Por Fábio Schwartz
Na atual sociedade de consumo, pautada pela produção em massa e marcada pelo avanço vertiginoso das técnicas de marketing, não se pode dizer que a manifestação de vontade seja livre. Ao contrário, é toldada pela oferta de produtos e serviços que não para de se inovar. A massificação das relações contratuais, impulsionada pela padronização dos contratos (de adesão), desencadeou uma crise na teoria contratual clássica, uma vez que o acordo de vontades deixou de ser real, passando a ser fictício, ou aparente. Assim, nas palavras de Cláudia Lima Marques[1], “apesar de assegurados, no campo teórico do direito, a liberdade e a autonomia dos contratantes, no campo prático dos fatos, o desequilíbrio daí resultante já era flagrante”.
Por causa desse cenário, a defesa do consumidor foi alçada no Brasil à condição de direito fundamental, estatuído no inciso XXXII, artigo 5º da CRFB, tendo o Código de Defesa do Consumidor, logo em seu artigo 4º, inciso I, disposto que, dentre seus objetivos, deveria ser observada a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo.
E não poderia ser diferente, posto que o notório desequilíbrio do consumidor, frente ao fornecedor, impõe ao Estado uma proteção diferenciada, em atenção ao próprio princípio da igualdade, buscando atendimento da lógica aristotélica de que se devem tratar igualmente os iguais, e desigualmente aos desiguais, na medida de suas desigualdades, para alcançar a verdadeira equidade.
Em outras palavras, para se alcançar a igualdade substancial, o Direito Privado necessita de um pouco de imperium, ou melhor, da intervenção estatal, típica do Direito Público, da hierarquia de suas normas de ordem pública e da força igualizadora dos direitos humanos, tendo sido este o escopo do código brasileiro[2].
Não obstante já estar bem sedimentada a noção de vulnerabilidade, modernamente defende-se que em relação a determinados grupos específicos da sociedade, sobressai a chamada vulnerabilidade agravada, ou, conforme designado por Cristiano Heineck Schmitt[3], hipervulnerabilidade, impondo-se, em relação a estes últimos, o recrudescimento da rede de proteção consumerista, ante a posição contratual debilitada que via de regra ostentam na vida negocial.
A hipervulnerabilidade pode ser definida como uma situação social fática e objetiva de agravamento da vulnerabilidade da pessoa física consumidora, em razão de características pessoais aparentes ou conhecidas pelo fornecedor[4].
Nessa classificação se enquadrariam, por exemplo, os consumidores enfermos, os idosos, as crianças, os deficientes físicos e os analfabetos. Omodus de vida atual não deixa margem de dúvidas acerca das dificuldades desses sujeitos de direitos, ante a potencialização de lesões aos seus interesses, advindas do crescimento do comércio eletrônico e do incremento do ambiente virtual na vida de relação, onde a velocidade das mudanças impõe barreira quase intransponível àqueles dotados de uma natural fragilidade física, psicológica ou até mental.
Assim é que, em determinados produtos ou serviços que denotam dependência ou catividade, tais como os planos de saúde e a prestação de serviços públicos essenciais concedidos à iniciativa privada, o descumprimento de alguma cláusula contratual decerto importa maior potencialidade de dano para esses sujeitos, fazendo-se necessária uma proteção especial como garantia do princípio da dignidade da pessoa humana e da solidariedade.
O Direito Privado pode e deve ser um vetor para se a alcançar o justo, ou seja, um instrumento de inclusão social, de proteção de determinadas pessoas e grupos sociais fragilizados, contra todo tipo de abuso de poder, seja familiar ou econômico, ou mesmo de uma atuação contrária a boa-fé, aos bons costumes e aos fins econômicos e sociais do direito[5].
O STJ já vem reconhecendo a existência dessa categoria socialmente frágil e a necessidade de uma especial proteção, conforme observado no REsp 931.513/RS[6], no qual se pontuou que “[...] a categoria ético-política, e também jurídica, dos sujeitos vulneráveis inclui um subgrupo de sujeitos hipervulneráveis, entre os quais se destacam, por razões óbvias, as pessoas com deficiência física, sensorial ou mental [...]”.
Pois bem, como reflexo da tendência de proteção desses grupos (hiper)vulneráveis, o artigo 4º, XI da LC 80/1994, estabelece como função institucional da Defensoria “exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado”. Conforme lecionam Franklyn Roger e Diogo Esteves[7], "o dispositivo reflete preocupação constitucional de garantir a especial tutela de pessoas naturalmente frágeis [...]". Em seguida, os autores infirmam que a defesa desses grupos sociais não está relacionada à hipossuficiência econômica, sendo considerada função institucional eminentemente atípica, de molde que os mesmos não se encontram mais relegado ao segundo plano da Justiça, principalmente pela falta de um porta-voz à altura das mazelas que lhes assolam.
A normativa em questão vai ao encontro da proibição constitucional de não discriminação, atendendo ao interesse social ínsito no princípio da dignidade da pessoa humana de que os hipervulneráveis sejam juridicamente guarnecidos, de forma contundente e adequada, mediante a atuação de uma instituição com envergadura e expertise na defesa das camadas marginais de nossa sociedade.
Urge, portanto, que as Defensorias Públicas de todo país operem a devida regulamentação do sistema de assistência jurídica integral, definindo novos critérios e parâmetros consentâneos com a inovação legislativa, principalmente no que tange ao amparo ao hipervulnerável.
Nessa auspiciosa direção, caminhou a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, mediante encaminhamento de Projeto de Resolução ao Conselho Superior daquela instituição, o qual, lamentavelmente, passados cerca de quatro anos, ainda dormita sem a devida apreciação. Talvez a inércia tenha se dado pela resistência de grupos corporativos, que, de forma precipitada, e sem qualquer fundamento, enxergaram na aludida normativa uma ameaça ao mercado de trabalho dos advogados, o que, obviamente, não passa de uma miragem, já que estamos falando de indivíduos à margem da sociedade e cujo acesso ao judiciário tem sido diuturnamente dificultado.
À guisa de exemplo, destaque-se que o projeto contempla, em seu artigo 2º, inciso VII, o chamado atendimento individual protetivo, que seria o prestado, no âmbito individual, à pessoa inserida em determinado grupo social vulnerável, e cuja pretensão esteja diretamente associada a sua situação de vulnerabilidade. Decerto, a normativa, se apreciada e aprovada, produziria um grande avanço na perspectiva de uma proteção qualificada e adequada a esses grupos vulneráveis.
Aliás, o parágrafo único do artigo 2º, do referido projeto, trata expressamente acerca da figura dos hipervulneráveis, aduzindo: “Para efeitos desta Resolução considera-se que as situações de vulnerabilidade organizacional e hipossuficiência organizacional — e hipervulnerabilidade — derivam de especiais dificuldades dos indivíduos e grupos sociais em exercitar com plenitude os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico perante o sistema de justiça, o que deriva, dentre outras, de razões relativas à idade, ao gênero, à capacidade física ou mental, e a circunstâncias sociais, econômicas, étnicas e culturais”.
A necessidade de uma adequada regulamentação ganhou relevo após a Emenda Constitucional 80/2014, a qual conferiu novo perfil à Defensoria Pública, entregando-lhe a missão de promover os direitos humanos como caráter típico de sua atuação, o que, obviamente, não está atrelado à condição econômica dos sujeitos de direitos a quem se dirige essa proteção. Nesse sentido, colha-se interessante aresto emanado do TJ-MG, no qual restou consignado que: “[…] Em se tratando de ação que envolve interesses coletivos, a mera constatação da vulnerabilidade daquele grupo já autoriza a intervenção da Defensoria Pública […]” (TJ-MG – AI: 10024132933474001 MG, rel. Armando Freire, j. 26/8/2014, 1ª Câmara Cível, p. 3/9/2014).
Portanto, após a inovação constitucional, o que move o atuar do defensor público em favor de seu assistido não é um interesse privado ou econômico/patrimonial, mas, sobretudo, o interesse público de garantir a todo cidadão o mais amplo e irrestrito acesso à Justiça, à concretização da cidadania e, como nota distintiva em relação a qualquer outra instituição delineada pela Constituição Federal, a promoção dos direitos humanos.
Assim, conforme exposto por Franklyn Roger[8], “o papel da Defensoria Pública é muito maior do que aquele que se pretende atribuir a título deombudsman, já que sua atuação não se restringe à proteção dos direitos humanos frente ao poder público. Há também a atuação preventiva e educadora, com o propósito de conscientização de direitos conferido pela Lei Complementar 80/94, o que me leva a crer que a instituição deva ser creditada em uma dimensão ainda mais ampla, a de custos humanus [...]”.
A atuação da Defensoria Pública orienta-se, doravante, por um conceito alargado de “necessitados”, incluindo-se os hipervulneráveis, independentemente da situação econômico/financeira que ostentem, já que importa uma atuação voltada para a promoção de um princípio constitucional basilar, que permeia toda a normativa infraconstitucional.
A Defensoria Pública, em muitos casos, representa o único elo entre esses grupos socialmente desprezados e os poderes não estatais estabelecidos na sociedade de consumo atual, servindo como instrumento de defesa de um regime socialmente mais justo e igualitário.
Ganha relevo, portanto, o papel de destaque dessa importante instituição na proteção dos hipervulneráveis, principalmente na tutela do consumidor, atuando o defensor público como agente garantidor da inclusão social desse grupo fragilizado, ante a notória dificuldade encontrada para o pleno e qualificado acesso aos bens de consumo, diante da complexidade ilimitada do mundo em que vivemos.
Assim é que o defensor público, por meio da difusão da educação para o consumo, mediante o fornecimento informações acerca dos direitos e deveres pertinentes aos hipervulneráveis, garantindo-lhes o desenvolvimento de um mínimo poder de reflexão e consequente manifestação de uma vontade consciente; seja por meio da mediação, estabelecendo um diálogo não deficitário com aqueles que detêm os mandos de produção; ou, em último caso, mediante a tomada das medidas judiciais cabíveis, para a legítima defesa e proteção dos interesses dos lesados; em todas essas situações estar-se-á, em verdade, garantindo o pleno exercício da cidadania àqueles que sempre ocuparam os porões da ordem jurídica deste país.
[1] MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: O novo regime das relações contratuais. São Paulo: RT, 2002, p. 151.
[2] MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: RT, 2012, P. 127.
[3] SCHMITT, Cristiano Heineck. Consumidores Hipervulneráveis: A proteção do idoso no mercado de consumo. São Paulo: Atlas, 2014, p. 217.
[4] Ibidem, p. 233.
[5] MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno, op. cit., p. 121.
[6] Rel. Ministro Carlos Fernando Mathias (Juiz Federal Convocado do TRF 1ª REGIÃO), Rel., p/ acórdão Ministro Herman Benjamim, Primeira Seção, j. em 25.11.2009, DJe 27.09.2010.
[7] ROGER, Franklin; ESTEVES, Diogo. Princípios Institucionais da Defensoria Púbica. Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Saraiva, 2014, p. 357.
[8] ROGER, Franklin. A promoção dos direitos humanos como função moderna da Defensoria Pública.
[2] MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno. O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis. São Paulo: RT, 2012, P. 127.
[3] SCHMITT, Cristiano Heineck. Consumidores Hipervulneráveis: A proteção do idoso no mercado de consumo. São Paulo: Atlas, 2014, p. 217.
[4] Ibidem, p. 233.
[5] MARQUES, Cláudia Lima; MIRAGEM, Bruno, op. cit., p. 121.
[6] Rel. Ministro Carlos Fernando Mathias (Juiz Federal Convocado do TRF 1ª REGIÃO), Rel., p/ acórdão Ministro Herman Benjamim, Primeira Seção, j. em 25.11.2009, DJe 27.09.2010.
[7] ROGER, Franklin; ESTEVES, Diogo. Princípios Institucionais da Defensoria Púbica. Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Saraiva, 2014, p. 357.
[8] ROGER, Franklin. A promoção dos direitos humanos como função moderna da Defensoria Pública.
Revista Consultor Jurídico, 27 de outubro de 2015.
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