O papel do Ministério Público na crise do sistema prisional
Em meio à crise que assola e devasta o sistema prisional nacional, mostra-se preciso estabelecer cirurgicamente: as causas das mazelas atuais; o protagonismo do Ministério Público brasileiro na busca da solução conjunta do problema; e o necessário combate as máfias.
É engano creditar-se a ocorrência ao mero acaso, ao aumento da criminalidade, à elevação do número de prisões ou mesmo à atuação mais intensa das polícias. A realidade, facilmente atestada pelos profissionais que lidam há anos com o sistema, indica outras causas (mais preocupantes), como o preconceito que o encarcerado goza no seio da sociedade, a ausência de investimento no cárcere e despreocupação com a recuperação do preso.
Não por acaso precisamos alterar a forma de enxergar os executados. De fato, há, no Brasil, mercê de equivocada e insistente campanha de alguns órgãos de informação, verdadeira repulsa ao que se chama de direitos humanos, vinculando esse enorme espectro da dignidade da pessoa humana apenas aos condenados. Olvidam que vencidas a (1) Revolução Francesa (antes da qual apenas a nobreza e os clérigos tinham direitos e privilégios), a (2) Primeira Guerra Mundial (calcada em ganhos financeiros e com a qual os Estados Unidos, então falidos e devedores, saíram, em quatro anos, ricos e credores e na qual se assistiu cruel mortandade) e a (3) Segunda Guerra Mundial (com a morte de milhares de judeus e outras minorias), surgiu uma nova consciência entre os homens de bem voltada a prestar a todos (independentemente de sua etnia, origem, forma de pensar ou agir e de seus antecedentes) a dignidade da pessoa humana pautada na conclusão de que a vida há ser sempre eficientemente preservada e respeitada.
Sem embargo da lição mencionada, extraída de manuais estudados nos primeiros anos das faculdades de Direito, mesmo alguns técnicos resistem a garantir ao homem encarcerado direitos mínimos, de uma ou outra forma colaborando para que o estado de coisas inconstitucional se instale em definitivo no sistema, proporcionando o caos hoje existente. A verdade é que significativa parcela da sociedade brasileira não demonstra preocupação alguma com o sistema prisional, apostando na velha e equivocada tese do “cárcere como depósito humano”, de que “bandido bom é bandido morto” e de que “para alguns a lei tem validade menos integral do que para outros”, como se a malfadada tese de Carl Schmitt, engajado na causa nazista e conhecido como “coveiro do liberalismo”, estivesse correta e devesse ser alvo de algum prestígio (anotando exceções ao império da lei, admitindo posturas excepcionais e a suspensão do Estado de Direito).
Não à toa o sistema agoniza. Se a população brasileira cresce a passos largos, as unidades prisionais são construídas timidamente e sem qualquer preocupação com a integração do encarcerado. Segregam seres humanos com singeleza assustadora, olvidando que, na verdade, a questão assume contornos de assunto de Estado, assim compreendido, numa visão progressista, todas as que dizem respeito a várias instituições e a sociedade de modo geral. Interessa, nesse passo, notar que a ocorrência (encarceramento) atine a todas as instituições sem pertencer exclusivamente a nenhuma delas, exigindo capacitação, gestão e planejamento.
O artigo 1°, inciso III, da Constituição Federal do Brasil, consagra expressamente a dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito, não abrindo qualquer espécie de exceção, antes disse reforçando a assertiva em artigos ulteriores, deixando claro que a nossa democracia, embora instalada, mas ainda não eficientemente sedimentada, necessita de cuidados especiais quanto a nossa gente.
Como corolário, todos os seres humanos têm direitos ligados e vinculados à dignidade da pessoa humana, competindo aos que detém formação jurídica o inolvidável dever de esclarecer não apenas os órgãos de imprensa como, outrossim e sobretudo, os leigos de modo geral, mesmo porque lex est quod populus iubet atque constiuit (a lei é o que o povo manda e constitui).
E, reconhecida a relevância da dignidade da pessoa humana para o Brasil, surge o imperativo de se refundar o sistema (que não recupera, exaspera o ciclo da violência e colabora firmemente para a reincidência), para o que necessitamos de um Ministério Público pulsante e disposto ao protagonismo. Nos moldes da Constituição Federal (artigo 127), emerge a necessidade de se repensar a sua atuação, cuidando não apenas da justa condenação dos infratores da lei como, também, tratando para que as penas sejam cumpridas, emprestado efetividade aos comandos penais condenatórios. Mas, na linha da carta política, a instituição não pode, ainda que implicitamente e debalde a complexidade da questão, legitimar a violência prisional, sob pena de admitir a existência de duas legislações e constituições, umas para os que se encontram em liberdade e seguem as leis e outras para os que estão encarcerados e outrora afrontaram a lei penal.
O escritor britânico Henry James, inconformado com o produzido ao longo da Primeira Guerra Mundial, anotou que “o mergulho da civilização nesse abismo de sangue e escuridão é uma coisa que trai o longo período em que tínhamos achado que o mundo estava melhorando gradualmente” (A História Não Contada dos EUA, Oliver Stone, Faro Editora, 1024, p. 26), assertiva que bem indica a necessidade de aprimorarmos nossa forma de pensar e reinventarmos o nosso agir, de sorte a evitar que episódios como aqueles veiculados nas redes sociais (chacina e esquartejamento de presos) não mais tornem a ocorrer no país.
Os membros do Ministério Público, a par da mantença da excelência do trabalho processual, necessitam lançar mão de um “pacto nacional”, por meio do qual, em atenção a sua destinação histórica, as bases do sistema carcerário possam ser revisadas, revolvidas, repensadas e instigadas a melhorias, para tanto atentando para a compreensão do Estado Democrático de Direito e para a dignidade da pessoa humana (com núcleos de execução independentes, com possibilidade de monitoramento, disposição para o diálogo constante com os demais atores, acesso irrestrito a relatórios, manuseio de dados acerca da evolução da massa carcerária, estudos sobre a qualificação e profissionalização do preso, saúde do encarcerado e, dentre outras, atenção a recalcitrância criminal e a necessidade de mantença de contato entre os vários ministérios públicos).
E que não se compreende o Ministério Público longe de sua origem. Ou com pouca atenção ao constitucional princípio da eficiência, cujo respeito apenas ocorrerá se prestar observação ao quanto manifesta o povo. Ministério Público e povo são indissociáveis. Umbilicalmente ligados. Nas palavras dos promotores de Justiça Alexey Choi Caruncho e Marcio Soares Berclaz, membros do Ministério Publico do Paraná, “o que se indaga, porém, é ate que ponto o Ministério Público conhece a sociedade a qual representa... ou até que ponto a representada tem informação, consciência e discernimento sobre as atribuições do representante” (A interação do Ministério Público com a sociedade e a construção do planejamento estratégico institucional).
O reclamado conhecimento apenas ocorrerá de lado a lado quando as distâncias diminuírem, o olhar institucional se voltar às origens e o Ministério Público reafirmar sua histórica caminhada ao lado do povo, cujo apoio e respaldo, cumpre lembrar, cunhou o seu último e mais recente momento histórico, a ele mantendo o inquestionável poder investigativo.
E o membro do Ministério Público, além suas funções processuais, possui, na condição de representante do povo, a autoridade do diálogo, podendo se dispor a buscar soluções extrajudiciais para as questões que enfrenta, notadamente na seara das execuções criminais, na qual o contato constante com advogados, defensores, servidores penitenciários e juízes se constitui em ocorrência normal e necessária à evolução da causa, atento que deve estar às mudanças ou às “transformações pelas quais passam a sociedade e, por consequência, o direito” (Manual de Negociação e mediação para os membros do Ministério Público, Ministério da Justiça, Brasil, 2014).
De fato, o promotor de Justiça deve estar “capacitado para intermediar conflitos, conhecendo técnicas de negociação e conciliação, visando a incrementar sua atuação extrajudicial” (Carlos Roberto de C. Jatahy, Temas Atuais do Ministério Público, Juspodivm, 4ª edição, p. 27).
E debalde a indispensabilidade da colaboração de outros órgãos e agentes no resgate do sistema prisional, força convir que o protagonismo do Ministério Público se avizinha como evidente, mormente porque a doutrina do “estado de coisa inconstitucional” requisita um parquet independente, atuante, corajoso e atento aos interesses do povo.
Não é só. Passou da hora de uma dedicação maior as facções criminosas. A inteligência ministerial, aliada a outras redes de acompanhamento, precisa se prestar ao combate dessas organizações criminosas, cuja existência, ordenação e crescimento no país já não admitem dúvidas. Parece surreal que, no atual momento de nossa estrutura institucional, não tenhamos criado internamente um setor específico para tanto e muito menos tenhamos uma rede nacional de observação.
As mazelas do sistema prisional decorrem de anos a fio de descaso, o Ministério Público, dada sua relevância constitucional e institucional, deve assumir um protagonismo maior, esclarecendo o povo quanto aos nortes constitucionais, cobrando as autoridades responsáveis, diligenciando para a melhoria do sistema e aperfeiçoando o combate as organizações criminosas, jamais olvidando as sábias palavras do corregedor-geral do Ministério Público do Estado de São Paulo, consignando que “somos escravos da Constituição Federal” (Paulo Afonso Garrido de Paula, Balanço do Trabalho da Corregedoria, APMP, dez/2016).
Claro que as medidas apresentadas pelo governo federal (modernização dos presídios, núcleos de inteligência, mapeamento dos homicídios, violência contra a mulher e diminuição dos presos provisórios) se mostram importantes, muito embora a atualidade dos fatos exija ações mais rápidas e imediatas como a compreensão do colapso do sistema, a necessidade de laborarmos celeremente com a incidência da Constituição e lei e a atuação efetiva do Ministério Público como uma das instituições responsáveis pelo resgate dos fins das sanções, lembrando que o idealismo que sempre permeou os campos férteis ministeriais e auxiliou o povo brasileiro na conquista de causas relevantes há de novamente conduzir os seus membros na firme convicção de que, conquanto punindo rigorosamente, a integração social do condenado é possível e necessária para a paz social e tranquilidade do povo ordeiro.
Punir, se o caso, sempre, fazendo respeitar o comando penal condenatório, sem, contudo, abrir mão de recuperar e ressocializar, na forma da lei, visando proporcionar condições para harmônica integração social do sancionado (artigo 1º da Lei Federal 7.210, de 11 de julho de 1984 – Lei de Execuções Penais).
Afinal, dura lex, sed lex.
Paulo José de Palma é promotor de Justiça, assessor do Núcleo de Execuções Criminais do CAOCrim e integrante do MP Democrático.
Fernanda Narezi Pimentel Rosa é promotora de Justiça, assessora Núcleo de Execuções Criminais do CAOCrim e integrante do MP Democrático.
Revista Consultor Jurídico, 30 de janeiro de 2017.
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