a Constituição consagrou a atividade policial independente da do Ministério Público, que também atua independentemente. Isso é muito salutar.
ConJur — Um juiz pode "consertar" ou ignorar erros da denúncia se estiver convencido da culpa do réu?
Fausto De Sanctir —
 O juiz é um técnico e deve preservar trabalhos de qualidade técnica. Melhor é que o faça desde o início. Eu sempre verifiquei as denúncias antes de recebê-las ou rejeitá-las para constatar se atendiam aos requisitos do Código de Processo Penal.
ConJur — Juiz pode investigar? Pode se basear em fatos e conclusões de fora dos autos? Pode, por exemplo, conferir informações na Internet?
Fausto De Sanctis —
 Não. Juiz não investiga e não se vale de elementos de fora do processo. Entretanto, cabe-lhe indagar as partes, as testemunhas e o próprio acusado sobre o que considera relevante porque somente ele é quem possui o ônus do veredicto e este há de constituir uma resposta exata ao fato levado à justiça. Não pode o juiz fazer de uma injustiça uma justiça. Quanto mais elementos no processo, as partes se beneficiarão já que terão melhores condições de defender qualitativamente os seus direitos.
Revista Consultor Jurídico, 14.12.2014

domingo, 14 de dezembro de 2014

STF: Prescrição só começa, a partir do recebimento da denúncia

A contagem de tempo para o Estado punir um criminoso vale a partir de quando a denúncia é recebida, e não mais com base na data em que o crime foi cometido. A regra, fixada pela Lei 12.234/2010, foi considerada constitucional pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal na última quarta-feira (10/12), como uma estratégia do legislador para evitar a prescrição.
A Defensoria Pública da União buscava o reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva a um militar condenado a um ano de prisão por ter furtado a motocicleta de um colega de farda. Como a denúncia só foi recebida dois anos depois do fato, a Defensoria alegava que o réu não poderia ser mais punido.
Até 2010, o condenado podia usar a pena aplicada como parâmetro para calcular a prescrição entre a data do fato e o recebimento da denúncia. Mas o Superior Tribunal Militar negou o pedido, porque a Lei 12.234/2010 extinguiu essa regra, ao alterar o parágrafo 1º do artigo 110 do Código Penal.
Em Habeas Corpus apresentado ao Supremo, a DPU queria que a corte declarasse a inconstitucionalidade dessa mudança, por entender que a lei “trouxe um alargamento exagerado que fere a razoável duração do processo” e viola os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da segurança jurídica.
Já o relator do processo, ministro Dias Toffoli (foto), avaliou que a alteração legislativa é constitucional, justa e eficaz, pois “veio a se adequar a essa realidade material do Estado na dificuldade de investigar e apresentar uma denúncia a tempo”, reduzindo a probabilidade de que o responsável pelo crime deixe de ser punido.
Tempo flexível
Toffoli avaliou que “os limites temporais da investigação (...) não podem ser condicionados a um prognóstico de imposição de pena no mínimo legal”. “Para bem cumprir sua finalidade, a investigação poderá demandar o tempo que se fizer necessário para a apuração do fato, suas circunstâncias e autoria, respeitado o prazo de prescrição pela pena máxima em abstrato cominada ao delito”, afirmou em um longo voto de quase 50 páginas.
O ministro disse ainda que o legislador tem “legitimidade democrática para escolher os meios que reputar adequados para a consecução de determinados objetivos, desde que não lhe seja vedado pela Constituição e nem viole a proporcionalidade”.
A decisão foi por maioria de votos, vencido o ministro Marco Aurélio. Ele considerou que o Estado deve oferecer infraestrutura à policia judiciária, ao Ministério Público e ao Judiciário, de forma a viabilizar a eficácia do direito que o cidadão tem de ver o término do processo em um prazo razoável. Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.
Clique aqui para ler o relatório e o voto do ministro Toffoli.
HC 122.694
Revista Consultor Jurídico, 11.12.2014

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Estado responde por superpopulação carcerária

PRISÕES PRECÁRIAS

Estado deve responder por superpopulação carcerária, diz Teori Zavascki

O Poder Público tem o dever de manter presos em condições carcerárias “com mínimos padrões de humanidade estabelecidos em lei” e ressarcir eventuais danos, pois “não há dúvida de que o Estado é responsável pela guarda e segurança das pessoas submetidas a encarceramento”. Esse foi o entendimento do ministro Teori Zavascki, do Supremo Tribunal Federal, ao votar em um processo que se discute a responsabilidade do Estado por danos morais decorrentes de superlotação carcerária.
O julgamento foi levado ao Plenário da corte nesta quarta-feira (3/12), mas acabou suspenso por pedido de vista do ministro Luís Roberto Barroso. O tema teve repercussão geral reconhecida, e a decisão se refletirá em pelo menos 71 casos sobrestados em tribunais de todo o país. O voto de Teori já foi acompanhado pelo ministro Gilmar Mendes.
No caso concreto, a Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul questiona acórdão do Tribunal de Justiça local que reconheceu “condições degradantes” vivenciadas por um homem preso há 20 anos em Corumbá, mas negou o direito dele de ser indenizado por danos morais.
A Defensoria alegou que a falta de condições a viola o princípio da dignidade humana, fazendo o Estado ter responsabilidade objetiva pela situação. Já o governo de Mato Grosso do Sul disse que o pagamento de indenização não seria razoável, pois comprometeria recursos que deveriam ser utilizados para melhorar o próprio sistema penitenciário.
Norma aplicável
Teori Zavascki (foto) afirmou que a discussão no Supremo refere-se unicamente à responsabilidade civil do Estado de responder sobre ação ou omissão de seus agentes, conforme fixado no artigo 37, parágrafo 6º, da Constituição Federal. Segundo o relator, o dispositivo é autoaplicável, bastando apenas que tenha ocorrido o dano e seja demonstrado o nexo causal com a atuação da administração pública ou de seus agentes para que seja configurada a responsabilidade civil.
Ainda de acordo com o relator, a jurisprudência do STF já deixou claro, em mais de uma ocasião, haver responsabilidade objetiva do Estado pela integridade física e psíquica sobre aqueles que estão sob custódia estatal. Ele disse ainda que violações aos direitos fundamentais dos detentos não podem ser ignoradas sob o argumento de que as indenizações não resolveram o problema global das más condições carcerárias. “Esse argumento, se admitido, acabaria por justificar a perpetuação da desumana situação que se constata em presídios”, afirmou.
“A invocação seletiva de razões de Estado para negar especificamente a uma categoria de sujeitos o direito à integridade física e moral não é compatível com o sentido e alcance do princípio da jurisdição, pois estaria se recusando aos detentos os mecanismos de reparação judicial dos danos sofridos, deixando-os privados de qualquer proteção estatal, numa condição de vulnerabilidade juridicamente desastrosa.” Com informações da Assessoria de Imprensa do STF.
Leia aqui a íntegra do voto.
RE 580.252
Revista Consultor Jurídico, 4 de dezembro de 2013

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Mediação X Mudança na cultura do litígio

Sem mudança na cultura do litígio, mediação não basta, dizem professores da USP


A mediação não deve ter o objetivo de desafogar o Judiciário, mas de mudar a cultura do litígio. A opinião é o do professor Kazuo Watanabe, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, crítico da forma como a modalidade de solução de conflito vem sendo implementada no Brasil.
A avaliação foi feita durante o seminário sobre mediação e arbitragem, promovido pelo Conselho da Justiça Federal, em Brasília, na sexta-feira (21/11). No painel conduzido pelo ministro Marco Buzzi, do Superior Tribunal de Justiça, o professor Kazuo Watanabe  discutiu o tema “Aspectos gerais do marco legal” com a também professora da USP Ada Pellegrini Grinover.
“O Judiciário ainda está utilizando a mediação e a conciliação como meio alternativo para reduzir estoque de processos. É preciso adotar uma nova cultura, que encontre meios adequados de solução de conflitos, e não alternativos”, afirmou Watanabe.
A professora Ada Pelegrini criticou incisivamente o Projeto de Lei 7.169/2014. “A tardia ressurreição das nossas práticas conciliativas está ameaçada. O marco regulatório da mediação judicial não é esse projeto de lei”, disse. Para ela, a proposta que tramita na Câmara dos Deputados entra em conflito com as regras inseridas no projeto do novo Código de Processo Civil referentes ao tema.
Para os dois acadêmicos, o marco ideal era a Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça, cuja ideia era exemplar, mas que teve falhas em sua implementação. Os centros de solução de conflitos, segundo eles, nunca saíram do papel em muitos tribunais, e os que foram criados carecem de estrutura básica para funcionar.
Lentidão e desconfiança
No debate “Temas Controvertidos na Futura Lei de Arbitragem”, os palestrantes apontaram que a lentidão do sistema judicial brasileiro é uma das razões para a ampliação das práticas de conciliação, mediação e arbitragem no país. O debate foi mediado pelo ministro do Villas Bôas Cueva, do Superior Tribunal de Justiça, e contou com as participações do diretor da Faculdade de Direito da USP, professor José Rogério Cruz e Tucci, e do professor de Direito Civil Otávio Luiz Rodrigues Júnior, também da USP.

Os dois professores concordam que o pacto da mediação pode ser utilizado em inúmeras situações, envolvendo agências reguladoras, seguradoras de planos de saúde e  administração pública. Com a nova legislação, que ainda precisa ser aprovada no Congresso, o processo de arbitragem pode estar presente nas relações de consumo e nas trabalhistas e ser utilizada mais amplamente na área societária.
O professor Rodrigues Júnior lembrou que o Brasil passou por um processo similar a vários países quanto à aceitação da Lei de Arbitragem (Lei 9.307/96), em fases oscilantes de confiança e desconfiança. Ele acrescentou que, apesar disso, a lei se faz necessária.
Quando foi criada a atual Lei de Arbitragem, em 1996, o Brasil estava num contexto em que se discutia a inserção do país na política neoliberal. Os críticos aventavam uma possível privatização do Poder Judiciário, lembra Rodrigues Júnior. “Hoje percebemos que o projeto se ajusta claramente a uma necessidade social, independentemente de ideologias”, disse.
Para que a nova Lei de Arbitragem funcione, o professor Tucci entende que deve haver uma mudança cultural e de paradigma em relação ao comportamento do brasileiro diante do Judiciário. Mesmo diante de um crescente número de demandas resolvidas por arbitragem, no estágio atual ele acredita que não seria um mecanismo capaz de diminuir de fato o volume de causas levadas aos tribunais.
 “Enquanto continuarem sendo levadas aos tribunais questões que de antemão já se reconhece o resultado, não haverá solução para a lentidão. Nosso problema não é de legislação, mas de gestão e de cultura”, diz.
Experiência estrangeira
A discussão sobre o marco regulatório da mediação prosseguiu no debate mediado pelo ministro do STJ Mauro Campbell Marques. A experiência internacional na mediação foi apresentada pela advogada Juliana Loss de Andrade, que trabalha com mediação na Europa, onde faz doutorado na Universidade Paris-Sorbonne.

Segundo ela, embora a mediação esteja mais avançada na Europa, com legislação em vigor, muitos países enfrentaram os mesmos entraves do Brasil. Juliana Loss aponta que ter um marco legal é muito positivo e que, quando aprovado, isso vai refletir no maior uso da mediação.
No mesmo painel, a advogada Roberta Rangel, mestre em direito tributário, discorreu sobre as dificuldades de mediação com o poder público. Como a administração pública é parte em mais de 70% das ações que tramitam na Justiça, a tributarista reclama que muitos conflitos são simples e poderiam ser resolvidos por meio de mediação, ainda em âmbito administrativo.
 Com Informações da Assessoria de Imprensa do CJF.

Resposta de Moro ao STF

Juiz da "lava jato" rebate acusação de que escondeu dados do Supremo

O juiz federal Sergio Fernando Moro, responsável pelos processos da operação "lava jato", definiu como “fantasiosa” a afirmação de que estaria ocultando o nome de agentes políticos para manter o caso em suas mãos. A afirmação aparece em despacho desta terça-feira (25/11) depois que o advogado Fábio Tofic Simantob criticou o juiz, em petição enviada ao Supremo Tribunal Federal.
Segundo o defensor de Gerson Almada, vice-presidente da Engevix (uma das empreiteiras suspeitas de ilegalidades com a Petrobras), o juiz deixou de informar a ligação de deputados federais com o doleiro Alberto Youssef para que o caso ficasse na primeira instância. Investigações e processos envolvendo pessoas com prerrogativa de foro devem tramitar no STF.
O ministro Teori Zavascki, relator de ações sobre a Lava Jato no Supremo, acabou questionando Moro sobre as alegações do advogado. O juiz (foto) respondeu que o objeto dos casos analisados por ele “não envolve o crime de corrupção de agentes políticos, mas sim crimes licitatórios, de lavagem e, quanto à corrupção, apenas dos agentes da Petrobras”.
“Se o dinheiro supostamente desviado da Petrobras foi, depois de lavado, usado para pagar vantagem indevida a agentes políticos, trata-se de outro crime que não é objeto deste feito”, afirmou. “Não há agentes políticos aqui investigados, nem haverá, perante este juízo, Ação Penal tendo no polo passivo agentes políticos ou por objeto crimes de corrupção de agentes políticos.”
Outros advogados já haviam questionado a competência da 13ª Vara Federal de Curitiba. Em maio, Zavascki determinou que fossem soltos 12 presos da operação lava jato por entender que Moro errou ao ter enviado ao Supremo apenas parte das investigações, quando citavam agentes com foro. O ministro atendeu na época reclamação do ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa. No mês seguinte, porém, avaliou que a identidade de deputados só foi confirmada depois da operação.
Investigações em capítulos
A novela da "lava jato" começou em março com uma operação da Polícia Federal que apontou suposto esquema de lavagem de dinheiro e evasão de divisas que seria comandado pelo doleiro Alberto Youssef com empresas de fachada. Paulo Roberto Costa, ex-diretor de Abastecimento da Petrobras, acabou aparecendo na trama porque ganhou de Youssef um veículo de R$ 250 mil, de acordo com o Ministério Público Federal.
Segundo Moro, as planilhas e os repasses feitos a Costa por empresas supostamente controladas por Youssef “abrangem período no qual ele ainda ocupava o cargo de diretor de Abastecimento”. A relação entre os dois deu origem a investigações sobre contratos da Petrobras. Depois de firmar acordo de delação premiada, Costa assumiu irregularidades em contratos na Petrobras e disse que partidos dividiam parte do dinheiro que entrava no caixa.
No dia 14 de novembro, a PF deflagrou um novo capítulo da operação, com a prisão de representantes de empreiteiras suspeitas de pagar propina para conseguir contratos com a empresa.
Clique aqui para ler o despacho do juiz.
5073475-13.2014.404.7000

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Justiça Restaurativa

JUSTIÇA RESTAURATIVA, O QUE É


Em funcionamento há cerca de 10 anos no Brasil, a prática da Justiça Restaurativa tem se expandido pelo País. Conhecida como uma técnica de solução de conflitos que prima pela criatividade e sensibilidade na escuta das vítimas e dos ofensores, a prática tem iniciativas cada vez mais diversificadas e já coleciona resultados positivos.


Em São Paulo, a Justiça Restaurativa tem sido utilizada em dezenas de escolas públicas e privadas, auxiliando na prevenção e no agravamento de conflitos. No Rio Grande do Sul, juízes aplicam o método para auxiliar nas medidas socioeducativas cumpridas por adolescentes em conflito com a lei, conseguindo recuperar para a sociedade jovens que estavam cada vez mais entregues ao caminho do crime. No Distrito Federal, o Programa Justiça Restaurativa é utilizado em crimes de pequeno e médio potencial ofensivo, além dos casos de violência doméstica. Na Bahia e no Maranhão, o método tem solucionado os crimes de pequeno potencial ofensivo, sem a necessidade de prosseguir com processos judiciais.

A Justiça Restaurativa é incentivada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) por meio do Protocolo de Cooperação para a difusão da Justiça Restaurativa, firmado em agosto com a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). 

Pioneiro na implantação do método no País, o juiz Asiel Henrique de Sousa, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) explica, na entrevista abaixo, como funciona essa prática e compartilha alguns bons resultados da aplicação da Justiça Restaurativa no Distrito Federal.

O que significa Justiça Restaurativa?

Costumo dizer que Justiça Restaurativa é uma prática que está buscando um conceito. Em linhas gerais poderíamos dizer que trata-se de um processo colaborativo voltado para resolução de um conflito caracterizado como crime, que envolve a participação maior do infrator e da vítima. Surgiu no exterior, na cultura anglo-saxã. As primeiras experiências vieram do Canadá e da Nova Zelândia e ganharam relevância em várias partes do mundo. Aqui no Brasil ainda estamos em caráter experimental, mas já está em prática há dez anos. Na prática existem algumas metodologias voltadas para esse processo. A mediação vítima-ofensor consiste basicamente em colocá-los num mesmo ambiente guardado de segurança jurídica e física, com o objetivo de que se busque ali um acordo que implique na resolução de outras dimensões do problema que não apenas a punição, como, por exemplo, a reparação de danos emocionais.

Quem realiza a Justiça Restaurativa?

Não é o juiz que realiza a prática, e sim o mediador que faz o encontro entre vítima e ofensor e eventualmente as pessoas que as apoiam. Apoiar o ofensor não significa apoiar o crime, e sim apoiá-lo no plano de reparação de danos. Nesse ambiente se faz a busca de uma solução que seja aceitável. Não necessariamente o mediador precisa ter formação jurídica, pode ser por exemplo uma assistente social.

A Justiça Restaurativa só pode ser aplicada em crimes considerados mais leves?

Não, pode também ser aplicado aos mais graves. No Brasil temos trabalhado ainda, na maioria das vezes, com os crimes mais leves, porque ainda não temos uma estrutura apropriada para os crimes mais graves. Em outros países até preferem os crimes mais graves, porque os resultados são melhor percebidos. A diversidade de crimes e de possibilidades a serem encontradas para sua resolução é muito grande. Vamos supor que, após um sequestro relâmpago, a vítima costuma desenvolver um temor a partir daquele episódio, associando seu agressor a todos que se pareçam com ele, criando um “fantasma” em sua vida, um estereótipo. Independentemente do processo judicial contra o criminoso, como se retoma a segurança emocional dessa pessoa que foi vítima? Provavelmente se o ofensor tiver a oportunidade de dizer, por exemplo, porque a vítima foi escolhida, isso pode resolver essa insegurança que ela vai carregar para o resto da vida. 

Mas a Justiça Restaurativa implica no não cumprimento da pena tradicional?

Não, as duas coisas podem ser e frequentemente são concomitantes. O mediador não estabelece redução da pena, ele faz o acordo de reparação de danos. Pode ser feito antes do julgamento, mas a Justiça Restaurativa é um conceito muito aberto. Há experiências na fase de cumprimento da pena, na fase de progressão de regime, etc. Mas nos crimes de pequeno potencial ofensivo, de acordo com artigo 74 da lei 9.099 de 1995, o acordo pode inclusive excluir o processo legal. Já quando falamos de infrações cometidas pelo público infanto-juvenil há outras possibilidades como a remissão ou a não judicialização do conflito após o encontro restaurativo e o estabelecimento de um plano de recuperação para que o adolescente não precise de internação, desde que o resultado gere segurança para a vítima e reorganização para o infrator. Em São Paulo e no Rio Grande do Sul, por exemplo, há juízes com larga experiência na Justiça Restaurativa com adolescentes, por meio de um processo circular e desritualizado, mais lúdico.

Qual é a diferença da Justiça Restaurativa e da conciliação?

Em comum, podemos dizer que não são processos dogmáticos. No entanto, a conciliação é mais voltada para resolver questões de interesse econômico, os conciliadores se permitem conduzir um pouco o processo para resultados mais efetivos; a conciliação acontece com hora marcada na pauta do tribunal. Já na mediação realizada pela Justiça Restaurativa não é possível estabelecer quando vai acabar, pode demorar dias, meses, até se construir uma solução. Na medida em que você tem um conflito de maior gravidade, que traz uma direção maior de problemas afetados, é preciso dedicar mais tempo. A vítima tem espaço para sugerir o tipo de reparação. O crime gera uma assimetria de poderes: o infrator tem um poder maior sobre a vítima, e a mediação que fazemos busca reequilibrar esses poderes, mas não invertê-los. Os envolvidos podem ir com advogados, embora ao advogado seja reservado um papel muito mais de defesa da voluntariedade de participação e dos limites do acordo, para que este represente uma resposta proporcional àquela ofensa.

O senhor poderia nos contar um caso interessante aqui do TJDFT?

Há um caso recente que ocorreu em uma zona rural aqui do DF, que era relativamente simples: dois vizinhos que brigavam em relação aos limites da terra ajuizaram um processo que foi resolvido na vara cível, confirmado no tribunal, mas depois continuaram a brigar pelos limites das águas de uma mina. Aquele conflito terminou desenvolvendo para a morte de alguns animais de uma das chácaras, feita supostamente por um dos vizinhos, além de ameaças, e decidimos encaminhá-lo para a Justiça Restaurativa. A solução foi muito interessante. A equipe entendeu por chamar para participar a Agência Nacional de Águas (ANA) e a ONG ambiental WWF, que trouxe como sugestão um programa chamado apadrinhamento de minas. Então aqueles dois confrontantes terminaram fazendo um acordo de proteção pela mina e ficaram plenamente satisfeitos com a solução. Tratava-se de um conflito que já estava na Justiça há mais de dez anos e que, embora com a solução já transitada em julgado, as coisas estavam se encaminhando para um desfecho trágico. Ou seja, a Justiça tradicional resolveu apenas um espectro do problema, o jurídico, mas as demais questões em aberto continuaram se acumulando, até que foi feito esse acordo criativo pelo Programa Justiça Restaurativa do TJDFT.

Então a Justiça Restaurativa não retira o direito da pessoa recorrer à Justiça tradicional?

A intervenção restaurativa é suplementar: de par com o processo oferecemos um ambiente para resolver demais problemas relacionados com o conflito. Nada impede que você tenha uma iniciativa, como com adolescentes infratores, que exclua o processo. Primeiro buscamos uma persuasão, depois dissuasão e só depois mecanismos de interdição, que seria a internação. Persuasão significa abrir o ambiente para uma negociação direta entre as partes. Se isso não for alcançado, usamos mecanismos dissuasórios, que seriam um misto de acordo com possibilidades de uma resposta punitiva e, se isso tudo não funcionar, daí sim partimos para outros mecanismos.

Qual é o maior benefício da Justiça Restaurativa?

Em muitos casos, essas iniciativas alcançam a pacificação das relações sociais de forma mais efetiva do que uma decisão judicial. 

Luiza de Carvalho
Agência CNJ de Notícias


sábado, 22 de novembro de 2014

Pedidos de vista X Perdidos de vista

A perder de vista

Tribunais precisam definir regras claras para impedir que ministros atrasem processos com base em critérios desconhecidos
Talvez o assunto parecesse de somenos aos olhos dos ministros das cortes judiciais brasileiras, mas advogados sempre se incomodaram, ainda que em geral de forma discreta, com uma excrescência dos chamados pedidos de vista.
A ferramenta, é claro, tem seu valor. Durante julgamentos colegiados, qualquer um dos juízes tem a opção de retirar um processo de pauta a fim de estudá-lo melhor. Evitam-se assim, ao menos em tese, decisões tomadas sem um nível satisfatório de informação.
Como seria natural, a apreciação da causa fica interrompida; para evitar excessos, os regimentos internos dos tribunais estipulam um prazo em torno de 20 dias.
Ocorre que, tanto no Superior Tribunal de Justiça (STJ) como no Supremo Tribunal Federal (STF), esse intervalo de tempo tem sido solenemente ignorado. Não por acaso há quem se refira ao mecanismo como "perdido de vista".
De acordo com o estudo "O Supremo e o Tempo", da FGV Direito Rio, dos quase 3.000 pedidos de vista feitos pelos ministros do STF de 1988 a 2013, apenas 22,6% foram devolvidos dentro do prazo.
Para piorar, a grande quantidade de atrasos nem constitui o maior absurdo; este fica por conta da intensidade com que os ministros violam a regra regimental. A depender do tipo de ação, a interrupção do julgamento dura, em média, mais de três anos --o recorde é de uma execução fiscal de 1989, cujo pedido de vista tomou 20 anos.
O STJ vive situação semelhante. Levantamento apresentado pelo ministro Luis Felipe Salomão aponta uma média de quase três anos para a duração dos 6.080 pedidos de vista nos últimos seis anos.
A situação é kafkiana; adia-se o fim do processo de forma indefinida e sem nenhuma explicação. A única coisa que se sabe é por que isso acontece: não existe, na prática, meios de impedir o atraso.
Por essa razão, o STJ estuda mudanças em seu regimento interno. As discussões a esse respeito começaram nesta semana e devem continuar em meados de dezembro.
Espera-se que a maioria dos ministros não ofereça resistência. Trata-se de medida de modernização do Judiciário, não apenas pelo que possa representar para a celeridade na tramitação, mas sobretudo por seu significado em termos de transparência e segurança.
A Justiça não pode conviver com tantos fatores de imprevisibilidade, deixando quem dela depende sem saber se sua ação sumirá da vista por anos a fio.
Tampouco deve aceitar que continue válida esta pergunta impertinente: a quem interessa que certos processos tenham seu desfecho adiado muito além do que as regras republicanas permitiriam?
    Transcrito do jornal Folha de São Paulo de 22.11.2014
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sexta-feira, 21 de novembro de 2014

CNJ monitorará dados sobre desvio de dinheiro público

CNJ investirá em monitoramento de dados sobre desvio de dinheiro público

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) reforçará métodos para coleta e sistematização de dados sobre os processos envolvendo corrupção, lavagem de dinheiro e improbidade administrativa. A meta foi definida nesta sexta-feira (21/11) no encerramento da 12ª Reunião Plenária da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla), realizada em Teresina (PI).


O CNJ começou a trabalhar essas estatísticas ainda em 2010, como resultado de uma das ações da Enccla para 2011. Os números foram publicados até 2013, relativos ao ano de 2012. A proposta de dar continuidade ao projeto, tornando as estatísticas permanentes, partiu da atual representante do CNJ na Enccla, conselheira Luiza Frischeisen.

Coordenada pelo CNJ, a Ação 15 terá a colaboração do Conselho Nacional do Ministério Público, da Controladoria-Geral da União, da Secretaria de Logística e Tecnologia da Informação do Ministério do Planejamento, do Tribunal de Contas da União, do Conselho da Justiça Federal, do Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas, de órgãos das polícias federal e civil e de entidades de classe da magistratura. 

Colaborador – O CNJ também será colaborador em duas metas estabelecidas pela Enccla para 2015. A Ação 4 pretende cobrar o cumprimento da Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/2011), especialmente em relação à transparência de dados. A Ação 9 foca em medidas para garantir a execução das recomendações do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (Gafi), organização intergovernamental com ação nacional e internacional. 

A Enccla definiu uma série de prioridades legislativas para 2015, como necessidade de tipificação dos delitos de terrorismo e de seu financiamento; racionalização do sistema processual e recursal; edição de legislação relativa ao denunciante de boa fé e à atividade de lobistas; aprovação dos projetos de lei sobre extinção de domínio e sobre criminalização do enriquecimento ilícito de agentes públicos; aperfeiçoamento da Lei da Improbidade Administrativa; e aplicação plena da Lei Anticorrupção. 

O grupo também recomenda a adoção de critérios que privilegiem idoneidade e capacidade técnica dos gestores públicos nomeados para cargos comissionados, fortalecimento dos órgãos de inteligência, investigação, fiscalização e controle da administração pública, além de promoção de transparência para atuação proativa do cidadão no controle do dinheiro público.

Enccla – Criada em 2003, a Enccla articula órgãos, entidades, instituições e associações envolvidas no enfrentamento da criminalidade. Fazem parte da Estratégia mais de 60 órgãos dos Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, dos Ministérios Públicos e da Sociedade Civil. Os integrantes reúnem-se anualmente para elaborar e aprovar ações voltadas à prevenção e combate à corrupção e à lavagem de dinheiro.

Veja aqui as ações pautadas pela Enccla para 2015 e a Carta de Teresina.

Débora Zampier
Agência CNJ de Notícias


terça-feira, 18 de novembro de 2014

100% de acordo usando técnica alemã


No interior da Bahia, um juiz tem conseguido evitar que conflitos familiares e pessoais transformem-se em processos judiciais com a utilização de uma técnica de psicologia antes das sessões de conciliação. Com ajuda da chamada Constelação Familiar, dinâmica criada pelo teólogo, filósofo e psicólogo alemão Bert Hellinger, o magistrado Sami Storch conseguiu índice de acordo de 100% em processos judiciais onde as partes participaram do método terapêutico.


Durante a Semana Nacional da Conciliação deste ano, que ocorrerá entre os dias 24 e 28 de novembro em todo o País, já estão agendadas 29 audiências cujas partes participaram da vivência de Constelação Familiar. Para o magistrado, o método contribui fortemente para o fim do conflito impactando tanto os atores diretos quanto os envolvidos indiretamente na causa, como filhos e família. 

Este ano, a técnica vem sendo direcionada aos adolescentes envolvidos em atos infracionais, processos de adoção e autores de violência doméstica. Na Vara Criminal e de Infância e Juventude de Amargosa, a 140 km de Salvador, onde atualmente o juiz Sami Storch dá expediente, o índice de reincidência desses jovens ainda não foi mensurado, mas o magistrado acredita que, se fosse medido, esse número seria com certeza menor. 

“Um jovem atormentado por questões familiares pode tornar-se violento e agredir outras pessoas. Não adianta simplesmente encarcerar esse indivíduo problemático pois se ele tiver filhos que, com as mesmas raízes familiares, apresentem os mesmos transtornos, o problema social persistirá e um processo judicial dificilmente resolve essa realidade complexa. Pode até trazer algum alívio momentâneo, mas o problema ainda está lá”, afirma. 

O que é Constelação Familiar – A sessão de Constelação Familiar começa com uma palestra proferida pelo juiz sobre os vínculos familiares, as causas das crises nos relacionamentos e a melhor forma de lidar com esses conflitos. Em seguida, há um momento de meditação, para que cada um avalie seu sentimento. Após isso, inicia-se o processo de Constelação propriamente dito. Durante a prática, os cidadãos começam a manifestar sentimentos ocultos, chegando muitas vezes às origens das crises e dificuldades enfrentadas.

Em 2012 e 2013, a técnica foi levada aos cidadãos envolvidos em ações judiciais na Vara de Família do município de Castro Alves, a 191 km de Salvador. A maior parte dos conflitos dizia respeito a guarda de filhos, alimentos e divórcio. Foram seis reuniões, com três casos “constelados” por dia. Das 90 audiências dos processos nos quais pelo menos uma das partes participou da vivência de constelações, o índice de conciliações foi de 91%; nos demais, foi de 73%. Nos processos em que ambas as partes participaram da vivência de constelações, o índice de acordos foi de 100%.

Para Sami Storch, a Constelação Familiar é um instrumento que pode melhorar ainda mais os resultados das sessões de conciliação, abrindo espaço para uma Justiça mais humana e eficiente na pacificação dos conflitos. 

Semana Nacional da Conciliação ocorre todo ano e envolve a maioria dos tribunais brasileiros. Os tribunais selecionam os processos que têm possibilidade de acordo e intimam as partes envolvidas a tentar solucionar o conflito de forma negociada. A medida faz parte da meta de redução do grande estoque de processos na Justiça brasileira – atualmente em 95 milhões, segundo o relatório Justiça em Números 2014.


Agência CNJ de Notícias

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Soluções extrajudiciais de conflitos


Temos urgência em estimular soluções que dispensem intervenção do juiz

José Renato Nalini

O Brasil ingressou no século XXI como se fora um imenso tribunal. Quase 100 milhões de processos estão em curso, pelos 97 tribunais do país. É como se toda a população litigasse, o que nos garantiria o ranking da nação mais beligerante sobre a face da Terra.
Há quem ache saudável esse fenômeno: vive-se uma Democracia! Há juízes para ouvir todos os reclamos. Ampliou-se o acesso à Justiça. Hoje ninguém se constrange de estar em juízo.
Mas essa não é a única leitura. Será que todos os problemas humanos precisam ser levados à apreciação de um juiz? As pessoas se deram conta de que litigar nem sempre é a melhor solução? E porque isso é preocupante?
O Brasil escolheu um modelo muito sofisticado de Justiça. Talvez porque também possui mais faculdades de Direito do que a soma de todas as faculdades de Direito do planeta! Resultado disso é que elaboramos um sistema de cinco Justiças: duas comuns — Estadual e Federal — e três especiais: Trabalhista, Militar e Eleitoral. E de tanto apreço ao duplo grau de jurisdição — a possibilidade de reexame daquilo que já foi decidido — chegamos ao quádruplo grau de jurisdição: os processos começam no juiz singular, passam por um dos Tribunais de 2ª instância — TJ, TRT, TRF, TRE, TJM — chegam a uma terceira instância — STJ, TSE, TST, STM — e, não raro, atingem uma 4ª instância: o Supremo Tribunal Federal, cúpula do Poder Judiciário.
Isso faz com que os processos possam durar de 10 a 20 anos para a solução definitiva. Ao menos em parte, porque depois pode começar outra luta com a execução da decisão. E um número enorme de processos termina com julgamento meramente procedimental. Não se chega ao âmago do conflito, mas a resposta é processual.
Consequência desse quadro é que o equipamento estatal encarregado de dirimir controvérsias cresce a cada dia, torna-se burocratizado, pesado e custoso. O povo é quem suporta esse gasto. Mas vai chegar um dia em que a sociedade não terá condições de sustentar uma estrutura que é atravancada e lenta. Soterrada de questões que poderiam ser efetivamente solucionadas à mesa do diálogo. Mediante um protagonismo que a cidadania não tem no Judiciário.
Embora o direito processual chame a parte, eufemisticamente, de sujeito, na verdade ela é um objeto da vontade do Estado-juiz. O litigante não tem condições de narrar, perante o juiz, tudo aquilo que o atormenta e que o levou a juízo. A cena judiciária é técnica, formalista, não admite espontaneidade. Não é raro que o interessado sequer entenda o que aconteceu com sua demanda, quando a solução é meramente formal, procedimental ou processual. Daí a insatisfação generalizada em relação ao funcionamento da Justiça. Precisamos reverter esse quadro.
A começar dos advogados, que obtiveram tratamento muito especial por parte do constituinte de 1988. A advocacia é essencial à administração da Justiça: artigo 133 da CF/88. Mas administração da Justiça não significa, inevitavelmente, ingressar em juízo. A formação jurídica é anacrônica. Obedece aos padrões de Coimbra que, ao ser transplantada para o Brasil, quando da fundação das duas primeiras faculdades (1827), por D. Pedro I — São Francisco e Olinda — já era modelo superado. Inspirara-se na Faculdade de Bolonha, criada no ano 800...
Por isso é que a primeira resposta para qualquer problema é propor uma ação. E se o processo é considerado, pela ciência jurídica tradicional, a maneira mais civilizada de se resolver o conflito, nem por isso é a mais rápida, a mais simples e a menos dispendiosa.
Precisamos renovar a cultura jurídica. O advogado já tem dois deveres em seu Estatuto, que impõem priorizar a conciliação e dissuadir seu cliente a ingressar com lides temerárias. Ou seja: enfrentar as dificuldades do processo, com a quase certeza de que não conseguirá o reconhecimento de seu direito.
Por isso, temos urgência em estimular todas as fórmulas de solução de problemas que prescindam da intervenção do juiz. Elas já existem. O Tribunal de Justiça de São Paulo incentiva a criação de CEJUSCS, centros de conciliação extrajudicial e de cidadania, agradece aos advogados que implementam em suas comarcas o projeto OAB Concilia, propôs a mediação, conciliação e negociação a cargo dos cartórios extrajudiciais e aplaude a criatividade que, em cada município paulista, mostre à população de que, assistida por advogado, ela pode resolver mais rápida e eficazmente as questões de desinteligência convivencial.
Isso, não apenas para aliviar o Judiciário de carga excessiva de processos, da qual não dará conta e isso é constatável ao se verificar o reclamo de quem espera longos anos para obter uma solução, que nem sempre é aquela pela qual o injustiçado aspira. Mas o principal é, com o auxílio do advogado, que deve ser um profissional da prevenção, da conciliação, da pacificação e da harmonização, despertar na cidadania a vontade de assumir as rédeas de seu destino. Quando as pessoas aceitam dialogar, orientadas por seus advogados, e chegam a um acordo legítimo passam a entender o que realmente ocorre. Compreendem, ao menos em parte, o ponto de vista contrário. E se chegam a acordo — transigindo parcialmente de suas pretensões — este ajuste é mais assimilado do que a decisão judicial.
O juiz, por mais boa vontade que tenha em acertar, é sempre um terceiro, um estranho, a vontade do Poder Judiciário a intervir na vida privada das pessoas. Enquanto que a conciliação é a participação direta do interessado no encaminhamento da solução. Se a cidadania aprender a negociar, a conversar, a acertar seus interesses no diálogo com o adverso, aprenderá a participar da Democracia prometida pelo constituinte: a Democracia Participativa, que fará do Brasil uma Nação com a qual sonhamos e temos o direito de sonhar.
É esse exame de consciência e essa reflexão que esperamos surta efeitos em cada município deste magnífico, esplêndido, pujante e complexo Estado de São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 12 de novembro de 2014