A Advocacia Pública como função essencial à Justiça
Por Maria Sylvia Zanella Di Pietro
A advocacia pública (a que pertenci por 24 anos de minha vida profissional) foi prevista na Constituição Federal de 1988, no capítulo das Funções Essenciais à Justiça (artigo 131), para representar os entes políticos, judicial e extrajudicialmente, bem como desempenhar as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo.
Temos realçado, em diferentes oportunidades em que escrevi sobre o tema, que, embora a Constituição adote, no artigo 2º, o princípio da separação de Poderes, ela prevê, no Título IV, denominado de “Organização dos Poderes”, quatro e não três capítulos; os três primeiros pertinentes a cada um dos Poderes do Estado e, o quarto, imediatamente seguinte ao que cuida do Poder Judiciário, referente àsFunções Essenciais à Justiça, nele inserindo o Ministério Público, a Advocacia-Geral da União, as Procuradorias Estaduais, a Defensoria Pública e a Advocacia. Isto não significa que são atividades típicas do Estado,merecendo, por isso mesmo, tratamento constitucional diferenciado.
O que a Constituição quis realçar, com a inclusão dessas carreiras no capítulo das “funções essenciais à Justiça”, foi a importância de todas na busca da Justiça, entendida no duplo sentido: a) Justiça como instituição, como sinônimo de Poder Judiciário, já que este não tem legitimidade para dar início às ações judiciais, decidindo os conflitos que são postos e nos limites postos pelo advogado, pelo promotor de Justiça, pelo advogado público, pelo defensor público; sem esses profissionais, a Justiça não é acionada; ela não existe; b) Justiça como valor, incluída no preâmbulo da Constituição entre os valores supremos de uma sociedade fraterna pluralista e sem preconceitos, e que consiste na “vontade constante de dar a cada um o que é seu” (justitia est constans et perpetua voluntas jus suum cuique tribuendi”).
Essa qualificação da advocacia, seja pública ou privada, como função essencial à Justiça é inteiramente justificável na medida em que os conflitos de interesses têm que ser levados ao Judiciário, necessariamente, por meio de advogado, a ele cabendo a tarefa de lutar pela correta aplicação do Direito. Seja agindo como profissional liberal, seja agindo como empregado da empresa privada, seja como advogado público, ele atua como intermediário entre a parte e o juiz. Precisamente por ser o advogado o intermediário obrigatório entre as partes e o juiz, por ser quem fundamenta os pedidos e instrui o processo, é que sua função é considerada como serviço público, pelo Estatuto da OAB (artigo 2º), e indispensável à administração da Justiça, pela própria Constituição.
Se o advogado que atua como profissional liberal, sem vínculo de emprego, presta serviço público, o advogado público presta serviço público duplamente: como advogado sujeito ao Estatuto da OAB, ele presta serviço público, entendido no sentido constitucional de função essencial à justiça; como advogado público, que presta serviço ao Estado, com vínculo empregatício, ele tem um munus a mais, pois, além de exercer a advocacia que já é, por si, função essencial à Justiça, desempenha a sua atribuição constitucional — a representação judicial da União, dos Estados ou dos Municípios, conforme o caso, bem como a consultoria jurídica e o assessoramento do Poder Executivo; essas atribuições também são incluídas entre as funções essenciais à justiça, mas aí no sentido próprio e técnico da expressão serviço público, entendido como atividade que o Estado assume como sua, para atender a necessidades públicas sob regime jurídico público.
Esse duplo aspecto e a dupla vinculação do advogado público a dois Estatutos (o da OAB e o da instituição a que pertence) pode gerar determinados conflitos de interesses, que exigem maiores garantias de independência para a instituição e para os seus membros. Com efeito, vista a advocacia como serviço público, no sentido assinalado de atividade intermediária entre juiz e parte, na busca do valor “Justiça”, não diferem em nada o papel do advogado público e do advogado privado. Ambos exercem função essencial à Justiça.
O advogado público, porém, ao agir como intermediário entre a parte e o juiz, não defende o interesse privado, mas o interesse público que ao Estado cabe proteger. E aqui surge uma primeira dificuldade que frequentemente o advogado público enfrenta: o interesse público nem sempre coincide com o interesse da autoridade pública.
Não se pode dizer que o interesse público (entendido como interesse da coletividade) seja sempre coincidente com o interesse do aparelhamento administrativo do Estado. Embora o vocábulo “público” seja equívoco, pode-se dizer que, quando utilizado na expressão “interesse público”, ele se refere aos beneficiários da atividade administrativa e não aos entes que a exercem. A Administração Pública não é a titular do interesse público, mas apenas a sua guardiã; ela tem que zelar pela sua proteção. Daí o princípio da indisponibilidade do interesse público.
Se a Administração não é titular dos interesses que administra, ela não pode deles dispor. Daí a distinção entre interesses públicos primários esecundários, feita por Renato Alessi: “Estes interesses públicos, coletivos, cuja satisfação está a cargo da Administração, não são simplesmente o interesse da Administração entendida como ‘aparato organizativo’, mas o que se chamou de interesse coletivo primário, formado pelo conjunto de interesses individuais preponderantes em uma determinada organização da coletividade, enquanto o interesse do aparelhamento (se é que se pode conceber um interesse do aparelhamento unitariamente considerado) seria simplesmente um dos interesses secundários que se fazem sentir na coletividade, e que podem ser realizados somente em caso de coincidência com o interesse coletivo primário e dentro dos limites de dita coincidência. A peculiaridade da posição da Administração Pública reside precisamente nisto, em que sua função consiste na realização do interesse coletivo público, primário.”
Em consequência, havendo conflito, o interesse público primário deve prevalecer sobre o interesse público secundário, que diz respeito ao aparelhamento administrativo do Estado. Por isso mesmo, é possível afirmar, sem medo de errar, que a advocacia pública, no exercício de suas atribuições constitucionais, não atua em defesa do aparelhamento estatal ou dos órgãos governamentais, mas em defesa do Estado, pois este é que titulariza o interesse público primário.
Ocorre que a Administração Pública é organizada hierarquicamente em uma relação de coordenação e subordinação entre os vários órgãos; o Chefe do Executivo detém um poder de orientação geral em relação aos subordinados; a Advocacia-Geral da União, bem como as procuradorias dos estados e municípios estão integradas nessa hierarquia apenas sob o ponto de vista da organização administrativa. Os integrantes dessas instituições, no exercício de suas atribuições constitucionais, subordinam-se hierarquicamente ao chefe da instituição que, por sua vez, ocupa cargo de livre nomeação, conforme artigo 131, § 1º, da Constituição.
Diante disso, fácil é compreender o quanto a inserção da advocacia pública dentro da organização hierárquica da Administração Pública pode comprometer a autonomia da instituição e a independência de seus membros no exercício de sua função de defesa do interesse público primário. Não é por outra razão que o artigo 131 da Constituição, exigiu, no § 2º, a organização em carreira na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos. Vale dizer que o próprio legislador constituinte considerou essencial a independência dos integrantes da advocacia pública no exercício de suas funções, razão pela qual impôs normas precisas de ingresso, com a consequente garantia da estabilidade. Por isso mesmo, não podem pessoas estranhas ao quadro da instituição ocupar cargos em comissão para exercer atribuições privativas dos advogados públicos.
A independência do advogado é tão relevante que, em alguns países, como França, Bélgica e alguns cantões suíços, não se admite a possibilidade de o advogado ser assalariado (conforme Ruy de Azevedo Sodré, apud Francisco Xavier da Silva Guimarães, Questões profissionais da advocacia). Segundo esse autor, “independência e subordinação são ideias antagônicas que a legislação daqueles países não tolera; por isso que o advogado subordinado a vínculo empregatício não pode postular em juízo”.
No Brasil, onde se adota posição mais liberal, hão de se harmonizar os dois estatutos a que se subordinam os órgãos da advocacia pública, de tal modo que, ao mesmo tempo em que se inserem na organização administrativa do Estado, para fins administrativos, possam exercer a advocacia pública com a independência necessária e indispensável para atuar na defesa do interesse público tutelado pelo Estado, e não na defesa das autoridades públicas a que se subordinam.
A posição da Advocacia da União e das procuradorias estaduais na organização do Estado é idêntica àquela ocupada pelo Ministério Público e pela Defensoria Pública. Nem poderia ser diferente, já que todas foram incluídas no mesmo título que trata da Organização dos Poderes, no capítulo referente às funções essenciais à Justiça. Todos exercem atividade típica de Estado, razão pela qual mereceram tratamento diferenciado na Constituição.
Aliás, a advocacia pública desempenha algumas funções muito semelhantes às do Ministério Público, na medida em que dispõe de legitimidade para representar a União na propositura de ações civis públicas (artigo 5º da Lei 7.347/85, fundamentado no artigo 129, parágrafo único, da Constituição); também tem legitimidade para a propositura da ação de improbidade administrativa (artigo 17 da Lei 8.429/92), e para responsabilização judicial das pessoas jurídicas que praticam atos danosos contra a Administração Pública (artigo 19 da Lei 12.846/13).
Além disso, é indiscutível o papel de controle da Administração Públicadesempenhado pela Advocacia Pública na atribuição constitucional deconsultoria jurídica do Poder Executivo. Com efeito, a Advocacia Pública participa ativamente do controle interno que a Administração Pública exerce sobre seus próprios atos. Isto porque, no exercício desse controle, as autoridades socorrem-se da advocacia pública. Esta não age por iniciativa própria. Ela não tem função de auditoria, de fiscal da autoridade administrativa. Ela se limita a responder a consultas que lhe são formuladas pelas autoridades, quer sobre atos que ainda vão praticar (e, nesse caso, o controle é prévio), quer sobre atos já praticados, sobre os quais surjam dúvidas quanto à legalidade (e, nesse caso, o controle é posterior).
A regra é que as autoridades administrativas, mesmo quando revelem inconformismo com a submissão à lei e ao Direito — que muitas vezes constituem entraves aos seus objetivos — consultem a advocacia pública, ainda que a lei não exija sempre essa consulta. Mesmo quando quer praticar um ato ilícito, a autoridade quer fazê-lo com base em parecer jurídico; para esse fim, ela pede e pressiona o órgão jurídico para obter um parecer que lhe convenha. Ela quer, na realidade, dar aparência de legalidade a um ato ilegal e, para esse fim, quer refugiar-se atrás de um parecer jurídico, até para ressalvar a sua responsabilidade. O advogado público que cede a esse tipo de pressão amesquinha a instituição e corre o risco de responder administrativamente por seu ato.
O papel do advogado público que exerce função de consultoria não é o de representante de parte. O consultor, da mesma forma que o juiz, tem de interpretar a lei para apontar a solução correta; ele tem de ser imparcial, porque protege a legalidade e a moralidade do ato administrativo; ele atua na defesa do interesse público primário, de que é titular a coletividade, e não na defesa do interesse público secundário, de que é titular a autoridade administrativa.
Por isso mesmo, a atividade de consultoria tem de estar fora da hierarquia administrativa para fins funcionais, ou seja, para desempenhar com independência as suas atribuições constitucionais. Tratando-se de competência absolutamente exclusiva, a atividade de consultoria afasta qualquer possibilidade de controle por órgãos superiores, ficando o órgão praticamente fora da hierarquia da Administração Pública, no que diz respeito à sua função. Ainda que os órgãos consultivos funcionem junto a ministérios e secretarias estaduais e municipais — já que integram o Poder Executivo —, eles estão fora da hierarquia, não recebem ordens, instruções, para emitir o parecer neste ou naquele sentido. Não se submetem a decisões políticas de governo que sejam emanadas ao arrepio do direito. Quem emite um parecer, tem absoluta liberdade de apreciar a lei e de dar a sua interpretação. Isto é inerente à própria função que o órgão exerce. Ou ele é independente ou não precisa existir.
Revista Consultor Jurídico, 18.08.2016
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