Não é de hoje a superlotação carcerária brasileira, fenômeno que se estende a todos os Estados da federação, inclusive o Estado do Rio Grande do Sul, mas o hiperencarceramento que vivenciamos é um fenômeno que se avoluma e se agrava em solo brasileiro, quiçá no território gaúcho, portanto, não é novidade que o Brasil é o quarto país do mundo que mais encarcera, perdendo em liderança para os EUA, China e Rússia, embora possa já estar a ocupar o terceiro lugar, se computarmos as prisões domiciliares, conforme dados do próprio Conselho Nacional de Justiça.
Aliás, de acordo com o CNJ, dados referentes a janeiro de 2017, o Brasil contaria com uma população carcerária que ultrapassa 654.372, sendo que 433.318 (66%) dessa população corresponderiam às pessoas efetivamente condenadas, sendo 221.054 (34%) pessoas que se encontram no sistema a título provisório, ou seja, sem condenação, podendo, portanto, e, inclusive, serem absolvidas no curso da instrução do processo.
A situação do Estado do RS, no entanto, e nesse contexto dos dados, é preocupante, haja vista que enfrentamos uma realidade que há muito tempo atrás nos vangloriávamos de ter erradicado, que é a permanência de presos e de presas em delegacias de polícia, em viaturas, até em ônibus-cela, então noticiado desativado, bem como algemados em uma lixeira.
Não é apenas vergonhoso o que vivenciamos, mas violador dos mais elementares direitos, seja se olharmos para a normativa de direito interno, seja se olharmos para a normativa de direito internacional.
Despiciendo, portanto, qualquer comentário nesse âmbito, se minimamente fossemos de fato legalistas, exigindo o fiel cumprimento da lei, que deve ser igual para todos, não é mesmo? Aliás, a igualdade perante a lei, não tão igual assim no nosso caso, é herança dos liberais, não nos esqueçamos.
Dando sequência aos dados entabulados pelo CNJ, verificamos que em relação ao percentual de presos provisórios (sem condenação) ao total de presos por Unidade Federativa, encontramos o RS em sexto lugar, ou seja, com um percentual de 55,68% de presos provisórios, ficando atrás apenas dos Estados do SE, AL, CE, BA e GO.
Em relação ao tempo médio da prisão provisória em dias por Unidade Federativa: o RS está com a média de 437 dias, atrás de PE (974), RN (682) e MG (610), e, em relação ao número de presos provisórios com mais de 180 dias de custódia cautelar por Unidade Federativa, o RS está em terceiro lugar com 12.563 (66%), tendo em sua frente apenas MG (18.333 = 69%) e SP (17.392 = 49%), sendo de considerar que SP possui a maior população carcerária no Brasil, enquanto Unidade Federativa.
É assustador, no entanto, verificar que em 2014 a população carcerária do RS totalizava 28.125 pessoas, mas de acordo com dados extraídos do sítio eletrônico da Superintendência dos Serviços Penitenciários do Estado do Rio Grande do Sul – SUSEPE/RS, datados de 09 de agosto de 2017, a população carcerária gaúcha atinge a cifra de 36.813 pessoas encarceradas, sendo 34.840 homens e 1.973 mulheres, ou seja, em três anos apenas tivemos um aumento de mais de 8.680 presos/presas.
Agora, se o sistema prisional é um problema de segurança pública, estando no seu cerne, surpreendentemente deveríamos nos questionar acerca de quais são os efeitos que o encarceramento provoca, bem como quem constitui a população carcerária.
Em relação ao último questionamento, a interseção gênero, raça e classe escancara a seletividade do sistema, reproduzindo e agravando as desigualdades, o que amplia as vulnerabilidades sociais, psíquico, econômica, entre outras. Ou seja, estamos diante de uma máquina de moer gente.
Talvez, não seja por menos, mas mais por um descargo de consciência que o Supremo Tribunal Federal reconhece o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro, dando conta que o encarceramento produz degradação moral, abuso e violações de direitos, disseminação de doenças infectocontagiosas, novas e mais violentas facções, estigma social e massacres, muitos massacres.
Michel Foucault já teria anunciado que
desde o começo a prisão devia ser um instrumento tão aperfeiçoado quanto a escola, a caserna ou o hospital, e agir com precisão sobre os indivíduos. O fracasso foi imediato e registrado quase ao mesmo tempo em que o próprio projeto. Desde 1820 se constata que a prisão, longe de transformar os criminosos em gente honesta, serve apenas para fabricar novos criminosos ou para afundá-los ainda mais na criminalidade. A prisão fabrica delinquentes, mas os delinquentes são úteis tanto no domínio econômico como no político. Os delinquentes servem para alguma coisa.
A prisão é uma instituição total e como toda a instituição total, tenha as condições estruturais que tiver, como há muito já referenciou Erving Goffman, vai operar na mortificação do eu, tanto que Carnelutti já considerava a prisão como um cemitério onde se enterrava vivo o preso.
Em outra oportunidade já asseverei que a comparação do encarceramento brasileiro a pena de morte é decorrência da realidade existente, não por menos, no voto do Ministro Luís Roberto Barroso nos autos do RE 580252/MS, com repercussão geral, reconhece o mesmo que a superlotação, afinal, somos o quarto país do mundo que mais encarcera, e a precariedade das condições dos presídios correspondem a problemas estruturais e sistêmicos, de grande complexidade e magnitude, que resultam, segundo ele, de deficiências crônicas do sistema prisional brasileiro, sendo que tais problemas atingem um contingente significativo de presos no país, tanto que dá conta de graves deficiências na prestação das assistências previstas na LEP, quiçá material e de saúde, aduzindo para rotineiros registros de casos de violência física e sexual, homicídios, maus tratos, tortura e corrupção, praticados tanto pelos detentos, quanto pelos próprios agentes estatais.
Nessa senda, impossível não se concordar com Zaccone, “quanto mais se prende, mais se mata”.
Aí, em tempos nos quais nos encontramos com manifestos irresponsáveis, falaciosos e cínicos, onde se sugere que o desencarceramento mata, contestamos que quem verdadeiramente mata é o encarceramento e questionamos a quem deveria cumprir a responsabilização do Estado por estas mortes, por esses inúmeros cadáveres, que de acordo com Zaffaroni são a realidade na criminologia, aos quais me recuso como ele a sepultar, pois a sua visão me perturba e deveria perturbar a todos nós, principalmente àqueles que ocupam cargos públicos em Instituições que constitucionalmente possuem o dever de defesa do regime democrático e dos direitos fundamentais.
Fonte: Canal Ciências Criminais
(Artigo de autoria de Mariana Py Muniz Cappellari, transcrito do site JusBrasil)
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