Não é de hoje e nem de agora que a influência da mídia na sociedade e, especificamente, nos julgamentos penais é objeto de questionamento e critica. A influência da mídia na construção de determinada realidade é inquestionável, principalmente, quando não há informações acessíveis ao individuo, como ocorre nos casos relacionados ao sistema de justiça penal.[1] Não foi sem razão que o sociólogo Niklas Luhmann[2] afirmou que “aquilo que sabemos sobre nossa sociedade, ou mesmo sobre o mundo no qual vivemos, o sabemos pelos meios de comunicação”.
Ao referir-se sobre a “manipulação midiática” Marcus Alan Gomes observa que:
O termo manipulação é proscrito entre os profissionais dos meios de comunicação. Costuma-se substituí-lo por deformação ou distorção, palavras revestidas de uma menor carga ética negativa. Ocorre que, do ponto de vista semântico, manipular a informação significa exatamente deformá-la ou distorcê-la de forma deliberada e consciente para negar a verdade, com fins desonestos ou injustos.
No que se refere à manipulação, “que não se dá de forma intencional, mas sim contextual” — processo sutil e de difícil percepção — segundo Marcus Alan Gomes muitos recursos são utilizados pelos meios de comunicação.
A linguagem é um deles. No caso dos mass media, ela é sempre complexa, pois não se restringe as palavras. Associa vários elementos, como textos, imagens e cenários, a depender do ambiente comunicacional em que é empregada (imprensa escrita, televisão, rádio, internet). Essa múltipla plasticidade reforça, na esfera midiática, uma característica de linguagem: é ela o veículo do pensamento, mas também sua expressão.
Não se pode olvidar que vários regimes políticos tiveram na propaganda uma arma poderosíssima. Destaca-se aqui, o regime nazista implantado por Adolf Hitler. Não é despiciendo lembrar alguns lemas de Joseph Goebbels — Ministro da Propaganda na Alemanha Nazista entre 1933 e 1945 — é de que: “para convencer o povo a entrar na guerra, basta fazê-lo acreditar que está sendo atacado” ou “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”.
Neste diapasão, Alan Gomes observa que:
a imposição de significados a termos e expressões, pela sua exaustiva repetição, tem o poder de alcançar o inconsciente das pessoas e convencê-las quase mecanicamente, de uma opinião. Assim, quando os meios de comunicação apropriam-se de significações para palavras como crime, criminoso, vítima, bandido, perigoso, insegurança, medo, corrupção, tendem a convencer o público dos sentidos a elas atribuídos.
Quando se trata da influência ou da manipulação da mídia no direito penal e no processo penal a situação não difere no que diz respeito aos métodos utilizados pelos meios de comunicação para formação de uma opinião publica(da).
Débora de Souza Almeida ao tratar do “populismo midiático” informa que a pressão da mídia sobre agentes da cultura penal, notadamente, sobre os juízes, não é algo novo. Segundo a autora, Raùl Cervini denomina o referido fenômeno de “extravictimización de los operadores de la jusicia”. De acordo com o referido fenômeno, respaldado por várias pesquisas, é inegável a influência sofrida pelos magistrados “por la incidência da las mass media”.[3]
A grande imprensa, como bem salientou o processualista Afrânio Silva Jardim,
além de (de)formar a opinião pública, depois passa a dar publicidade daquilo que lhe interessa, dizendo falsamente, por vezes, qual seria a opinião pública, criando um verdadeiro círculo vicioso. Desta forma, sem qualquer pesquisa séria, esta mídia nos diz “como pensamos”, segundo seu desejo (...) Na sociedade moderna, o poder da chamada “grande imprensa” é quase ilimitado. Ela “pauta” a atividade dos poderes constituídos do Estado.[4]
Os tentáculos do poder acusatório da mídia são capazes de acachapar todo e qualquer princípio de direito. Neste diapasão a presunção de inocência esculpida na Constituição da República no título que trata dos direitos e garantias fundamentais é completamente abandonada passando a ser letra morta em nossa lei maior. Como bem disse Nilo Batista “a imprensa tem o formidável poder de apagar da Constituição o princípio de inocência, ou, o que é pior, de invertê-lo”. [5]
No espetáculo midiático, observa Luana Magalhães de Araújo Cunha, “as dúvidas acerca do delito, circunstâncias e autoria são transformadas em certezas. O possível autor do fato criminoso é tratado como culpado e julgado pela opinião pública que cuida de impor ao indivíduo a pena da estigmatização”. [6]
A imprensa na maioria esmagadora dos casos de repercussão amplifica a voz dos agentes da repressão (polícia e MP) e abate a voz, quase sempre, solitária da defesa. A transformação das causas penais em verdadeiro espetáculo na busca desenfreada pela audiência e pelo público que, sadicamente, vibra com a desgraça alheia, causa prejuízos inomináveis e irreparáveis ao acusado e ao processo penal democrático.
O eminente professor Geraldo Prado, em sua obra paradigmática, assevera que:
a exploração das causas penais como casos jornalísticos, em algumas situações com intensa cobertura por todos os meios, tem levado à constatação de que, ao contrário do processo penal tradicional, no qual o réu e a Defesa poderão dispor de recursos para tentar resistir à pretensão de acusação em igualdade de posições e paridade de armas com o acusador formal, o processo difundido na mídia é superficial, emocional e muito raramente oferece a todos os envolvidos igualdade de oportunidade para expor seus pontos de vista (...) A presunção de inocência sofre drástica violação, pois a imagem do investigado é difundida como da pessoa responsável pela infração penal.[7]
Ao violentar direitos e garantias em nome de um ilusório combate ao crime, à mídia, não rara às vezes, tem levado inocentes a prisão. Vez ou outra, inocentes ou culpados — não importa — são linchados por incitação midiática a violência. Inúmeros crimes, quando do interesse da mídia, são transformados em verdadeiras “novelas” e descritos em capítulos para o telespectador, sempre com a necessária dose de sensacionalismo para manter elevados os índices de audiência.
Com toda propriedade Rubens Casara observa que:
O fascínio pelo crime, em um jogo de repulsa e identificação, a fé nas penas, apresentadas como remédio para os mais variados problemas sociais (por mais que todas as pesquisas sérias sobre o tema apontem para a ineficácia da ‘pena’ na prevenção dos delitos e na ressocialização de criminosos), somados a um certo sadismo (na medida em que aplicar uma ‘pena’ é, em apertada síntese, impor um sofrimento) fazem do julgamento penal um objeto privilegiado de entretenimento. [8]
Não é exagero dizer que no processo penal midiático o juiz se torna refém da mídia punitiva e opressora. Referindo-se a denominada “criminologia midiática” Zaffaroni afirma que na guerra contra eles (os selecionados como criminosos) são os juízes alvo, preferido da “criminologia midiática”, que segundo o jurista argentino, “faz uma festa quando um ex-presidiário em liberdade provisória comete um delito, em especial se o delito for grave, o que provoca uma alegria particular e maligna nos comunicadores”. Neste viés os juízes “brandos” são um obstáculo na luta contra a criminalidade e contra “eles”. Como assevera Zaffaroni “as garantias penais e processuais são para nós, mas não para eles, pois eles não respeitam os direitos de ninguém. Eles — os estereotipados — não têm direitos, porque matam, não são pessoas, são a escória social, as fezes da sociedade”.
Referindo-se aos aparelhos de propaganda dos sistemas penais latinos americanos (a fábrica da realidade). Os meios de comunicação social de massa, em especial a televisão, Zaffaroni aponta que são os mesmos, na atualidade, “elementos indispensáveis para o exercício do poder de todo o sistema penal”. Sem os referidos meios de comunicação de massa, “a experiência direta da realidade social permitiria que a população se desse conta da falácia dos discursos justificadores; não seria assim possível induzir os medos nos sentido desejado, nem reproduzir os fatos conflitivos interessantes de serem reproduzidos em cada conjuntura, ou seja, no momento em que são favoráveis ao poder das agência do sistema penal”.[9]
Hodiernamente e lamentavelmente, a sociedade está sendo guiada pelos braços de uma mídia comprometida com o autoritarismo e com seus próprios interesses. Não há opinião publica, mas tão somente a opinião publicada que é promovida pelos agentes da mídia aliados ao Estado penal. Hoje se verifica que os três Poderes da República (Executivo, Legislativo e Judiciário) se tornaram refém da mídia. A mídia que além de atropelar todos os poderes se coloca acima deles.
Bourdieu em aula “sobre a televisão” demonstra como a televisão pode “ocultar mostrando”. O sociólogo francês observa que: “Os jornalistas têm ‘óculos’ especiais a partir dos quais veem certas coisas e não outras; Eles o operam uma seleção e uma construção do que é selecionado”. [10]
Por tudo, embora reconhecendo a importância da mídia, da liberdade de expressão, opinião e manifestação para a democracia, não se pode tolerar em nome dessa liberdade que direitos e garantais fundamentais e que decorrem do respeito à dignidade da pessoa humana sejam atropelados.
Por fim, urge que a sociedade discuta, sem demagogia e com coragem, qual deve ser o papel real da mídia no Estado democrático de direito.
[1] GOMES, Luiz Flávio. e ALMEIDA, Débora de Souza de. Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia dsruptiva e direito penal crítico. São Paulo: Saraiva, 2013.
[2] LUHMANN, Niklas. A realidade dos meios de comunicação. São Paulo: Paulus, 2005. P 15.
[3] GOMES, Luiz Flávio. e ALMEIDA, Débora de Souza de. Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico. São Paulo: Saraiva, 2013.
[5] BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos: violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990.
[6] CUNHA, Luana Magalhães de Araújo. Mídia e processo penal: A influência da imprensa nos julgamentos dos crimes dolosos contra a vida à luz da Constituição de 1988. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 20, n. 94, jan-fev, 2012.
[7] PRADO, Geraldo. Sistema acusatório. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001:180.
[8] CASARA, Rubens R. R. Processo penal do espetáculo: Ensaios sobre o poder pena, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.
[9] ZAFFARONI, Eugênio Raul Em busca das penas perdidas: a perda de legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 1991.
[10] BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Trad. Maria Lúcia Machado. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.
Leonardo Isaac Yarochewsky é advogado criminalista e doutor em Ciências Penais.
Revista Consultor Jurídico, 28 de abril de 2017.
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