Brasil avança no Ranking de piores sistemas de Justiça do mundo
Por Vladimir Passos de Freitas
Mesmo relembrando o significado do verbo embargar, teremos dificuldade em entender aementa de um acórdão do Supremo Tribunal Federal nos autos do Recurso extraordinário 551955/RS, Tribunal Pleno, rel. Min. Luis Fux, julgado em 23 de abril de 2015, que diz:
AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. DISPENSA. EXECUÇÃO NÃO EMBARGADA PELA FAZENDA PÚBLICA EM AÇÃO COLETIVA. IMPOSSIBILIDADE DE FRACIONAMENTO DA EXECUÇÃO. ENTENDIMENTO ALINHADO AO POSICIONAMENTO SEDIMENTADO PELO PLENÁRIO DESTA SUPREMA CORTE. PARADIGMA EMPREGADO COMO CAUSA DE DECIDIR DO ACÓRDÃO EMBARGADO. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. A controvérsia suscitada nos presentes embargos de divergência encontra respaldo na decisão do Plenário do STF. 2. Inadmissíveis os embargos de divergência quando a decisão embargada estiver alinhada ao posicionamento do Plenário desta Suprema Corte. 3. In casu, apontado como acórdão paradigma o mesmo precedente empregado para fundamentar o julgado embargado. 4. Agravo regimental a que se nega provimento.
Então, é agravo nos embargos, nos embargos, nos embargos, no agravo, no recurso extraordinário? O leitor poderá pensar que se trata de um erro de digitação, uma repetição de palavras por força de uma tecla tocada indevidamente. Mas, se for conferir no site do Supremo, verá que não é assim. Na verdade, cuida-se de um recurso extraordinário de menor complexidade, distribuído na Corte em 12 de junho de 2007 e que lá ficou até 2015, entre idas e vindas por força de recursos sucessivos.
Este é um caso. Quantos existem semelhantes no STF? Ou mais graves, com atrasos mais significativos? Questões de maior complexidade, com mais recorrentes e recorridos, quem sabe com indígenas, discussões envolvendo Tratados Internacionais ou as terras do oeste do Paraná, sempre pendentes entre o público e o privado. Em vez de 8 anos talvez sejam o dobro, 16. Ou será que serão 24, o triplo?
Porém, não esqueçamos de um detalhe. Esses recursos, por vezes, podem ser da fase de conhecimento, que significa decisão do mérito ou, para ser mais claro, quem tem razão. Depois de decidido quem venceu, haverá a fase de execução. Aí, excluindo algumas ações especiais ou de simplicidade máxima (p. ex., mandado de segurança), alguns pontos poderão ser discutidos. Por exemplo, uma simples dívida da correção de um plano econômico poderá ensejar mais 5 ou 8 anos de discussões sobre a incidência do índice X ou Y.
Ou então uma dívida de condomínio, que se arrasta por 10 anos, que poderá ficar entre leilões sucessivamente adiados, porque o avaliador não teve tempo de ir ao local, porque a simples correção monetária da avaliação pode ser injusta, porque o lance foi baixo ou por petição sem fundamento algum que não seja tumultuar o processo. E claro, o condômino inadimplente continuará usando o elevador e todos os demais serviços, obrigando os que pagam a arcar com a sua parte.
Na fase da execução, os que gostam de boas músicas talvez venham a lembrar-se de Ivan Lins, cantando: “Começar de novo e contar comigo, vai valer a pena...”. Com certeza o compositor pensava em um amor rompido e jamais imaginou que suas frases poderiam ser adequadas às ações judiciais no Brasil.
Mas se a esfera cível apresenta essas peculiaridades, nas ações penais não é diferente. A fragilidade do sistema é a mesma. Claro que ele não é frágil com pessoas de poucos recursos econômicos e culturais, que respondem a ações penais por crimes sem nenhuma complexidade Brasil afora. A ineficiência se revela onde o autor do delito tem meios de valer-se do sistema. E para que isso fique bem claro, nada melhor do que um exemplo da vida real. Exatamente, não uma tese feita na Academia, mas sim um caso concreto.
Em outubro de 2006, a UTRESA, empresa localizada em Estância Velha, RS, causou vazamentos de aterro nas águas dos Arroios Portão e Cascalho e no Rio dos Sinos, causando poluição, através de resíduos líquidos e substâncias oleosas, que resultaram na morte de cerca de 86,2 toneladas de peixes. O diretor foi condenado a 30 anos de prisão (30 fatos em concurso material). Acórdão do TJRS, em 26.11.2009, deu provimento à apelação e reduziu a pena total para 7 anos e 6 meses, reconhecendo crime como continuado. Recurso especial ao STJ não foi admitido e gerou o Agravo 1383285/RS ao STJ. Nessa Corte, por decisão monocrática aos 14.11.2014, a pena foi reduzida a 2 anos e 5 meses para o crime do art. 54 e 1 ano e 9 meses de detenção para os delitos dos arts. 68 e 69, todos da Lei 9.605/98. Ditas penas foram elevadas pelo caráter continuado para 3 anos, 7 meses e 15 dias de reclusão e 2 anos, 7 meses e 15 dias de detenção, mantido o regime semiaberto. Interposto recurso de EDcl no AgRg no Ag 1383285 RS 2011/0004110-7, por decisão da 6ª. Turma aos 6.4.2015, foi reconhecida a prescrição dos crimes dos artigos 68 e 69 da Lei 9.605/98, pela pena aplicada. Sobrou, assim, a pena imposta no crime de poluição (art. 54). Só que agora há, ainda, recurso extraordinário a ser processado no STF, cuja decisão final é imprevisível. Assim, o último crime que restou talvez venha a prescrever.
Óbvio que o sistema não funciona, no cível ou no crime ele é anacrônico. A Constituição de 1988 pode ser festejada em diversos aspectos, mas no sistema de Justiça ela reduziu o Judiciário à ineficiência. Antes dela as ações e as execuções das sentenças tinham razoável grau de previsibilidade.
È claro que isso pode ser útil a determinadas pessoas. A ministra Carmen Lúcia, do STF, sabidamente preocupada com a eficiência das instituições, foi clara ao dizer que a “morosidade da Justiça interessa a alguém”. Complemento a frase, dizendo a quem e como.
A demora pode ser ótima para devedores em ações civis (inclusive o Poder Público) e réus de ações penais. Pode ser útil, pelo número crescente de processos, àqueles que almejam ingressar ou ser promovidos nas carreiras públicas (p. ex., o aumento dos Tribunais pode interessar aos juízes e às demais carreiras públicas, porque abrem novas vagas). Pode ser oportuna para um advogado que cobre pelo tempo de demora da ação (p. ex., percentual sobre atrasados devidos pelo INSS) ou pelo número de recursos (TJ, STJ e STF).
Mas, o que pode interessar a alguns, certamente não interessa à sociedade. Os que cumprem suas obrigações veem-se desestimulados a seguir nessa trilha, pois os inadimplentes sempre se beneficiam com a demora, às vezes até são anistiados (p. ex., dívidas fiscais).
As vítimas de crimes sentem-se abandonadas pelo Estado, pois o STF entende que é preciso o trânsito em julgado para ser executada a pena (HC 84.078-7/MG, rel. Eros Grau, julgado em 5 de fevereiro de 2009) e, evidentemente, isso importa em 10 ou mais anos. Não por acaso há vítimas que recorrem a tribunais paralelos, onde a eficiência lhes é assegurada, ainda que possa chocar-nos.
Evidentemente, teses restritivas são impopulares e vivemos um momento em que todos buscam a imagem de simpático, aberto a mudanças, flexível. Dificilmente alguém ousa ir contra a grande onda do acesso irrestrito à Justiça, como o presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Renato Nalini, e ao direito recursal infinito, mesmo que isso seja necessário.
O resultado está aí: embargos de divergência nos embargos de declaração nos embargos de declaração no agravo regimental no recurso extraordinário...
Vladimir Passos de Freitas é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.
Revista Consultor Jurídico, 14 de junho de 2015.
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