O Código Penal elaborado pela comissão de juristas escalada pelo Senado
ficará maior do que o atual, mas mais sistemático e objetivo. É o que afirma o
presidente da comissão, ministro Gilson Dipp, que tem reunido seu grupo duas
vezes por semana, em sessões abertas, para entregar, ainda neste semestre, o
anteprojeto de lei que, depois, será discutido no Congresso Nacional.
“Mesmo com a limpeza que se faça, haverá
um acréscimo. Mas benéfico. O Código Penal será o centro do sistema penal
brasileiro”, garante o ministro do Superior Tribunal de Justiça. Em entrevista
à revista Consultor Jurídico, que contou com a colaboração de perguntas
enviadas pelo promotor de Justiça André Luís Alves de Melo, promotor em Minas
Gerais, o ministro mostrou o quão polêmico é o texto.
Nada escapou: são ampliadas as hipóteses
de aborto, permitida a ortotanásia, descriminalizadas condutas atípicas. Por
outro lado, a comissão propõe penas mais rigorosas para crimes financeiros e
tipifica o terrorismo. Outro ponto polêmico é a criminalização do
enriquecimento ilícito. Já depois da entrevista, a comissão aprovou a criminalização
da violação das prerrogativas dos advogados. O texto aprovado foi proposto pelo
advogado criminalista Técio Lins e Silva, que faz parte do grupo.
De acordo com Dipp, a comissão partiu de
duas premissas. A primeira foi não deixar de lado nenhum tabu. “Teríamos de
enfrentar todas as questões necessárias, independentemente de seu potencial de
causar polêmica. Nem se fosse para chegar a determinado ponto e reconhecer que
certo tipo penal não seria oportuno de ser criado ou modificado”, afirmou o
ministro. A segunda diretriz foi fazer do Código Penal o centro do sistema
penal brasileiro.
Como diz o ministro, o essencial é
adaptar o Código Penal à Constituição de 1988 e aos tratados e convenções
internacionais no âmbito penal dos quais o Brasil é signatário. “O Código Penal
tem 72 anos. Alguns brincam que já deveria ter sido atingido pela aposentadoria
compulsória”, brincou. Do texto, que Dipp pretende entregar entre o final de
maio e o começo de junho, pode-se esperar objetividade.
A comissão não se rendeu a propostas
populistas. Segundo Gilson Dipp, houve mais de 2,5 mil manifestações de pessoas
com sugestões feitas pelo site do Senado — 90% delas pedindo o endurecimento de
penas. Esse, contudo, não é o caminho. “É possível endurecer algumas coisas,
mas tem que haver alguma concorrência de todos os órgãos de segurança pública para
aplacar a sensação de impunidade, senão nada adianta. O aumento de pena não é
garantia de punição”.
A Comissão pretende entregar o
anteprojeto antes do recesso do Congresso Nacional e seu objetivo é, em
primeiro lugar, adaptar o Código Penal à Constituição de 1988 e aos tratados e
convenções internacionais, em que o Brasil é signatário, no âmbito penal.
Outra diretriz foi fazer do Código Penal
o centro do sistema penal brasileiro, principalmente na parte especial. Nesse
período, foram aprovadas 140 leis especiais ou extraordinárias tratando de
matéria penal, de crimes. Mais de 50 modificaram pontualmente o Código Penal. E
dois terços dessas pouco mais de 50 leis foram sancionados depois da
Constituição de 1988. Isso revela a necessidade de atualização do Código. Um
dos objetivos é deixar no Código Penal apenas as condutas que são realmente
lesivas à sociedade. Uma parte da comissão fez o levantamento de todas as leis
penais para esse trabalho ser bem realizado.
Na visão do ministro, "" a lei
que define crimes de colarinho branco, por exemplo, é completamente defasada,
mal feita. As penas previstas são muito pequenas. Tanto que há vários
condenados por esses crimes, mas ninguém preso. As penas são prestação de
serviço e multa séria. Mas como as penas são pequenas, podem ser substituídas
por restritivas de direitos. Mas, ainda na parte de consolidação, estamos
trazendo para o Código Penal a lei dos crimes ambientais, de lavagem de
dinheiro, a que tipifica organizações criminosas, a de abuso de poder, as que
definem crimes de trânsito. Outro trabalho é o de reapreciar todos os tipos
penais existentes e a necessidade de criação de tipos novos. Essa é a política
".
Em relação ao aborto, o ministro
esclarece que foram aumentadas as possibilidades do aborto legal. Hoje é
permitido o aborto apenas em caso de estupro e grave risco de vida da mãe.
Substituídos grave risco de vida da mãe por grave risco à saúde, o que amplia
as hipóteses. E permitimos a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos mesmo
antes da decisão do Supremo. O aborto continua tipificado como crime, mas as
hipóteses de aborto legal foram ampliadas.Será permitido o aborto não só de
fetos anencéfalos, mas de todo feto portador de graves e irreversíveis
anomalias atestadas com segurança por laudos médicos fundamentados,
evidentemente. É prevista também a possibilidade do aborto decorrente de
técnica de reprodução assistida e não consentida. E mais, que certamente gerará
polêmica, há a previsão de que em toda gravidez poderá ser feito o aborto até a
décima segunda semana nos casos em que a mãe não tenha a menor condição de
criar os filhos.
Outra mudança que gerará polêmica é
a tipificação da eutanásia como
homicídio autônomo e não como causa de atenuante. É um homicídio privilegiado.
Não é a redação definitiva, mas vai dar uma clareza maior ao tema. Eutanásia é
o homicídio privilegiado que é aquele em que o autor do crime age por piedade,
a pedido do paciente terminal, imputável e maior, para abreviar-lhe sofrimento
físico insuportável em razão de doença grave, irreversível, atestado por dois
médicos. Esse atestado não é um atestado puro e simples, deve ser um laudo
maior.
Em relação ao tráfico de drogas o objetivo
da comissão foi deixar bem claro o que é o traficante, o que é o dependente e o
que é o usuário. O caso do dependente, hoje, não é crime, mas tem pena. Qual é
a pena? É o tratamento médico, psicológico, que o juiz determina. Mas em varas
do interior, até em capitais, o juiz dá uma advertência e solta o sujeito sem
tutela do médico, sem acompanhamento psicológico ou internação se for o caso.
Nós estamos tratando disso, mas estes pontos ainda não estão definidos.
Indagado de o código penal vai englobar a
execução penal, Dipp respondeu: " Na parte geral, estamos modificando a
lei de execução. Criamos um regime alternativo de progressão da pena. A
progressão se dará com um sexto, um terço, três quintos e até metade da na
dependendo do crime, da reincidência etc. Estamos modificando totalmente,
esclarecendo, a chamada dosimetria da pena. Grande parte dos pedidos de Habeas
Corpus questiona a dosimetria da pena. Então, é uma aritmética que ninguém sabe
fazer. Vamos deixar uma margem maior para o juiz, inclusive o juiz da execução
poderá em certos casos modificar a pena fixada na sentença condenatória"
Sobre o tempo de cumprimento da pena disse que a tendência é manter os
30 anos, com uma progressão mais rígida dependendo da gravidade do crime. Dados
mostram que houve mais de 2,5 mil manifestações de pessoas com sugestões feitas
no site do Senado. E 90% das manifestações populares são pelo endurecimento das
penas. É a questão da segurança pública e a sensação de impunidade. Então, o
que o povo pensa? Tem que endurecer! Mas não adianta. É possível endurecer
algumas coisas, mas tem que haver alguma concorrência de todos os órgãos de
segurança pública para aplacar a sensação de impunidade, senão nada adianta.
Polícias mais bem aparelhadas, polícias técnicas, salários melhores de
policiais, preparo, Ministério Público mais eficaz, Judiciário mais ágil. Isso
é um complexo de fatores que gera a impunidade. O aumento de pena não é
garantia de punição. O aumento da criminalidade se dá pela certeza da
impunidade".
Outra novidade, é a exigência de
reparação de dano. Por exemplo, no regime aberto, não haverá mais casa de
albergado. A progressão já começará com a prestação de serviços à comunidade ou
reparação de danos. A reparação de dano está prevista como pena, inclusive,
perda de bens, perda de valores, reparação de dano ao erário. Nós estamos
atentos aos crimes não só contra o patrimônio privado, que é a tônica do Código
de 1940, mas também contra o patrimônio público. Eu propus trazer para o Código
a responsabilização penal da pessoa jurídica.
Também foi tra para o Código o conceito
de organização criminosa, que é o tipo penal. Delação premiada, infiltração de
agente policial em ação criminosa, ação controlada, tudo isso são métodos
modernos de investigação, meios de prova. Isso fica na lei especial. Para diferenciar
do tipo penal antigo de formação de bando e quadrilha, foi usado um termo mais
moderno, que é associação criminosa, que não tem a periculosidade da
organização criminosa, que é aquela que está na convenção da ONU contra o crime
organizado, a Convenção de Palermo.
Sobre o enriquecimento ilícito Gilson
Dipp afirma haver discussões nesse sentido. Alguns dizem que não é necessário
porque existe a Lei de Improbidade, que é civil, apesar de os tipos serem todos
tipicamente penais. O enriquecimento ilícito é o patrimônio adquirido pelo
funcionário público, lato sensu, desproporcional à sua remuneração e que ele
não possa fundamentadamente justificar. Isso também deverá ser aplicado às PPEs
- Pessoas Publicamente Expostas, que é uma determinação de Convenções
Internacionais. Pessoas que sejam politicamente expostas, como governadores,
deputados estaduais, federais, membros do Ministério Público, do Poder
Judiciário, devem ter suas contas monitoradas. Certos atos têm que ser
autorizados pela autoridade competente. Eu não sei, até hoje, se é o gerente do
banco ou se é o presidente do banco. Mas esse monitoramento já existe. Eu estou
tentando minar a resistência. Tem de tipificar porque isso é uma convenção
internacional. O Senado aprovou por Decreto Legislativo a aplicação da
convenção. Estamos tentando redigir um tipo penal palatável.
Também estão sendo discutidos tipos
específicos para os crimes cibernéticos. Sobre a Lei Seca, disse:"Tiramos
a dosagem específica para caracterizar a embriaguez. O texto está assim:
Conduzir veículo automotor na via pública sobre influencia do álcool ou
substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial, não à segurança de
outrem, mas à segurança viária,a pena é de um a três anos, sem prejuízo da
responsabilização por qualquer outro crime cometido. A infração poderá ser
demonstrada mediante qualquer meio de prova no direito admitido. Isso quer
dizer, prova testemunhal, o depoimento da autoridade policial, o exame clínico,
o exame médico, o vídeo.
O trabalho da comissão só merece
elogios, mas a palavra final ficará com o Congresso Nacional
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