Por Renato Stanziola Vieira
É incrível como as mais óbvias tentativas de fazer com que o Supremo Tribunal Federal volte a se comportar como o guardião da Constituição (como missão constitucional que é sua) esbarram no argumento de ser “a favor da corrupção” e “contra a 'lava jato'”. Ora, a previsão da norma constitucional que estabelece que ninguém é considerado culpado até o trânsito em julgado (artigo 5º, LVII, CF), inédita na história constitucional brasileira, não tem absolutamente nada a ver com a “lava jato”.
Nem mesmo o julgamento do HC 84.078, em 2009 (que fez com que voltássemos a obedecer à dita norma constitucional), que foi lembrado pelo editorial do jornal O Globo de 30 de janeiro de 2018, tem qualquer coisa a ver com a “lava jato”. Certo estava Eros Grau quando, naquele julgamento, dizia (o que hoje mais se parece com um infeliz vaticínio): a não ser cumprir a Constituição, melhor que cada qual saia por aí com seu porrete... É o que estamos vivendo hoje (troque-se o porrete por fuzil e lá se vá a pensar em justiceiros espalhados país afora).
E mais, o próprio julgamento que deu origem recente a tudo isso, em 2016, HC 126.292, também não tem a menor relação com “lava jato”, nem mesmo com corrupção. Antes do julgamento em que se mostrou a apertada (e, espera-se, efêmera) maioria, a própria PEC idealizada a partir de ideias do ministro Cezar Peluso, que também tratava de presunção de inocência, tampouco trazia o combate à corrupção como sua razão de ser.
Por isso, o casuísmo mesmo está no aproveitamento retórico da “lava jato” e no discurso contra a corrupção para continuar a interpretar equivocadamente a norma constitucional. Em outros termos: o caminho de 1988, alheio a todo esse discurso de alguns anos para cá, foi desvirtuado e agora, quando se tem a chance de voltar a trilhá-lo corretamente, utiliza-se do casuísmo da “lava jato” e corrupção para manter a trilha errada.
A “lava jato”, parece, captura o discurso jurídico e impede que os argumentos que não decorrem do que ali se tem produzido simplesmente se desenvolvam. O que, argumenta-se, tem algum efeito que possa em tese tisnar a sacrossanta e tentacular operação, aprioristicamente é ruim e não merece sequer ser discutido. Nem que o preço a se pagar por isso seja o resgate à observância da norma constitucional pura e simples.
Obedecer à Constituição, zelar pelo cumprimento de suas normas, é algo que não pode ser colocado na mesma moeda retórica de ser contra ou a favor de “lava jato” ou da corrupção.
Reconheço que o assunto Lula pode eventualmente, e num primeiro momento, confundir as coisas novamente e ainda mais, mas, em essência, o que realmente confunde é de fato a questão da proposição de um caminho intermediário, com esgotamento em 3ª instância (STJ). Afinal, ou se respeita o artigo 5º, LVII, ou não se respeita.
Pensar em início de cumprimento de pena após decisão colegiada em 2º grau, ou após esgotamento de vias ordinárias ainda em 2º grau, ou mesmo após esgotamento de debates no STJ, todos esses raciocínios são afrontosos à Constituição da República.
Ou se aguarda, ou não, o trânsito em julgado e pronto. Soluções mais ou menos compromissórias com essa ou aquela situação concreta são remendos inconstitucionais, mudando apenas o tempo de proferir uma ou outra decisão. E tais soluções compromissórias é que em si mesmo são fonte de insegurança jurídica e social. Afinal, mais do que escancaradamente descumprirem a cláusula de segurança constitucional (artigo 5º, LVII), que no frigir dos ovos sequer é flexibilizada a depender dos interesses em questão (em termos mais claros: para fins de tratamento como culpado e assim justificando-se o início de cumprimento da pena criminalmente determinada, a norma não é um princípio, mas autêntica regra constitucional), patrocinam que qualquer pessoa inicie o cumprimento de pena sem a segurança que só advém com o que os mais tradicionais juristas diriam ser a suma preclusão.
E é bom que se repita. O Brasil tem mais de 726 mil presos. É a terceira população carcerária em números absolutos no mundo. O contingente de pessoas que cumprem execução provisória não tem nada a ver com “lava jato” ou corrupção. É preciso, portanto, boa dose de irresponsabilidade jurídica e política para continuar a acreditar que o rótulo “lava jato” justifica que continuemos a mandar pessoas cumprirem suas penas antes do julgamento definitivo. Como é igualmente necessário ter certa ousadia e pouca estima pela atenção alheia em se relacionar efeitos de delação com o efetivo cumprimento da norma constitucional. Tirante a perspectiva errada de se colocar na mesma balança o efeito de uma medida instrutória bastante específica e tormentosa como é a delação premiada com o cumprimento da norma constitucional (no limite-se, invertendo-se assim a perspectiva interpretativa), outra vez deve-se repisar: o contingente insustentável de presos provisórios no Brasil e o efeito catastrófico da antecipação temporal de execuções penais não têm, tampouco, qualquer coisa a ver com incentivos ou obstáculos às delações premiadas.
O discurso contra a corrupção e, como se empurra, ergo, a favor da “lava jato”, não tem (ou melhor: não deveria ter) tamanho efeito taumatúrgico; não é (melhor: não deveria ser) capaz de ungir com sacralidade, tapando-se tamanhas evidências, o bárbaro descumprimento de nossa Constituição Federal.
O caso Lula pode ser um exemplo — bom ou ruim — para se voltar a conviver com o respeito à Constituição. Mas não venham a falar em “lava-jato” de novo, quando o que está em jogo ao se discutir presunção de inocência é algo muito mais denso, mais antigo, mais abrangente do que o próprio caso Lula ou algum outro vinculado a essa operação policial. Há tempo, ainda, de se voltar a conviver em harmonia com a Constituição Federal. Basta o STF dar o exemplo.
Revista Consultor Jurídico, 6 de fevereiro de 2018.
Nenhum comentário:
Postar um comentário